sexta-feira, 23 de março de 2018

O CONDENADO DE CLONMEL (1)


Quão madrasta a minha sorte,
e vãos os meus lamentos!
A firme corda do destino lança
sobre o jovem pescoço seus tormentos.
Já toda a força me desertou; 
o rosto encova-se e perde expressão,
enquanto definho acorrentado
em Clonmala, na prisão.

Nunca nenhum rapaz da aldeia
foi até hoje mais bondoso:
se jogasse² com uma criança
o meu jogo não seria rigoroso.
Dançaria sem qualquer fadiga
de manhã até ao anoitecer,
e a bola que à baliza lançasse
os relâmpagos do Céu iria conhecer.

Aos pés da minha cama, apodrecendo,
o meu bastão de jogo repoisa;
pelos rapazes da aldeia voa
a minha bola, como simples coisa;
o meu cavalo abandonado
pode o hábito do trabalho perder,
enquanto na prisão de Clonmala
em correntes me vejo enfraquecer.

No Domingo próximo, o patrono
estará em casa como guardião;
e os jovens e sadios hurlers
o campo de jogo varrerão. 
Com a dança de doce raparigas
o anoitecer consagrar-se-á,
enquanto este coração, outrora alegre,
em Clonmala esfriará.




(Anónimo - provavelmente séc. XVIII) ³







(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa, desde o original em gaélico, de J.J. Callanan (Cork, 1795 - Lisboa, 1829), compilado em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)





(Caso o leitor pretenda escutar a versão musicada do tema, propõe-se a interpretação de Liam Clancy, nome maior do folk irlandês: https://www.youtube.com/watch?v=sQp4ugV7rtg )







(1) Clonmel, em gaélico Cluain Meala, ou "o prado do mel", é a capital do condado de Tipperary, no sul da República da Irlanda. 
A cidade ficou famosa por resistir estoicamente, no século XVII, ao cerco levantado por Oliver Cromwell, aquando de uma invasão inglesa do território para pôr cobro a diversos focos revoltosos. Apesar dos esforços, a capitulação foi inevitável - mas a guarnição sitiada conseguiu escapar a meio da noite.
O outro termo que o tradutor decidiu utilizar, "Clonmala", é somente uma diferente anglicização do nome da cidade em gaélico. 


(2) O jogo em causa, e ao qual se fazem diversas referências ao longo do poema-canção, é o Hurling, um jogo tradicional irlandês de origem celta. 
Semelhante ao hóquei de campo, julga-se que seja jogado há cerca de três mil anos, não obstante as naturais alterações de regras. É um dos desportos mais populares na Irlanda, e tempos houve em que era disputado com tremenda pompa e zelo entre paróquias, províncias e até condados. Letrado ou camponês, todos tinham a ele um livre acesso.
Actualmente, o jogo comporta quinze jogadores de campo por equipa, munidos de um capacete, e as balizas têm postes superiores, como no rugby, e uma rede abaixo destes, como no futebol. A pontuação difere consoante por onde a bola passe. Os hurlers citados no poema são obviamente os praticantes deste desporto que incorpora os "Jogos Gaélicos", disputados anualmente.
Pode parecer natural situar o condenado que nos conta os seus lamentos num espaço temporal em que deste jogo se elaboravam grandes festejos, bem como ver nele um regular praticante deste desporto. Será isso totalmente verdade? Em breve veremos. Por ora, repare-se como admite que, por ser bondoso e gentil, não levava o jogo a sério quando jogava contra uma criança, como lamenta que o seu bastão esteja a apodrecer e a sua bola saltite por entre as mãos dos jovens da sua aldeia. Um pouco mais à frente, existem referências a todo o clima de festa que circundava a realização destas partidas: o patrono (patron, em inglês), que se presume ser um santo, a zelar pela equipa, os rapazes a varrerem o campo (ideia que o uso do bastão no jogo sugere), as danças de belas raparigas a encerrar a noite. O condenado, sozinho, apenas poderá lamentar a sua "sorte madrasta".


(3) Este poema, que posteriormente seria musicado, surge antologiado pela primeira vez em 1845, num livro organizado por Charles Duffy. Desde logo se creditou como anónimo, pertença da tradição oral, devendo-se, como disso já se fez nota, a tradução ao poeta e professor J.J. Callanan, que curiosamente viria a falecer em Lisboa. 
A sua ligação ao desporto denominado Hurling é deveras notória. Apesar da sua grande popularidade na Irlanda, sabe-se que só a partir de 1870 é que se deu a ressurreição do jogo. Em décadas imediatamente anteriores a essa, só em pequenas partes da Irlanda é que se continuava a sua prática, pelo que será seguro afirmar que o autor do poema, ou o seu protagonista, caso se tratem de indivíduos diferentes, terá residido num desses locais. Mesmo havendo a referência à cidade de Clonmel, não significa que o jovem condenado fosse daí originário. 
O poema tem a sua antiguidade, tanto mais que foi escrito em gaélico. Não será um critério exclusivo, mas ajudará a atestar a sua idade. No entanto, ainda sobeja a questão: que crime tão hediondo terá cometido este jovem que adorava dançar e jogar Hurling para ter o destino da forca? Se seguirmos um critério histórico, deparamo-nos com a rebelião de 1848, mas aí é sabido que os conspiradores, apesar de capturados, julgados e condenados à forca, foram posteriormente perdoados de tal fim. Além disso, a data do livro de Duffy, sendo anterior, não permite aceitar tal ideia. Recuando ainda mais, temos a insurreição de Emmet, um nacionalista irlandês que por conta do seu crime faleceu na tenra idade de vinte e cinco anos, em 1803. Contudo, ainda não valida a data que o tradutor lhe colocou. Sobra, portanto, a malograda revolta de 1798, mas sem qualquer suporte válido torna-se uma ideia tão bela quanto qualquer outra.
Apenas se sabe que em Clonmel esteve preso este jovem que parecia ter ainda tanto para viver. O seu amado desporto foi abandonado, o seu cavalo de trabalho deixado vaguear pela vizinhança, as belas raparigas continuaram a dançar sem ele. Seja qual tenha sido o crime, ainda em vida sofreu as duras consequências do seu acto. Justamente? Ora, esta parece ser a questão central. Baseando-se em dois versos que parecem atestar a sua inocência («Nunca nenhum rapaz da aldeia / foi até hoje mais bondoso»), certos estudiosos afirmam que o pobre jovem terá sido condenado sem causa válida, daí o lamento. No século XVIII, conforme datou o poema o seu tradutor, existiu de facto um grupo secreto de revoltosos irlandeses denominado "whiteboys", ou "rapazes brancos", que essencialmente empreendia acções violentas contra nobres ou proprietários de grandes terras em benefícios dos agricultores ou do trabalhador mais humilde que aí operasse. A situação descontrolou-se ao ponto de ser necessária uma intervenção militar para terminar com o movimento. Segundo essa óptica, este pobre rapaz foi erroneamente identificado como um membro do grupo rebelde, sofrendo então o seu trágico fim.
Pela grande simpatia que o povo irlandês parece nutrir para com poemas e canções que retratem prisioneiros, nomeadamente revoltosos contra o domínio britânico, este tema figura entre os mais célebres do género no cancioneiro tradicional do país.






(The Convict, por Marcus Stone (1840 - 1921))



sexta-feira, 9 de março de 2018

A ROSA DE TRALEE


A pálida lua erguia-se sobre o verde monte,
o sol tombava por detrás do azul mar; assim os vi,
enquanto deambulava com o meu amor até à fonte
cristalina que nasce no belo vale de Tralee¹.

        Era encantadora e bela como a rosa do verão,
        ainda que não fosse só a beleza a me cativar;
        foi a verdade daqueles olhos, a cada amanhecer,
        que Mary, a Rosa de Tralee, me fez amar.

As frias sombras do anoitecer o seu manto abriam,
e Mary, sorrindo, escutava-me com atenção;
pelo vale, os lívidos raios lunares se vertiam,
quando da Rosa de Tralee ganhei o coração.

        Embora encantadora e bela como rosa de verão,
        não foi só a sua beleza a me cativar;
        foi a verdade daqueles olhos, a cada amanhecer,
        que Mary, a Rosa de Tralee, me fez amar.

Na Índia distante, nas agitações da guerra que farta,
a sua voz foi um alívio, todo o conforto que senti;
mas a gélida mão da morte agora nos aparta.
Estou só nesta noite, sem a minha Rosa de Tralee.

        Era encantadora e bela como a rosa do verão,
        ainda que não fosse só a beleza a me cativar;
        foi a verdade daqueles olhos, a cada amanhecer,
        que Mary, a Rosa de Tralee, me fez amar.





William Pembroke Mulchinok (1820 - 1864) ²





(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir do original, com a preservação do esquema de rima escolhido pelo autor.)




(De entre as variadíssimas versões deste tema, sugere-se a de John McDermott, certamente uma das mais bem conseguidas: https://www.youtube.com/watch?v=uj9h1Vp5x3c . Desfrute.)






(1) Tralee, ou Tráigh Lí, significando "Vertente ou Margem do Lee" (um rio), é a maior cidade do condado de Kerry, na região sudoeste da Irlanda, sendo igualmente a sua capital. 
Além de ser o local de confluência de vários pequenos rios, de Tralee partia, em tempos muito remotos, uma estrada que atravessava as montanhas a sul do lugar, e cujos vestígios ainda são identificáveis. Por essa rota, é possível chegar a um conjunto de rochas ordenados com um rochedo no topo chamado "O túmulo de Scotia", pois julga-se que uma filha de um faraó egípcio tenha aí sido enterrada, conferindo à localidade uma importância histórica tremenda. (Scotia ou Scota, que significa "rebento de flor", é considerada, para efeitos mitológicos, a mãe dos irlandeses, sendo mais tarde a partir daí que a Escócia receberia o seu nome). 
A cidade foi fundada no século treze por anglo-normandos, tendo sido incendiada por ordem de Isabel I de Inglaterra, em 1580, como retribuição pelo papel dos locais numa rebelião contra a coroa inglesa. 



(2) Apesar deste popular tema do cancioneiro tradicional irlandês ser por vezes atribuído a  um outro autor, parece existirem cada vez mais evidências que fazem de Mulchinok o seu criador por completo direito. Este, autor de diversos poemas, e que em diversos meios nem é tido por poeta de renome, nasceu em Tralee, no seio de uma abastada família protestante.
A canção-poema que hoje se apresenta terá surgido numa fase inicial da sua vida de adulto, pois professa a profunda paixão que nutriu por uma rapariga católica de origens muito humildes, Mary O'Connor. Natural da mesma região, era filha de um sapateiro e de uma empregada doméstica. Aos dezassete anos entra na casa dos Mulchinok como ajudante de cozinha, mas rapidamente assume o papel de ama das sobrinhas do poeta. É precisamente numa das visitas que este realiza às suas sobrinhas que encontra pela primeira vez Mary e por ela se apaixona perdidamente.
A família, como seria de esperar, não recebeu bem a notícia, tendo ficado especialmente alarmada quando soube que William escrevia e enviava poemas para Mary. Ademais, na mesma altura descobre que o jovem poeta contribuía literariamente para o jornal "The Nation", uma publicação subversiva que aclamava a revolta armada de todos os irlandeses contra a coroa britânica. Ora, a família, sendo protestante, era totalmente leal à soberania inglesa.
Em 1843, William liderou um grupo de homens modestamente armados até ao lugar onde se daria uma discussão eleitoral. Uma escaramuça entre grupos rivais tem início e um homem acaba por morrer. Fatidicamente, as autoridades responsabilizam William pelo acto. Encontrava-se já noivo de Mary, mas com um mandato de captura por homicídio em seu nome a circular, rapidamente compreende que deve deixar o país. Assim, embarca para a Índia, onde se torna correspondente de guerra.
É durante este período da sua vida, pelas cartas que então ia escrevendo, que se verifica o aparecimento do carinhoso nome que deu à sua amada, a "Rosa de Tralee". Presente em muitas das suas linhas, faz-nos crer, pelo modo corrente do seu uso, que o apelido terá surgido ainda antes da sua partida para o oriente.
Graças ao notável trabalho de cobertura no território, as autoridades militares decidem mais tarde intervir a seu favor no processo, ilibando-o de todas as acusações. Assim, na primavera de 1849 regressa finalmente à sua terra natal. Infelizmente, e este é sem dúvida o aspecto mais implacável e trágico da sua existência relativamente curta, o dia em que chega a Tralee é precisamente o mesmo do funeral da sua bem amada. 
Embora devastado, apressa-se a casar com uma mulher que conhecia há largos anos e a partir com ela para os Estados Unidos. Torna-se pai de dois filhos, publica (em 1851) uma colecção dos seus poemas e em 1855 decide regressar à Irlanda, deixando a mulher e dois filhos para trás. 
Ainda oprimido pelos trágicos acontecimentos que se abateram sobre ele e Mary, além do próprio falhanço do seu casamento, entrega-se tristemente a uma vida de alcoólatra, decisão essa que contribuiria fortemente para o seu rápido fim de vida.
Resta acrescentar que a melodia feita para este poema é da autoria do violinista inglês Charles William Glover, falecido um ano antes de William. O tema adquiriu renome internacional quando John McCormack o cantou em "Song O' My Heart", de 1930. Desde 1959 realiza-se em Tralee um concurso de beleza, dos mais importantes a nível nacional, que anualmente elege a nova "rosa de Tralee".





(Mary O'Connor e William P. Mulchinok, ambos segurando uma rosa
na estátua erguida em sua memória)