segunda-feira, 21 de maio de 2018

DE NOVO UMA NAÇÃO


Quando no sangue tinha dos jovens o ardor,
li sobre esses livres homens ancestrais
que pela Grécia e Roma lutaram sem temor,
trezentos homens e outros três, não mais¹;
então, rezei para que ainda pudesse ver
dos nossos grilhões a libertação,
e a Irlanda, há muito uma província, ser
de novo uma nação! ²

Desde esse tempo, por árduas provações
tal esperança brilhou numa luz distante;
nem pôde o amor, com seus fulgentes clarões,
ofuscar a sóbria cintilação de estrela brilhante;
parecia pairar sobre minha cabeça, observando,
na praça, no campo, no templo de oração;
a sua angelical voz em torno do leito cantando:
de novo uma nação!

Sussurrou, também, que a arca da liberdade
e um serviço nobre e sagrado
seria por sentimentos de obscuridade
e por vãs ou baixas paixões profanado;
mas a mão direita de Deus a Liberdade irá prover,
e um numeroso séquito de divina acção;
os homens honrados devem desta terra fazer
de novo uma nação!

Enquanto ia em homem me tornando,
ajoelhei-me diante de tal chamamento;
e de planos egoístas o espírito fui expurgando,
sem deixar as cruéis paixões ao esquecimento;
assim, espero um dia o meu auxílio dar
- oh, pode tal esperança ser em vão? -, 
quando o meu querido país enfim se tornar
de novo uma nação!




Thomas Osborne Davis (1814 - 1845) ³







(Versão de Pedro Belo Clara a partir da composição original).






(A partir deste poema musicaram-se várias versões, fruto da criatividade de diversos artistas. Para si, estimado leitor, seleccionámos a do popular grupo The Dubliners. Desfrute: https://www.youtube.com/watch?v=88-qgHh31bw ).















(1) Estes «trezentos homens e outros três» são, em primeiro lugar, uma referência aos trezentos espartanos que fizeram frente ao imenso exército persa em 480 a.C., durante a batalha de Termópilas, e os restantes três, ligados a Roma, serão provavelmente fruto duma evocação de Públio Horácio Cocles e de mais dois companheiros que, evitando a invasão da cidade por parte dos etruscos, os defrontaram em plena ponte Sublício, ou Aventino. Eventualmente, pois trata-se de uma lenda, a ponte acabaria demolida - apenas uma das diversas ocasiões em que assim se encontrou. 
É óbvio que a bravura de tais feitos inspirou o autor a transpor o seu exemplo para a realidade irlandesa de então. Em 1842, por exemplo, saiu um livro denominado "Poemas da Antiga Roma", da autoria de Thomas B. Macaulay, onde se conta um que relata a lenda de Horácio. É muito provável que o nosso poeta tenha lido tal obra, tomando assim conhecimento do sucedido pela primeira vez. 



(2) Também nos parece clara a indicação do autor ao referir, de modo constante, o «de novo uma nação», aludindo, portanto, àquilo que a Irlanda era antes da chegada e consequente domínio britânico, governo esse que durou mais de setecentos anos. Recorde-se que a ilha permaneceu livre da influência romana, prosperando sobre as regras tribais e modos de vivência dos celtas, até à sua evangelização por São Patrício. Anos depois, tornou-se num autêntico santuário para diversos monges em busca de silêncio e reclusão. 


(3) Apesar da sua breve vida (viria a falecer com apenas trinta anos, vítima de escarlatina), Davis viria a compor um dos mais célebres hinos que existem em favor da independência da Irlanda. 
Nascido em Mallow, no Condado de Cork, e privado de uma figura paterna desde um mês de idade, sentiu muito cedo em si o apelo independentista. Apesar de ter um pai galês, a mãe descendia de uma nobre família gaélica. O papel que terá essa herança desempenhado no jovem Davis não poderemos afirmar com clareza. A verdade é que este jovem advogado, com grande talento para a poesia, mas principalmente para reunir pessoas em torno da música, das palavras e daquilo que através de ambas se difundia, participou na fundação do movimento "Young Irland", que aliado a um famoso jornal da época tornou-se, em meados do século XIX, uma das principais vozes a exortar à libertação do jugo inglês, dando assim sólida forma aos primeiros passos do nacionalismo irlandês. 
De facto, é isso que este poema-canção faz. Não se estranha, portanto, a sua rápida popularidade desde a edição, em 1844, e mais tarde a elevação quase mítica que o tema experienciou, na longa batalha em favor da independência e, posteriormente, da reunificação do território - ainda não conseguida, acrescente-se. É, por isso, o exemplo perfeito da "Irish Rebel Music", que corresponde sem grande desvio às nossas bem conhecidas canções de intervenção. É curioso constatar, contudo, que ao longo da sua reflexão o poeta instiga os homens honrados e os homens com ligações religiosas a tomarem partido no movimento («numeroso séquito de divina acção»), também certo do seu poder no seio da sociedade irlandesa. É, pois, bastante subtil a sua forma de apelar aos corações de cada um, lançando habilmente as achas para o incêndio que gostaria de ver deflagrar. 
Refira-se que a canção surge muito antes da famosa Revolta da Páscoa. Os únicos movimentos do género com relativo impacto haviam surgido ainda antes do nascimento do autor, em 1798 e 1803. Quem sabe o papel, graças à sua notoriedade, que teve em incitar as futuras rebeliões?
Apesar da originalidade dos versos, diga-se que a melodia escolhida sofreu algumas influências de Mozart. A versão portuguesa que se propõe foi leal ao esquema de rima original, apenas se cortou, preservando assim a sua identidade de poema, aquele que seria o refrão desta canção, e que mais não é do que a repetição do último verso de cada oitava, entremeado com a referência da Irlanda ser há muito uma província. 
Davis não veria o seu «querido país» independente, mas terá sido um dos principais motivadores de tamanha conquista. Esteja onde estiver, decerto estará com um sorriso no rosto.  












4 comentários:

  1. LINDO POEMA DO FUNDO DO CORAÇÃO DE THOMAS O. DAVIS, SONHAMOS SONHOS DE DEMOCRACIA E LIBERTAÇÃO EO BRASIL SER PARA TODOS: POBRES, NEGROS E ÍNDIOS SER AINDA UMA IMENSA E JUSTA NAÇÃO.

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  2. A Utopia de sempre... Quem sabe se um dia não deixará de o ser?
    O fervor do poeta é bem nítido e notável... Não admira que tanta gente, com o passar do tempo, se tenha unido em torno do poema-canção, exortando ao que ele instiga. Felizmente, no caso da Irlanda, a deseja independência surgiu. Custou 700 anos para nascer, e o processo esteve longe de ser pacífico, mas conseguiram implementá-la.
    Muito obrigado pela visita, Lígia.
    Beijos.

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  3. LINDO POETA COM FERVOR COMPARTILHEI PARA A MINHA SAUDOSA UFSM.

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