sábado, 23 de dezembro de 2017

Uma bênção irlandesa de Natal


Que Deus te conceda luz a cada passada,
sorrisos nos rostos que possas encontrar,
os bem-amados reunidos à tua lareira
e à tua porta bons amigos para saudar;

um hino sagrado sobre os teus lábios
e à janela o brilho fulgente dum castiçal.
Possa o bom Deus abençoar teu coração
e nele habitar, nesta noite de Natal.



(Autor desconhecido.)







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês.)















terça-feira, 12 de dezembro de 2017

QUANDO FORES VELHA



Quando fores velha e grisalha, de sono fecunda,
dormitando à lareira, toma este livro em mãos.
Lê-o devagar, sonhando com os raios sãos
que outrora teus olhos tiveram, e sua sombra profunda.

Muitos amaram os teus momentos de graça aprazível,
e amaram com falso ou vero amor a tua beleza;
mas um só amou a tua peregrina natureza
e os lamentos desse rosto perecível.

Debruçada sobre o ferro em ebulição,
murmura, com leve tristeza, como o Amor escapou
e em largas passadas montanhas galgou,
escondendo a face numa estrelada imensidão.






William Butler Yeats (1865 - 1939)








(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original publicado em The Rose, 1893)







An Old Woman Reading, 
Harry Clifford Pilsbury (1870 - 1925)



domingo, 3 de dezembro de 2017

Uma bênção irlandesa e uma oração escocesa da tradição oral


I. A bênção da chuva


Que sobre ti recaia a bênção da chuva,
A bênção da gentil e doce chuva.
Que tombe sobre o teu espírito
Para que todas as pequenas flores 
Desabrochem e exalem a sua doçura.

Que sobre ti recaia a bênção das grandes chuvas.
Que tombem sobre o teu espírito,
Livrando-o de impurezas,
E nele façam várias poças de água,
Onde o azul dos céus brilha,
Por vezes uma estrela.



II. Ao Sol


Eu te saúdo, Sol das estações,
Na tua viagem pelos altos céus.
Rasto indelével no cimo dos montes,
Senhor amável de todas as estrelas.

Mergulhas sereno nas trevas do mar,
Ninguém te toca e nada tu sofres.
Depois te levantas da calma das ondas
Como jovem príncipe coroado de rosas.







(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa da bênção tradicional e tradução de José Domingos Morais in "A Perfeita Harmonia - Poemas Celtas da Natureza", Assírio & Alvim, Julho de 2004).












(O amanhecer na Escócia - um trabalho de David Mould ®)








quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Dois poemas da tradição oral galesa


I. Muitas cantigas


Eu nada sabia. 
E tonto que era,
pensava que a vida
contigo casado
seria alegria,
folias e bailes
e muitas cantigas.

Apenas ganhei, 
depois de casado,
horas sem conto
a embalar o berço.
O menino chorava
e só sossegava
com muitas cantigas.



II. Liberdade


Como são felizes as aves sem dono
que sabem gozar a liberdade.
Voam sem medo pelo mar sem fim
e voam mais alto que a alta montanha.
Regressam ao lar por sua vontade
e não as aguarda qualquer censura.



Autor anónimo (séc. XVII)







(Tradução de José Domingos Morais in "O Imenso Adeus - Poemas Celtas do Amor" e "A Perfeita Harmonia - Poemas Celtas da Natureza", Assírio & Alvim, Fevereiro e Julho de 2004, respectivamente).










The Flight, por Hugh Monahan (1914 - 1970)





domingo, 12 de novembro de 2017

DESCENDO O JARDIM DE SALGUEIROS


Descendo o jardim de salgueiros, 
encontrei eu o meu amor;
atravessava o jardim de salgueiros 
com pequenos pés de nevada cor.
Pediu-me: vive o amor levemente,
como nas árvores a folhagem crescia.
Mas eu, sendo jovem e tolo,
concordar não poderia.

Num campo, perto do rio, 
ambos havíamos repoisado;
e a sua nevada mão colocou
sobre o meu ombro inclinado.
Pediu-me: vive a vida levemente,
como a erva que cresce no açude.
Agora, em lágrimas me afundo
- tão tolo fui na juventude.




William Butler Yeats (1865 - 1939) ¹ 






(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original publicado em 1889) ²





(Tratando-se de um poema que por Herbert Hughes foi transposto para o campo musical, recomendamos uma versão do tema interpretada por Órla Fallon: 








(1) Yeats é, por excelência, um dos autores mais famosos de toda a Irlanda, sendo para muitos críticos o seu poeta mais notável e capaz. 
Nasceu em Dublin, no seio de uma família de consideráveis posses e com significativas tendências artísticas, mas cedo se mudaria com os restantes membros para Londres, por forma a acompanhar a carreira profissional do seu progenitor - que começara por estudar direito, mas abandonara os estudos para prosseguir a sua vida como pintor de retratos. 
Iniciaria Yeats os estudos nessa cidade, mas por razões financeiras a família viu-se obrigada a regressar a Dublin. Tinha William quinze anos.
Os seus primeiros poemas terão aí nascido, por volta dos dezoito anos de idade. O estúdio do seu pai localizava-se muito perto da escola que frequentava, pelo que o jovem William teve um contacto precoce com diversos escritores e pintores que o frequentavam.
Aos vinte anos consegue publicar os primeiros poemas e um ensaio. Tal como se veria mais tarde, nos livros que publicou na fase precoce da sua carreira, as temáticas desenvolviam-se através de um traçado clássico e formal, um romantismo excessivo, liricamente rendilhado, um recurso à mitologia celta e ao folclore irlandês. Uma aura mística, quase esotérica, já principiava a dealbar em seus trabalhos. 
Regressa a Londres para conhecer a primeira fase de maior desenvolvimento da sua obra, principalmente graças à co-fundação de um clube de poetas. Diversas antologias serão publicadas através desta associação. Sensivelmente no mesmo período conhece Maud Gonne, por quem se apaixona perdidamente. Fora várias vezes rejeitado o seu pedido de casamento, inclusive, muitos anos depois, aquele que propôs à filha desta. A influência de tão arrebatadora paixão marcaria profundamente naqueles anos a obra de Yeats, então em fluxo crescente. Os seus ideais nacionalistas começam também por adquirir uma força mais vincada. 
Ultrapassando a desilusão amorosa, decide, em conjunto com outros autores emergentes, fundar aquele que seria conhecido como o "Renascimento Literário Irlandês" ou "Renascimento Celta", um grito profundamente nacionalista contra séculos de domínio inglês. Contudo, sublinhe-se, o movimento visava apenas a recuperação da extraordinária herança cultural da Irlanda, cuja defesa tornou ainda mais célebre a figura de Yeats. Será inserido nesta intenção que ajudará a fundar o Abbey Theatre, das maiores conquistas que o movimento conhecerá, inaugurado em Dublin em 1904. Como se compreende, por esta altura Yeats já se afirmava como um prolífico dramaturgo
Figura irrequieta, deixaria para trás uma série imensa de movimentos, clubes e organizações por si fundados, sozinho e em parceria, além de públicos envolvimentos na área política. A sua obra sofre uma significativa mudança, que se traduzirá em polimento, aquando do contacto com Ezra Pound e a experiência do modernismo. Foi essa amizade que lhe transmitiria uma simpatia pelo movimento fascista, por Mussolini em especial, provavelmente por culpa das tendências aristocráticas que Yeats apresentava. Contudo, anos depois acabaria por repudiar tais ideais. Do ponto de vista político, as suas intenções pareceram sempre algo ambíguas...
Yeats deixou-nos uma extensa obra nos mais diversos campos artísticos e com temáticas abrangentes. Poeta de fino recorte, defensor da cultura celta, prosaísta inspirado e dramaturgo capaz, foi agraciado com o Nobel da Literatura em 1923. Devido ao seu envolvimento no nacionalismo irlandês, viria também a ser senador da república recém formada. 
Aos setenta e três anos falece em Menton, França. O seu corpo foi transladado quase dez anos depois para Sligo, na Irlanda, o condado natal de sua mãe e o único local que reconhecia como o lugar por excelência da sua infância, embora tenha aí vivido por escassos anos. Actualmente, nessa cidade encontra-se erguido um memorial e uma estátua em sua honra. 




(2) Algumas breves notas sobre esta versão: o poema original compõe-se apenas de duas quadras, de estrofes longas e com rima emparelhada (A/A/B/B). Ora, a tradução mais ou menos exacta de cada verso para português iria, neste caso, alongar ainda mais a extensão dos mesmos, dado o maior número de sílabas que as palavras portuguesas correspondentes, ou muito aproximadas do significado original, detêm em regra para com as suas semelhantes inglesas. Assim sendo, sem nunca prejudicar o sentido básico do poema e as suas principais referências e nuances, optou-se pela divisão de cada estrofe em duas, destruindo inevitavelmente o esquema de rima original. Não se poderá dizer que se tornou cruzada a rima, pelo menos totalmente, pois apenas as estrofes pares rimam, mas pelo menos salvaguardou-se o seu efeito na leitura. Tratando-se de um poema lírico adaptado em canção, seria ingrato desprovê-lo do charme e da candura impressos pela rima. De duas quadras nasceram duas oitavas de estrofe mais condensada, e será sob essa forma que se ilustrará a versão portuguesa (uma de entre tantas outras possíveis, certamente) de um emblemático poema do início da carreira literária de Yeats.
Acrescenta-se ainda que na vez de "willow", hipótese muito mais recorrente, o autor optou por "salley" na referência às árvores que embelezavam o jardim do poema, provavelmente por esse termo derivar da palavra gaélica para "salgueiro" (saileach) ou por simplesmente não saber o nome específico da árvore em causa, optando pelo da espécie genérica ("salley" também deriva de "sallow", o nome do género salix, donde se insere o salgueiro).

A título de curiosidade, fechamos a publicação partilhando o seguinte: este poema, como o autor o admitiu, nasceu das linhas de uma antiga canção que escutara da boca de uma velha camponesa de Ballisodare, em Sligo, no norte da Irlanda, sendo que o presente trabalho mais não seria do que uma "tentativa de restaurar uma antiga canção". Sem o saber, Yeats estaria a rescrever o tema "The Rambling Boys of Pleasure" ("Os Deambulantes Rapazes do Prazer"), cuja primeira quadra apresenta uma semelhança incrível com a deste poema, no inglês original.  
De facto, o seu título original fora "An Old Song Re-Sung" (livremente, "Uma Velha Canção de Novo Cantada"), e só em 1895, quando Yeats republicou o poema, é que este ostentou o título que se lhe conhece: "Down By Salley Gardens". A propósito do espaço físico referido, julga-se que o dito jardim se situaria nas margens de um rio (outra referência dada no poema) que passa pela vila de Ballisodare, onde era comum os habitantes cultivarem árvores que pudessem fornecer materiais para forrar os tectos de suas casas. 
Em 1909 Herbert Hughes deu-lhe a melodia de "The Moorlough Shore" ("As Margens do Moorlough"), um tema tradicional, e desde então, com maiores ou menores desvios, tornou-se numa canção indispensável em qualquer repertório celta e num jardim de visita obrigatória para todo o amante de tal cultura.  









Grove Scene, de John Crome (1768 - 1821)







quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Dois poemas de Joseph Campbell


I. As colinas de Cualann ¹


Na jovialidade do verão,
as colinas de Cualann
são dois chifres doirados,
dois túrgidos seios,
duas tendas de luz. 

Na velhice do inverno,
duas espadas enferrujadas,
duas ondas de sombra,
duas luas de gelo.



II. A velha mulher


Como uma branca vela
em lugar sagrado,
assim é a beleza
dum rosto enrugado.

Como a gasta radiância
dum sol invernoso,
assim é uma mulher
findado o labor penoso. ²

Tem a ninhada longe de si, ³
e o coração no peito
sereno como as águas
debaixo dum moinho desfeito.




Joseph Campbell (1879 - 1944) ⁴











(Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais compilados em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)










(1) Cuallan é nome dado a uma região situada às portas de Dublin, a capital da república irlandesa. Não muito longe ficam as famosas montanhas Wicklow, visíveis no horizonte dessa cidade, e naturalmente ao longo das décadas motivo de diversos poemas e inspiradas canções.  


(2) Primeira nota de tradução: a palavra original é "travail", que poderá adquirir um duplo sentido. A sua utilização não é comum nos dias de hoje, tratando-se dum vocábulo de raízes fincadas no inglês arcaico. Na época, a ele se recorria para fazer-se menção às dores sentidas pela mulher em trabalho de parto, bem como à própria situação em si. Actualmente utiliza-se a palavra "labour", mas o sentido de "travail" é exactamente o mesmo: dores de parto ou entrar em trabalho de parto. Contudo, mais tarde adquire, por esta sua origem, um sentido mais amplo, significando simplesmente "trabalho penoso ou árduo". Ora, colocando tudo isto em contexto, e sabendo que o poeta retrata uma velha mulher, "travail" tanto se poderá referir aos trabalhos de parto que para ela já terminaram, dada a sua avançada idade, bem como aos trabalhos penosos que uma mãe de família, essencialmente naqueles tempos e numa Irlanda que se presume rural, tinha de arcar. A quadra seguinte corrobora em parte esta ideia. Concluindo o raciocínio, optou-se por "labor penoso", expressão de maior generalidade que, por isso mesmo, tanto pode englobar os trabalhos do parto bem como os de educação, cuidado e alimentação da numerosa família.


(3) Segunda nota de tradução: a palavra eleita pelo autor é "brood", que literalmente se traduz por ninhada ou bando, grupo e, de modo lato, descendência. A palavra portuguesa "ninhada", em contexto, poderá parecer desprovida de alguma elegância de som e de sentido, embora se aproxime da intenção do autor. No entanto, dado que outras opções, como "prole", retiram o cariz quantitativo que "ninhada" parece justamente sugerir, sem se privar de alguma aspereza em óptica subentendida, optou-se por esta última hipótese, tanto que a referência original parece óbvia: as numerosas famílias da Irlanda rural, onde era comum uma mulher dar à luz, no mínimo, cinco filhos. 


(4) Campbell nasceu na cidade de Belfast, actual Irlanda do Norte, quando todo o território era ainda considerado uma província inglesa. 
Começou por trabalhar para o seu pai antes de se dedicar ao ensino. Foi neste vespertino período da sua vida que Campbell se iniciou nas letras, primeiro antologiando canções populares no condado de Antrim e depois colaborando junto do compositor Herbert Hughes. Surgiriam com maior frequência artigos e peças de teatro, onde assinava já com a forma gaélica do seu nome (Seosamh Mac Cathmhaoil), fortalecendo ao mesmo tempo ligações com grupos de nacionalistas convictos, isto é, partidários da independência irlandesa. A letra do conhecido tema My Lagan Love é de sua autoria - apenas uma das várias melodias tradicionais que receberam palavras por si escritas. 
Passa pelas cidades de Dublin e Londres em busca de trabalho estável, e será na capital inglesa que retomará a sua ocupação de professor, empreendendo igualmente diversas actividades de desenvolvimento e divulgação da literatura irlandesa. 
Casa em 1910, mas acaba por regressar às origens e tomar parte da "Revolta Pascal" (Easter Rising), em 1916, a famosa sublevação irlandesa em semana de Páscoa que exigia a independência e a instauração de uma república no território, a mais significativa desde a ocorrida em 1798. Campbell toma parte em algumas operações de resgate até se confirmar a rendição dos rebeldes, oficialmente justificada pelo seu expresso desejo em impedir a matança dos cidadãos de Dublin (certas partes da cidade ficaram totalmente em ruínas durante o conflito).  
No ano seguinte, publica a tradução do gaélico de um conjunto de contos de Patrick Pearse, professor, escritor, activista político e um dos principais líderes da rebelião. Mais tarde, adere ao partido independentista Sinn Féin, e quando a guerra civil irlandesa se inicia, após o processo de independência do território, Campbell toma o partido dos republicanos. Mas os anos seguintes trariam algumas contrariedades. 
Após um internamento e a dissolução do seu matrimónio, Campbell emigra para os Estados Unidos e passa a leccionar em Fordham, uma universidade privada e católica de Nova Iorque, onde continuará a desenvolver esforços na preservação e divulgação da língua irlandesa e da sua literatura. 
Regressa à Irlanda em 1939, ao condado de Wicklow, tendo vindo a falecer perto do fim da Segunda Guerra Mundial.  










(As montanhas Wicklow, em pleno parque natural)








terça-feira, 12 de setembro de 2017

Dois poemas de Anthony Raftery


I. Raftery, eu sou


Sou Raftery, o poeta,
cheio de esperanças e amor,
de olhos que não possuem luz,¹
silêncio que não conhece dor.

Sigo na jornada para oeste,
guiado pela luz do coração;
enfraquecido e fatigado,
até ao fim desta peregrinação.

Observai-me todos, agora:
apoiando na parede os costados,
tocando as minhas melodias
para bolsos já esvaziados.



(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original, sem dispensar a consulta das traduções para inglês de Douglas Hyde e Kevin Bradley). ²





II. (Estou velho)


Estou velho, a minha flor murchou.
Por tantas vezes do rumo me desviei.
Dias houve em que o pecado vivi,
mas em Tua graça esperança terei.



(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original e com consulta da tradução em inglês de Críostóir Ó Floinn) ³







Antoine Ó Raifteirí (Anthony Raftery) (1779/84 - 1835) ⁴








(1) O autor faz uma óbvia referência à sua cegueira. Não nasceu com essa condição, pois muito jovem até trabalhou no estábulo de um proprietário local, em Sligo; adquiriu-a quando contraiu sarampo, também em tenra idade, a doença que sem piedade reclamaria a vida dos seus oito irmãos. Alguns contemporâneos, contudo, afirmaram que Raftery não seria totalmente cego, teria apenas grande dificuldade em ver, sendo capaz de distinguir obstáculos (que se lhe apresentariam em formas bastante enevoadas), mas dado o testemunho do próprio poeta na sua criação... não iremos entrar em discussões pouco significativas. 


(2) O poema, sumariamente biográfico, trata-se no fundo de uma pequena canção, das mais famosas do autor, profundamente humana e adornada por uma certa ironia auto-depreciativa e uma tristeza subtil, aquela que tão bem os autores irlandeses sabiam incutir. 
Uma versão da nota de cinco libras irlandesas chegou a apresentar no seu verso uma gravura onde se podia ler, em gaélico, a primeira quadra do poema. 
Embora as traduções referidas não apresentem rima, esta, por existir no original, manteve-se para a versão portuguesa no mesmo arranjo com que inicialmente surgiu.


(3) Terá sido este o derradeiro poema, sem título, que o autor escreveu em vida, também em gaélico. 
Conta-se a história de uma família que vivia perto do cemitério onde o corpo de Raftery está sepultado, que afirmava que numa noite invernal o poeta dirigia-se até lá, talvez em busca de abrigo, quando subitamente uma falha na sua saúde o fez vacilar. Terá então sido levado até uma outra residência perto do local, onde viria pouco depois a falecer, em plena véspera de natal. A dita família, dado o sucedido, viu o poeta como alguém abençoado, apenas pelo seu falecimento ter ocorrido em dia santo. Como no dia de natal ninguém trabalharia, foi colectado entre os vizinhos dinheiro para comprar um caixão, sendo Raftery enterrado no mesmo dia em que falecera. Se a quadra foi composta já na cama da família que o abrigou... é mistério que ainda não conheceu solução. 
O original apresenta rima e a tradução inglesa consultada manteve-a. Naturalmente, a portuguesa não se iria expurgar dela. Contudo, a versão inglesa foi um pouco mais longe e, para privilegiar rima e sentido, sugeriu palavras que o original não contém. Fiéis a este, pautámos a versão lusitana o mais próximo possível da gaélica, tanto quanto uma transferência do género o poderá permitir. Em inglês, por exemplo, surge a palavra "Deus" na última estrofe, enquanto é sabido que o poeta não a usa directamente («em Tua graça»). Um pouco mais adiante, para efeitos de rima, o tradutor em inglês recorreu à palavra "pray" ("orar"), expressão que Raftery não utiliza no seu poema (apenas "dóchais", ou seja, "esperança"). Ponderando sobre o que foi escrito, foi obviamente dada total prioridade à versão original.


(4) O poeta nasceu em Killedan, condado de Mayo, Irlanda, em 1779 ou 1784. Filho de um tecelão, o único dos nove que sobreviveu ao surto de sarampo, cedo iniciou-se na vida activa por forma a auxiliar monetariamente a sua família de parcos haveres. 
A sua cegueira pode muito bem ter contribuído para o ofício que o celebrizou, dado que era habitual os pais de uma criança cega incentivarem o estudo da música, pelo menos a aprendizagem de um instrumento, por modo a ter uma garantia futura na sua vida, apesar da deficiência física. Foi o que se passou com o nosso poeta, somado a uma voz afinada e a um talento inato para a composição musical e poética. 
Como muitos outros, na época, teve um patrono. Mas por razões que a própria história não define com clareza, dado o elevado número de versões que tentam explicá-la, o patronato não registou um serviço longo. Raftery decidiu-se então a vaguear pelo país, partilhando as suas canções e poemas com quem as quisesse pagar. Esse facto fez do poeta um dos derradeiros poetas errantes da Irlanda, um menestrel, um bardo deambulante - figura muito comum na Irlanda de outrora. Homem de baixa estatura, embora forte e ágil, distinguia-se pelo casaco de lã e calções de veludo que sempre envergava, além da sua fiel rabeca, companhia de tantas canções. 
O seu trabalho teve a peculiaridade de nunca ter sido escrito. Através dos esforços de amigos e admiradores dedicados, as rimas que compôs foram sendo compiladas. 
O grande vulto da literatura irlandesa, W. B. Yeats, foi um dos que mandou erigir junto à campa do poeta, em Craughwell, no condado de Galway, o memorial que em sua homenagem ainda hoje perdura.









(Uma das estátuas erguidas em memória do poeta, na Irlanda)




segunda-feira, 14 de agosto de 2017

QUATRO PATOS NUM LAGO


Quatro patos num lago,
uma orla ervada por afago,
azul primaveril no firmamento,
brancas nuvens ao vento:
que breve momento
a ser por anos lembrado,
em lágrimas recordado!



William Allingham (1824 - 1889) (¹)







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original compilado em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)








(1) Nascido em Ballyshannon, na região de Donegal, William Allingham, não obstante ter sido um funcionário de alfândega, granjearia fama através dos seus poemas de motivos bucólicos, retratando fielmente e com especial sensibilidade cenas e gentes da vida rural irlandesa. "The Faeries", "As Fadas", um dos seus primeiros poemas, ainda hoje pela crítica competente é considerado um dos seus mais bem conseguidos trabalhos. 
Notabilizou-se como uma das principais figuras literárias do movimento Pré-Rafaelita, instaurado em Londres com intenções de ruptura mediante o academicismo inglês e os preceitos classicistas ainda vigentes. O grande poeta W. B. Yeats confessou ter sido substancialmente influenciado pelo trabalho de Allingham. 
Na capital inglesa, precisamente, viria o poeta a falecer aos 65 anos. As suas cinzas foram levadas para a terra natal, tendo sido colocadas no cemitério da igreja local. 
Neste pequeno poema em particular, do qual se manteve o esquema de rima original, sobressai, quase à boa maneira do haiku, a arte de reter em palavras a imagem apreendida, deixando transparecer os efeitos que a mesma causou no "observador-poeta". Influências realistas e naturalistas fazem-se sentir. 
Posteriores autores transformaram este poema numa bonita canção infantil, ainda hoje cantarolada em diversas escolas primárias de língua inglesa. 










("Four ducks on a pond", by Alexander M. Koester)




quinta-feira, 13 de julho de 2017

VERMELHA É A ROSA


Desce a colina, formosa moça irlandesa,
desce a colina até aos braços do teu amado.
Uma rosa escolheste, amor, e eu um voto fiz:
para sempre serás o meu verdadeiro amor.

        Vermelha é a rosa que cresce nos jardins distantes, 
        e belo o lírio, no vale brotando aos rodos;
        pura é a água correndo do Boyne¹,
        mas o meu amor é o mais belo de todos.

Foi pelos verdes bosques de Killarney²
que vagueámos, a lua e as estrelas cintilavam;
o luar incidiu nos cachos dos seus loiros cabelos,
e então jurou para sempre ser o meu amor.

        Vermelha é a rosa que cresce nos jardins distantes, 
        e belo o lírio, no vale brotando aos rodos;
        pura é a água correndo do Boyne,
        mas o meu amor é o mais belo de todos.

Não é pela despedida a dor de minha irmã;
não é pelo sofrimento de minha mãe,
mas pela perda da formosa moça irlandesa
que o meu coração para sempre se parte.



(Anónimo) ³






(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir da letra da canção popular mais comummente utilizada). 



(Embora proponham uma versão do tema com arranjos musicais que o afastam um pouco do seu cariz tradicional, o dueto de Órla Fallon (Celtic Woman) e Tommy Flamming distingue-se de entre os melhores. Por assim o julgar, aqui o propomos: https://www.youtube.com/watch?v=NBS5rqLY68U  ).




(1) O rio Boyne é um dos mais emblemáticos rios irlandeses, tanto pelo seu valor histórico como mitológico. Rico em salmão e truta, nasce no condado de Kildare até, seguindo a direcção de nordeste, desaguar na fronteira dos condados de Meath e Louth. O seu curso distende-se por mais de 100 Km, sempre rodeado pelo denominado "Vale do Boyne". Ao longo do mesmo, diversos castelos, cruzes celtas e ruínas de antigas cidades poderão ser encontrados. A batalha do Boyne, o maior conflito bélico da história da Irlanda, aí teve o seu lugar em 1690. Julga-se que deve o nome à deusa celta Boann, que significa "rainha" ou até "deusa", não sendo de estranhar que a tal figura se conceda a guarda do rio. 


(2) Killarney, do gaélico Cill Airne, que tem a curiosa tradução de "igreja de abrunhos", é uma cidade do sudoeste irlandês com um passado de fortes tradições religiosas. Foi nas suas imediações construído um mosteiro católico no ano de 640, cujo funcionamento permaneceu activo por mais de 800 anos (!), ao longo dos quais inúmeros documentos de grande valor foram aí copiados e produzidos. Dos seus mais procurados monumentos destacam-se o castelo Ross e a catedral de Sta. Maria. 


(3) Tratando-se de uma canção popular, é-lhe extremamente difícil atribuir uma autoria. Mas, investigando um pouco, certos aspectos poderão ser descobertos, desde logo o facto desta bonita canção ter raízes escocesas. É realmente impressionante o quão parecidas são ambas as melodias, e até ao nível da letra certas passagem revelam uma similaridade inquestionável.
A canção de base dá pelo nome de "The Bonnie Banks of Loch Lomond", ou "As formosas Margens do Lago Lomond", um tema celebrativo, não só do lugar que evoca, o lago Lomond, o maior da Escócia, como também para efeitos práticos, pois ainda é costume nesse país tocar-se esta canção no término de certas festividades. No entanto, é preciso sublinhar que a versão mais conhecida da canção não é a sua original. A que acabou sendo mais divulgada obteve publicação em 1841, mas aquela que a originou datará cerca de cem anos antes. Muitos especialistas julgam ter nascido do lamento de um jacobita após a batalha de Culloden, em 1745, que pôs fim à rebelião jacobita, instigada por um herdeiro da Casa de Stuart, por parte do exército britânico. O anónimo autor terá escrito várias linhas onde confessava a sua pena por não voltar a ver o seu amor, já que se encontrava aprisionado e o seu destino era a morte (decapitação, muito provavelmente). 
Já a versão irlandesa do tema, como se observou, parte de uma base totalmente distinta: não é mais do que uma canção de amor que, como muitas outras, acaba num coração partido. Talvez algum irlandês a tenha escutado de um escocês e assim desejado transpô-la para o seu universo pessoal, quem o saberá? A verdade é que os temas tem grandes semelhanças, sem que à versão irlandesa se anexe qualquer referência ao tema-mãe, isto é, uma simples nota dizendo: "inspirado em". Mas dentro do panorama tradicional, ou folk, é algo bastante comum, pois tal cuidado não era tido pelo mais comum dos indivíduos. Portanto, decerto que a melodia foi escutada, apreciada e reinterpretada dentro do universo irlandês. Posteriormente, o famoso cantor Tommy Maken foi o grande responsável pela sua popularização. 
Olhando mais atentamente a letra do poema, não se descobrem grandes causas para o afastamento dos amantes que tanto se queriam, mas diversos entendidos consideram esta canção como sendo uma "canção de emigração". De facto, a chave parece estar no começo da última quadra da canção: «Não é pela despedida a dor de minha irmã» (original: «It's not for the parting that my sister pains»). Ou seja, esta "partida" ou "despedida" foi sendo interpretada pelos estudiosos como um indício de estarmos perante uma referência ao enorme fluxo migratório que se registou na Irlanda durante o período da Grande Fome, nomeadamente entre 1850 e 1852, o que faz sentido, considerando que a canção já existia e já havia sido publicada por essa altura. Assim sendo, talvez seja justo considerar a emigração como a causa do afastamento do jovem casal, ficando o amado na Irlanda enquanto a amada era impelida a partir, provavelmente com a sua família, em busca de uma vida mais digna (Escócia, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos eram os destinos mais comuns).
Sobre esta versão em português, muitos dos termos originais poderiam, em prol da harmonia geral do poema e da necessária condensação dos versos, por serem amiúde muito longos, ter sido traduzidos em outros de maior formalidade e beleza poética, porém o tecido tradicional da canção, simples, ficaria sem dúvida manchado. Portanto, seguindo a mesma toada directa e simples, sem grande laivo poético, se propõe esta versão. Dado que a original só possui rima no refrão da canção, o mesmo preceito foi para a edição portuguesa tido em conta - como, aliás, fará todo o sentido.










(The Emigrant's Farewell, por Henry Doyle)




segunda-feira, 3 de julho de 2017

A ILHA DE INNISFREE


Conheci uns rapazes
que disseram ser eu um sonhador.
Não tenho dúvida que haja
verdade em suas palavras,
pois decerto alguém está condenado a sonhar
quando tudo o que ama está longe.

São as coisas mais preciosas
sonhos rumo ao exílio;
conduzem-nos até à terra
que está do outro lado do mar,
especialmente quando se é um exilado
da bela e amada ilha de Innisfree.

Quando o luar espreita
do cimo dos telhados
desta grandiosa cidade,
por mais magnífico que seja
mal sinto o seu encanto ou riso:
de novo regresso a casa, em Innisfree.

Caminho por verdes colinas,
atravessando vales de sonho;
e encontro uma paz
que nenhum outro lugar conhece.
Escuto pássaros cantando 
melodias compostas para os anjos,
e observo os rios sorrindo
enquanto fluem. 

Então, até uma humilde cabana me dirijo,
o amado lar de sempre,
e com ternura encaro os rostos
das gentes que estimo.
Em redor da turfa ardendo na lareira,
de joelhos flectidos,
o rosário de suas vidas é contado. 

Mas os sonhos não duram,
embora não sejam esquecidos;
e em breve regresso
à austera realidade.
Mesmo que pavimentassem
estes passeios com oiro em pó,
ainda assim preferiria
a minha ilha de Innisfree.



Dick Farrelly (1916 - 1990) ¹





(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original).



(Recomenda-se a belíssima versão apresentada pelo relativamente recente projecto Celtic Woman, que junta à nostalgia do poema a usual suavidade e doçura da voz feminina. Uma receita de sucesso, dir-se-ia -  https://www.youtube.com/watch?v=lh_aO4lT7IU ).





(1) Richard 'Dick' Farrelly foi um poeta e compositor irlandês que igualmente desempenhou funções como... polícia. 
Conta a história que o presente tema, sem dúvida a sua mais famosa produção, foi escrito e musicado durante uma viagem de autocarro desde a sua natal cidade de Kells, no condado de Meath, até Dublin, a capital da República da Irlanda. O tema foi lançado em 1950 e logo captou a atenção do público. Tanto que, dois anos depois, o conceituado realizador John Ford estreia o filme "The Quiet Man" ("O Homem Tranquilo"), com John Wayne e Maureen O'Hara como cabeças de cartaz, em que dá à melodia o estatuto de tema principal, escutado mais de dez vezes ao longo da película. Infelizmente, o seu criador não apareceu creditado na ficha técnica do filme, como lhe seria devido.
Para muitos críticos trata-se de uma das canções mais belas do riquíssimo acervo musical irlandês, e das mais importantes no que toca ao seu teor. De facto, nela o autor reflecte os anseios de todo o emigrante, a saudade sentida por quem está longe da terra que o viu nascer - um assunto que os irlandeses levam muito a peito, dada a história do seu país. O apego à terra e o desejo ardente do regresso fazem, assim, desta canção um instrumento com o qual muitos se poderão identificar. 
Innisfree é uma ilha deserta no norte da Irlanda, mas apesar de ter figurado num poema de Yeats, não é provável que Farrelly se referisse à mesma. Poderia, claro, ter pensado na sua terra natal, da qual partia durante a viagem em que o tema nasceu, mas esta não é uma ilha, pelo que a interpretação mais fiel recai sob a Irlanda em si, disfarçada num nome de interessante conotação. Pois, se "Free" facilmente se traduz em "livre" ou "liberto", "Innis" apresenta uma pronunciação muito próxima sonoramente de "Irish", que significa "irlandês", embora em gaélico "innis" signifique "ilha". Juntando as duas parcelas, talvez o enigma, caso exista, se torne mais claro.
Importa sempre referir que no seu original o poema, de linguagem simples e directa, apresenta uma grande irregularidade em termos de métrica e rima, aparecendo esta somente nos antepenúltimo e último verso de cada estrofe, por modo a rimar quase sempre com o nome da localidade em causa. Por isto, optou-se por retirar nesta versão a hipótese de rima, tornando o texto mais fiel à fluidez que originalmente contém. As estrofes também nem sempre apresentam o mesmo número de versos, e o grosso deste trabalho foi assim dirigido para a tentativa de tornar o texto mais poema do que letra de canção, respeitando sempre os preceitos básicos que se lhe adivinham.
Desde o seu lançamento, dada a fama de que justamente goza, este tema já ganhou vida de muitos modos distintos, através de diversas e competentes vozes, tanto masculinas como femininas, sem nunca expurgar-lhe da nostalgia mágica que exala. "A Ilha de Innisfree" parece, de certo modo, uma bonita utopia, na visão do emigrante que sonha regressar sem nunca o poder, que ganha asas sempre que o primeiro acorde soa no imaginário de cada ouvinte.







(Uma bonita paisagem do condado de Meath, região natal de Farrelly)