quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O CÂNTICO DE WEXFORD (Todos vós, gente de bem)



Todos vós, gente de bem, na quadra presente
Meditem com atenção, tenham em mente
O que pelo bom Deus se fez realizado:
O envio à terra de Seu filho bem-amado.
Seja com Santa Maria feita uma oração
A Deus, neste dia, com amor no coração.
Em Belém, ao raiar dum novo dia,
O nosso Messias abençoado nascia.

Na noite anterior ao feliz acontecimento,
A virgem e seu guia, em passo lento,
Por muito tempo não deixaram de procurar
Na vila um sítio onde pudessem pernoitar.
Vejam agora como tudo se sucedeu:
Toda a porta se fechou, para lamento seu;
Tal como fora predito, apenas sobrou
Um humilde estábulo, que se não recusou.

Perto de Belém pastores se encontravam,
Rebanhos de cordeiros e ovelhas vigiavam;
Os anjos do Senhor vieram em aparição,
E tal surpresa pô-los em tamanha agitação.
Aprontem-se, disseram os anjos do Senhor,
E partam para Belém, sem nenhum temor,
E aí encontrarão, nesta manhã feliz,
Acabado de nascer, Jesus, príncipe petiz.

De coração grato e no espírito a esperança,
Foram ao encontro da sagrada criança.
E assim, como pelos anjos fora profetizado,
O Salvador pelos pastores foi admirado.
Numa manjedoura deposto, dormitava;
A Santa Virgem a Seu lado estava,
Zelando para que nada o pudesse afligir,
Ele que nasceu para todo o conflito extinguir.

De longe vieram três Magos Reis, chegando
Pela graça duma grande estrela cintilando.
Por tanto tempo vaguearam sem parar,
Até o repouso de Jesus enfim encontrar.
E quando descobriram, passados dias,
O lugar onde descansava o Messias,
Humildemente a Seus pés se lançaram
E com o oiro e incenso o presentearam.





Tradicional (da Irlanda - prov. séc. XII) ¹







(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa do tema.)












(1) É certamente um dos temas natalícios mais famosos da Irlanda. A sua origem é medieval, e enquanto vários estudiosos afirmam que se deverá datá-lo como sendo pertença do século XII, outros afirmam que pelo estilo de composição, escrita e musical, é mais provável que tenha nascido nos séculos XV ou XVI. 
Pouco importa, na verdade. Até porque o cântico permaneceu por vários séculos quase na obscuridade. Ou seja, era algo conhecido localmente, mais um tema de autor incerto que era popularmente conotado com o Natal e passava, de boca em boca, ainda em gaélico, para as gerações seguintes. Mas graças ao trabalho de  William Grattan Flood (1859 - 1928) o tema ressurgiu após séculos de quase esquecimento e adquiriu uma notoriedade nunca antes alcançada.
Flood foi um destacado historiador, musicólogo, compositor e autor irlandês, e a dada altura registou este tema directamente da boca dum cantor local. Flood era também organista e o director musical da catedral de St. Aidan, em Enniscorthy, no condado de Wexford. Quando recolheu o tema, editou-o num livro que compilava outros cânticos natalícios - e assim se deu o primeiro passo para a difusão do cântico, até atingir a universalidade de que hoje desfruta. 
Por via do labor de Flood, o cântico deu notoriedade à cidade de Enniscorthy, tanto que concede a noção de aí ter sido composto. No entanto, é mais comum apresentar-se com o nome do condado, ou seja, Wexford, pelo que assim decidimos mantê-lo. (Também é possível encontrá-lo a usar o primeiro verso como título). 
Os mais interessados poderão escutar uma versão (de várias existentes) do tema, interpretado pelo famoso projecto Celtic Woman. Basta clicar na seguinte ligação: https://www.youtube.com/watch?v=jvi8DAGUu5I . Importa acrescentar que a versão que no vídeo é possível escutar não contempla o texto integral do cântico, confirme aqui se traduziu. 


A todos os nossos estimados amigos leitores, desejamos umas festas felizes. 










"The Christmas Tree",
de Albert C. Tayler
(1862–1925)


terça-feira, 23 de novembro de 2021

Três poemas de Amor (e seus derivantes, digamos assim) de W. B. Yeats


I. O PENOSO PARTO DA PAIXÃO



Quando a angelical, flamejante porta num clamor de alaúdes se escancara;
Quando uma paixão imortal respira em argila ao efémero fadada;
Nossos corações o flagelo suportam, a coroa de espinhos, a estrada
Povoada de amargos rostos, na palma e no flanco a escara,
A esponja pesada de vinagre, as flores dum ribeiro apaziguado;
Sobre ti debruçados, o cabelo deixaremos caído,
Para que um leve perfume se desprenda, de orvalho embebido,
Lírios de esperança em palidez mortal, rosas de sonho apaixonado.





II. O AMANTE FALA DA ROSA NO SEU CORAÇÃO



Todas as coisas incomuns e quebradas, todas as coisas gastas e ancestrais,
O choro duma criança na estrada, o ranger duma carroça em desconjunção,
Os pesados passos dum lavrador chapinhando os bolores invernais,
Mancham tua imagem que desponta uma rosa no fundo do coração.

O mal feito pelas coisas informes é maior do que se tem contado;
Anseio por recriá-las e sentar-me num verde monte em solidão,
Com a terra e o céu e a água refeitos, como um caixão doirado
Para meus sonhos de tua imagem que uma rosa abre no fundo do coração.





III. ELE OFERECE À SUA AMADA ALGUNS VERSOS



Prende o teu cabelo com um alfinete doirado,
Segura toda a madeixa vagabunda;
Ordenei que o coração compusesse estes versos banais:
Neles trabalhou todo o dia, dedicado,
Edificando uma triste graciosidade, profunda,
De batalhas de tempos ancestrais.

Basta ergueres tua mão de pálida pérola vestida,
Prender teu longo cabelo e suspirar;
E os corações de todos os homens ardem e se descompassam;
E a espuma como uma vela sobre a areia enegrecida,
E as estrelas subindo um céu d’orvalho a cintilar
Vivem somente para iluminar teus pés que passam.





William Butler Yeats (1865 - 1939)










(Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais publicados na obra The Wind Among The Reeds, primeiramente editada em 1899.)













(Retrato a carvão de Yeats por John S. Sargent - 1908)



domingo, 31 de outubro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 5

 

BRUXAS DISFARÇADAS DE LEBRES

 
 
 
      Um jovem rapaz, na ilha de Lismore¹, havia saído para caçar. Perto de Balnagown Loch², descobriu uma lebre e sem hesitar disparou sobre ela. O animal soltou um grito que não era deste mundo, e só então ao jovem ocorreu o facto de não existirem lebres em Lismore. Cheio de medo, largou a sua espingarda e desatou a correu em direcção a casa.
         No dia seguinte, regressou ao local para resgatar a arma e ouviu dizer que uma certa mulher, tida na vizinhança como bruxa, estava de cama com uma perna partida. Um tempo depois, essa mulher encontrou o rapaz e pregou-lhe uma valente sova. O episódio corroeu-o por dentro, e o rapaz nunca mais se endireitou. Ficava longos tempos a olhar o vazio, cismando. Tornou-se um ocioso, um inútil.
           
***
 
      Um Manxman³, que há alguns anos atrás estava em Tiree⁴, contou a seguinte história.
       Um grupo de homens estava à caça e não conseguia encontrar uma só lebre. Uma senhora idosa, sabendo disto, disse ao seu neto que fosse ao encontro dos senhores e que lhes indicasse o lugar onde poderiam encontrar lebres, pedindo por tal informação meia coroa.  
         O rapaz assim fez: encontrou os homens, recebeu o seu dinheiro e guiou-os ao local que a sua avó havia indicado. Quando encontraram uma lebre, o rapaz de súbito gritou: «Corre, Avó! Corre!». A lebre começou a correr na direcção da casa da velha senhora, mas os cães que caçadores traziam seguiram-na. Contudo, nas traseiras da dita casa perderam o rastro à lebre. A velha senhora foi encontrada lá dentro, tranquilamente sentada à sua lareira.
 
***
 
      Conta-se, em Wigtonshire⁵, que uma lebre foi vista a correr chaminé acima e que uma mulher, suspeita de bruxaria, apareceu com os pés queimados.
 
 
 
 
 

(Editado pela primeira vez por J. G. Campbell, in “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902.)
 
 
 
 
 
 



(Versão de Pedro Belo Clara a partir da edição de Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)












(1) Uma pequena ilha, de pouco mais de 2000 hectares, situada nas Hébridas Interiores, na Escócia. Actualmente alberga menos de 200 habitantes. 


(2) Um lago dessa ilha.


(3) Habitante da Ilha de Man, que se situa no mar da Irlanda, entre a Inglaterra e a Irlanda do Norte.


(4) A ilha mais ocidental das Hébridas Interiores. Nela habitam cerca de 650 pessoas.


(5) Um antigo condado escocês situado na região sudoeste do país. 













(autor desconhecido)


sábado, 16 de outubro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 4


Nas colinas de Ross-shire¹, um velho homem, que no seu tempo não fora propriamente gentil, falecera na casa do filho, uma cabana solitária, afastada das restantes casas.

O morto foi colocado numa mesa dum pequeno quarto, e o seu filho pastor, deixando mulher e filhos na cabana, partiu para o vale à procura de pessoas para assistir ao velório e depois ao funeral.

À meia-noite, uma das crianças, que ainda brincava pela casa, espreitou pela fechadura do quarto e gritou: “Mãe, mãe! O avô está a levantar-se!”.

A porta do quarto foi num ápice trancada, e o falecido, apercebendo-se que não a conseguia abrir, começou por arranhar e depois escavar a terra por debaixo da porta, tentando abrir uma passagem para a sua fuga.

As crianças correram para junto da mãe, e em terror escutavam aquele som sinistro. 

Por fim, a cabeça do morto apareceu por debaixo da porta. O cadáver redobrou, então, os seus esforços para escapar, aumentando assim, se possível fosse, o horror da pobre mãe e das suas crianças.

O corpo já havia saído pela metade quando o galo cantou. Subitamente, o morto perdeu as suas forças, caindo inerte na própria cova que abrira.

Desde esse dia nunca mais se conseguiu cobrir totalmente aquele buraco. O chão da casa tinha sempre um declive nesse preciso lugar.







(Narrador anónimo. Editado pela primeira vez por J. G. Campbell, in “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902.)









(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da versão editada por Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)










(1) Um antigo condado escocês, cuja capital era Dingwall, uma cidade que actualmente alberga pouco mais que cinco mil habitantes. Situado nas Terras Altas, foi anexado administrativamente às regiões circundantes em 1975, adoptando, como as demais, essa mesma designação.











(Autor desconhecido)


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 3

 

       Uma manhã, bem cedo, ia eu a caminho da casa de Allan MacDonald. Seguia o meu rumo e, a dada altura, caminhava junto a um monte de turfa, erguido como se uma parede fosse; do nada, caí ao chão. Não dei grande importância ao caso, mas uns meros segundos depois o mesmo aconteceu. Culpei-me pela falta de atenção nos meus próprios passos; levantei-me e segui caminho – mas logo depois voltei a cair. Olhei em volta e julguei ver a sombra duma mulher ao meu lado. Quando me ergui e voltei a caminhar, senti, ou assim me pareceu, que algo me tocava no ombro, e então caí outra vez. Após o sucedido, decidi que não voltaria a levantar-me; assim, fui de joelhos até à casa onde me dirigia – e a sombra foi no meu encalço, mas não voltou a tocar-me.

      Na noite seguinte, fui ao velório duma velha senhora que havia falecido numa quinta. Perguntaram-me se poderia voltar no dia seguinte e trazer cordas para levar o caixão à terra; e eu fui, levando as cordas no bolso que estava do lado donde insistentemente me empurravam para o chão, naquele estranho dia.

Não possuo outra explicação para este fenómeno se não a seguinte: foi a velha senhora que então falecera que caminhou ao meu lado e tantas vezes, sem explicação aparente, me fez cair.

 


- Alexander Brown, Balefuil. 

(Relato colectado pela primeira vez na obra "Records of Argyll: Legends, Traditions and Recollections of Argyllshire Highlanders", de Archibald Campbell, 1885.)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir do compilado na obra de Neil Philip: "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)















(Autoria: Steve Outram)


sábado, 4 de setembro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 2


A PATA CINZENTA


 

(É esta, muito provavelmente, a mais conhecida e popular história nas Terras Altas. Raro é aí haver uma velha igreja que não seja apontada como o lugar onde o seguinte caso se deu.)

 

 

      Na grande igreja de Beauly¹ ocorriam de noite avistamentos estranhos e escutavam-se sons misteriosos, coisas não deste mundo, e ninguém que tivesse visitado o pátio da igreja ou o cemitério adjacente a horas tais regressou para contar a história.

      Um alfaiate destemido propôs-se a resolver o caso, apostando que numa qualquer noite iria até à igreja assombrada e aí permaneceria durante o tempo que demorasse a costurar um par de calças.  

Não tardou a lançar-se ao caminho e assim a iniciar a tarefa a que se propôs.  

        A luz da lua cheia trespassava os vitrais da igreja, e num primeiro momento tudo estava silencioso. Contudo, à meia-noite, hora morta, uma grande e medonha cabeça emergiu duma tumba, dizendo:

 Observa a velha vaca cinzenta que não tem o que comer, alfaiate.

Este respondeu:

 Vejo o que dizes e costuro estas calças.

Logo notou que, enquanto ele falava, o fantasma permanecia quieto, mas quando retomava o seu fôlego este parecia aumentar de tamanho.

     Já era agora visível o pescoço, suportando a cabeça medonha. Então, o fantasma disse:

 Observa a comprida doninha grisalha que está sem alimento, alfaiate.

O pobre homem continuava o seu trabalho temerosamente, mas ainda assim respondeu-lhe:

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças. – disse, arrastando cada palavra o mais que conseguiu. Por fim, a voz falhou-lhe e não teve alternativa se não inspirar profundamente.

            A aparição cresceu ainda mais e disse:

 Um comprido braço cinzento que está sem carne ou alimento, alfaiate.

O alfaiate, que já tremia, não abandonou o seu trabalho enquanto respondia:

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças.

     Com um novo fôlego, a coxa da aparição tornou-se visível e, medonha, continuou:

 Uma comprida e torna perna, alfaiate, que carne não tem.

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças.

Um longo e descarnado braço esticava-se já na direcção do alfaiate:

 Uma comprida pata cinzenta sem sangue ou carne, alfaiate. – dissera a aparição.

Quase a terminar o seu trabalho, o alfaiate respondeu de novo:

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças.

Continuava o seu labor com um coração cada vez mais fraco, o alfaiate. Por fim, teve de respirar novamente, e o fantasma, esticando os seus dedos esguios e ossudos, começando a tactear o ar diante do pobre homem, disse:

 Uma grande garra cinzenta que está sem carne para se suster, alfaiate.

Nesse mesmo momento, o corajoso homem deu o último ponto nas suas calças e, sem hesitar, alimentado pelo pânico, desatou a correr em direcção da porta. A garra, porém, alcançou-o, e num movimento os dedos ossudos, empurrando o alfaiate contra o batente da porta, agarraram apenas a peça que este havia costurado.

O alfaiate estremecera de cima a baixo, tomado pelo terror, e de tal modo correu a caminho de casa que até poderia cortar as ervas do caminho com a velocidade do seu passo… 

Ainda hoje se diz ser possível observar a marca da mão fantasmagórica na porta da malfadada igreja.

 

 

 

 

(Narrador anónimo. Editado pela primeira vez por J. G. Campbell em “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902. )





(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da versão editada por Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books,  1995.)







(1) Vila do condado de Inverness, nas Terras Altas escocesas, perto do rio com o mesmo nome.










"A Haunted Church",
de John Patience.

domingo, 22 de agosto de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 1



Estava uma noite em certa casa, em Balefuil¹, na companhia de vários rapazes. Quando estávamos todos sentados a conversar, vi a aparição duma mulher morta, envolta na sua mortalha, a dirigir-se para a casa. Dei uns passos atrás para a deixar passar. Ela continuou na direcção de Hugh Brown, de Manal¹, e foi como se o trespassasse. Imediatamente ele ficou pálido e indisposto, ergueu-se e saiu para o exterior. Sabendo o que se poderia passar com ele, segui-o. Lá fora começou a vomitar, e pouco depois começou a tomar os ares de quem vai desfalecer. Quando se recompôs, perguntaram o que lhe tinha acontecido. Ele disse que não sabia, mas que sentira um grande peso cair sobre si repentinamente, e então viu-se fatigado e doente, e prestes a desmaiar, e então pensou que se saísse dali e fosse apanhar ar fresco se sentiria melhor. Algum tempo depois, contei-lhe tudo o que tinha visto antes do caso se dar. 





- John MacDonald, de Balefuil.
(Relato colectado pela primeira vez na obra "Records of Argyll: Legends, Traditions and Recollections of Argyllshire Highlanders", de Archibald Campbell, 1885.)











(1) Localidades do condado de Argyll, situado na região ocidental da Escócia. 














(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da obra de Neil Philip: "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)











The Moon Over The Lake,
John Piper
(1903 - 1992)



domingo, 4 de julho de 2021

COMO LOWRI DAFYDD GANHOU UMA BOLSA DE OURO


Lowri Dafydd era uma curandeira muito afamada em Gales.

Um dia, quando se preparava para ir visitar uma mulher doente, aproximou-se dela um homem alto e esbelto montado num cavalo cinzento que lhe pediu para o acompanhar. Lowri Dafydd montou no cavalo atrás dele e seguiram a galope até Cwm Hafod Ruffydd. 

Lowri Dafydd não podia acreditar nos seus olhos, pois o homem tinha-a conduzido até uma magnífica mansão iluminada por milhares de lanternas. Assim que entrou no salão da casa, uma legião de criados apareceu para a cumprimentar. Depois guiaram-na até um quarto sumptuoso como ela nunca tinha visto. Deitada numa cama, estava a senhora da casa.

Lowri Dafydd cuidou da sua paciente com toda a atenção e carinho, e permaneceu ao pé dela até recuperar. Quando isso aconteceu, a casa encheu-se de alegria e Lowri pôde participar numa festa que durou vários dias e várias noites. Foi um dos momentos mais felizes da sua vida. 

Quando as festividades terminaram, o homem alto e esbelto entregou a Lowri uma bolsa grande e pesada, dizendo-lhe que não a deveria abrir até que chegasse a casa. Lowri assim fez.

Logo que entrou em casa, cheia de curiosidade, abriu a bolsa e verificou com espanto que estava cheia de moedas de ouro. Viveu feliz e com muito dinheiro até ao fim dos seus dias. 





(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo".)










(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)








A Fair Maiden,
de C. S. Lidderdale
(1831 - 1895)


quinta-feira, 24 de junho de 2021

A CIDADE QUE BEM AMEI


Guardarei sempre na lembrança
A cidade que muito amei:
As partidas de futebol junto ao muro do pátio do gás
E os nossos risos por entre o fumo e o cheiro;
O regresso a casa em dias de chuva, correndo pela escura 
     travessa acima,
Passando a prisão, seguindo para além da fonte.
Foram, por muitas razões, dias felizes
Na cidade que bem amei.

De manhã cedo, a buzina da fábrica de camisas
Chamava as mulheres de Creggan¹, da charneca e do brejo,
Enquanto os homens, vivendo de subsídios, faziam a vez das 
     mães,
Alimentando as crianças e passeando os cães.
E quando os tempos endureceram, do pouco que tinham 
     viveram,
E tudo se suportou sem qualquer queixume;
Pois dentro latejava um orgulho ardente
Pela cidade que bem amei.

Havia música no ar de Derry²,
Como uma fala que todos podíamos compreender.
Lembro o dia em que recebi o meu primeiro ordenado,
Quando tocava numa pequena banda de improviso.
Aí passei os dias da juventude, e para dizer a verdade
Entristeceu-me deixar tudo para trás;
Pois aprendera o que é vida e encontrara uma esposa
Na cidade que bem amei.

Quando regressei, oh, como me arderam os olhos,
Ao ver como uma cidade pode ser vergada
Por carros blindados e bares em ruínas
E o gás infiltrado em cada brisa.
O exército instalou-se junto do muro do velho pátio do gás,
E o maldito arame farpado cresce sem cessar.
Com as suas bombas e os seus tanques,
Oh, Deus meu, que fizeram eles
À cidade que bem amei?

A música desapareceu, embora as suas gentes perseverem:
O seu espírito foi magoado, mas jamais se quebrará.
Nunca esquecerão este tempo, mas os corações já vivem
Nesse dia que, nascendo, trará de volta a paz.
O que foi feito feito está, o que se ganhou ganho ficou
E o que se perdeu perdeu-se para sempre.
Apenas poderei rezar por novos dias de luz
Na cidade que bem amei. 




Phil Coulter (1942)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original.)











(Escolhemos a versão dos The Dubliners, que poderá escutar aqui: https://www.youtube.com/watch?v=GaAze9IQpqI )











(1) Uma urbanização situada no extremo oeste da cidade de Derry, construída na década de sessenta para albergar uma população cada vez mais numerosa. Neste lugar, habitavam maioritariamente famílias católicas, mas as condições eram muito precárias. As restantes referências que este verso nos oferece são também nomes de outros bairros sociais da cidade, escritos nos seus termos mais populares.



(2) A cidade natal do autor, situada na Irlanda do Norte, oficialmente designada Londonderry. É a segunda maior cidade do território e foi o lugar onde se originaram as primeiras querelas em prol dos direitos civis, no final da década de sessenta. As dolorosas consequências desse acto, de certa forma, são retratadas ao longo do poema. 









(Vista de uma das ruas de Londonderry, na Irlanda do Norte)
(Fonte: The Chaotic Scot)


quarta-feira, 2 de junho de 2021

O LUGAR DA LIBERDADE

 
Não há mansão por rica que seja
Que valha o conforto da minha choupana.
No alto as estrelas, dádiva do Céu,
O Sol e a luz e o brilho da Lua.

Pela mão dos Anjos e seu engenho foi posta de pé
- É esta uma história que hei-de contar.
E o meu Senhor, o Deus das Alturas,
Deu-lhe um telhado feito de colmo.

Na minha morada a chuva não cai
E não há que temer espadas e lanças.
É um lugar onde se goza a liberdade,
Jardim aberto sem sebe em redor.



Anónimo.
(Irlanda, séc. IX)










(Tradução de José Domingos Morais in "A Perfeita Harmonia - Poemas Celtas da Natureza", Assírio & Alvim, Julho de 2004).
















(Fonte: decoist.com)



segunda-feira, 17 de maio de 2021

NÓS OS TRÊS, HOMENS DAS TERRAS ALTAS


Três jovens oriundos das Terras Altas, há cerca de cinquenta anos atrás, partiram das colinas onde nasceram com a intenção de encontrar trabalho junto dos seus camaradas das Terras Baixas.

Sabiam falar mal o Inglês. Um deles dizia: “Nós os três, homens das Terras Altas”; o segundo continuava: “Por algumas moedas para pôr na bolsa”; e o terceiro, que correctamente havia aprendido a sua deixa, concluía: “É por justiça o nosso direito”. Assim pretendiam explicar a quem os interpelasse os motivos da sua jornada.

Os três arrastavam-se estrada afora rumo ao seu destino, quando num vale solitário avistaram o corpo de um homem que recentemente havia sido assinado. Os jovens pararam por um pouco junto do cadáver, lamentando tão triste fim.

De súbito, um cavalheiro que por ali passava na companhia do seu criado aproximou-se do local.

– Quem assassinou este pobre homem? – disse o nobre senhor.

– Nós os três, homens das Terras Altas – respondeu o mais velho, julgando que lhe perguntava quem eles eram.

– Por que razão haveriam vós de cometer um acto tão hediondo? – continuou o cavalheiro.

– Por algumas moedas para pôr na bolsa – respondeu o segundo viajante.

– Sereis todos enforcados, seus canalhas!

– É por justiça o nosso direito – concluiu o último dos homens.

E assim os três infelizes, pela sua própria boca, que lhes deu suposição de culpa, foram condenados por um crime que não cometeram e executados na forca sem réstia de piedade.




Tradicional.
(colectada por Robert Chambers em "Scottish Jests and Anecdotes", 1832.)









(Versão de Pedro Belo Clara baseada na edição de Neil Philip: "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)













("John Murray, 4th Earl of Dunmore",
por Sir Joshua Reynolds (1765))

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A APARIÇÃO DE ARRAN

 

Há cerca de um século atrás, vivia em Arran¹ uma velha senhora de nome Marie Nic Junraidh, ou Mary Henderson, que era consideravelmente baixa, mas bastante inteligente e corajosa.

Numa noite escura, já tarde, regressava ela a casa quando se viu forçada a atravessar uma ponte que tinha fama de estar assombrada por algo terrível, algo que atemorizava os mais fortes e intrépidos homens. Mas como era já de noite e estava muito escuro, a pequena mas corajosa senhora granjeou ânimo para atravessar a ponte. 

Quando nela pôs o seu pé, viu uma aparição terrível formar-se à sua frente. Como não iria voltar para trás, dirigiu-lhe palavra; e palavra foi-lhe de volta dirigida. Então, assumiu uma forma humana esta estranha aparição, uma forma que Mary logo reconheceu.

– É vossemecê, Finlay? – perguntou.

A aparição disse que sim, que era Finlay.

Mary afirmou que o havia conhecido quando era vivo, mas que já estava morto há alguns anos. E a aparição disse que era tudo verdade, que ele mesmo era Finlay.

– Então, – prosseguiu Mary – qual o motivo para aparecer assim, diante de uma frágil e pequena mulher, procurando perturbar-me? Porque não apareceu vossemecê a um homem de coragem, se algo tem a dizer?

– Eu apareci várias vezes diante de homens bravos – respondeu o espírito –, mas todos eles se assustavam e punham-se em fuga sem trocar palavra comigo. Fez bem em ficar e falar-me, pois agora posso dar descanso à minha mente.

«Quando tinha corpo, roubei alguns arados de ferro; e não posso descansar enquanto não forem entregues ao seu  legítimo dono. Vá, então, amanhã, sem falta, àquele lugar além, e aí encontrará os ditos arados. E se pegar neles e os deixar à beira do caminho, então terei o meu descanso e não mais perturbarei vivalma.

A pequena mulher ganhou ainda mais coragem e colocou várias perguntar à aparição, sendo todas elas prontamente respondidas. Disse-lhe por mais quantos anos viveria, ela, seu esposo e alguns membros da família. Disse-lhe também como se encontravam vários amigos e vizinhos seus, já falecidos; e disse-lhe que avisasse um certo vizinho seu, que grandes perigos corria graças às suas acções mal-intencionadas.

Mary prometeu que satisfazeria todos os seus pedidos. Então, o espírito desapareceu, permitindo assim que Mary atravessasse a ponte e chegasse sã e salva à sua casa.

Na manhã seguinte, deslocou-se ao lugar indicado pelo espírito e descobriu os arados. Pegando neles, deixou-os na beira da estrada, como prometido, onde o seu antigo dono os viria a encontrar. No entanto, foi sabido que este não viveu por muito mais tempo depois de os ter recolhido. Mary fez o aviso ao seu vizinho, que o aceitou, arrependendo-se assim dos seus pecados. Tanto Mary como o seu esposo viriam a falecer no exacto ano que fora previsto.

Depois do seu encontro com o espírito, a ponte deixou de estar assombrada durante as noites - e nunca mais estranhas aparições atemorizaram nesse lugar vivalma






Tradicional (Escócia).








(Nota: Este relato surge originalmente no livro de Cuthbert Bede "The White Wife" ("A Esposa Branca"), onde se refere a sua origem: a fonte do autor da obra, que permaneceu oculta, escutara-a, no início do século XIX, da boca de uma piedosa mulher natural da ilha de Arran, que fora amiga íntima da pequena senhora e do seu esposo. Terá, então, o relato mais de verdade que de fantasia?)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão de Neil Philip, publicada em "Scottish Folktales" - Peguin Books, 1995.)










(1) A ilha de Arran situa-se na costa ocidental da Escócia, perto da península de Kintyre.
















(Vista parcial da ponte sobre o ribeiro Blackwaterfoot, em Arran
- Autor desconhecido.)


quarta-feira, 17 de março de 2021

ENQUANTO PASSEAVA


Enquanto passeava numa radiante manhã de maio,
querendo admirar os prados e as alegres flores,
quem vejo, sentada à sombra dum salgueiro, 
senão o maior de todos os meus amores.

O chapéu de pronto retirei, e então a saudei,
cumprimentando-a de ânimo reforçado.
Quando se voltou, as lágrimas corriam.
Disse: "Rapaz falso, haveis-me enganado."

"Um anel de diamantes eu te dei,
um anel de diamantes para na mão direita usar."
"Mas os votos, amor, que fizeste os quebraste
quando com a moça endinheirada foste casar."

"Se com a moça endinheirada me casei, amor,
até ao dia em que morrer o lamentarei;
quando o infortúnio chega, quem o pode evitar?
Estava cego, e jamais o negarei."

Agora, quando à noite na cama me deito,
toma-me o pensamento meu amor verdadeiro.
Quando me volto para abraçar a quem amo,
em vez de oiro encontro latão corriqueiro.

Como queria que a Rainha retirasse o exército
das Índias Ocidentais, América, da Espanha distante,
ver cada homem regressando para a sua noiva,
e nós dois de novo juntos: amada e amante.



Tradicional (sécs. XVIII ou XIX) 
- versão de Andy Irvine. (*)












(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa mais difundida do tema.)






(Dentre várias possíveis, seleccionámos a versão de Kate Rusby. Poderá escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4b9L8RplnSw .)












(*) Mais uma canção tradicional de origens obscuras.
A versão seleccionada é a que mais comummente se escuta nos tempos modernos, e foi apresentada durante a década de 70 pela banda Planxty, de Andy Irvine. Este admitiu que a escutou de Paddy Tunney, um cantor norte-irlandês, natural de Letterkenny, no condado de Donegal. Paddy, por sua vez, referiu-se ao tema como sendo uma canção do tempo da Grande Fome, uma vez que, em súmula, retrata um jovem que rompeu o noivado com a rapariga que verdadeiramente amava a troco de posses (no original faz-se referência a "terras"), isto é, dum casamento seguro. Ora, tal comportamento era bastante comum na Irlanda nesses tempos tão fatídicos, onde quem havia ficado no país, estando desprovido de propriedades e, portanto, meios de subsistência seguros, arriscava tudo num casamento sem amor, mas com o conforto dado pelos bens da nova família. 
Porém, uma investigação mais profunda revela que essa será apenas uma faceta da história, tratando-se antes duma canção que resultou de diversas influências, talvez até bem mais antigas.
Primeiro, há a questão da última quadra, perfeitamente fora do tom do restante poema. Nela, existem referências à Rainha e ao exército (britânico, entenda-se) estar em Espanha. Ora, no tempo da Grande Fome governava Inglaterra e suas colónias a Rainha Vitória, e esta monarca nunca se envolveu militarmente com Espanha. Quem teve destacamentos militares nas três regiões que o verso indica, havendo a indicação de ser uma Rainha, foi Ana, a última monarca da casa Stuart, que governou no princípio do séc. XVIII. Terá sido nesta época escrita, pelo menos a quadra final? Não é certo afirmá-lo com convicção, pois subsiste a sensação de ter sido colocada à força num talvez novo texto. 
Mais tarde, descobriu-se no diário dum capitão escocês que se viu envolvido na Guerra da Crimeia, por volta de 1853, uma cópia desta canção. Os versos são ligeiramente distintos, mas dão crédito a uma possível origem escocesa. Resolve, inclusive, o mistério da última quadra, onde já é feita referência a um Rei, e dá-se a menção aos casamentos estrangeiros, isto é, casamentos ocorridos durante a estadia, longa, dos soldados em terras estrangeiras. Os países enumerados nessa versão são também diferentes da versão irlandesa, e a razão do casamento com uma mulher de posses é entendida como uma pressão dos amigos do noivo para que deixasse aquela a quem realmente amava, precavendo-se assim para o seu futuro.
Parece-nos, então, que a versão irlandesa do tema nasce duma mistura doutros textos e canções, desde logo um inglês, de nome "The False Bride" ("A Falsa Noiva"). Mas é sem dúvida o texto escocês que mais influenciou este que aqui apresentamos, e uma das provas da sua origem é o recurso à palavra "lassie", isto é, "moça", muito mais comum entre escoceses do que irlandeses. É, pois, provável que a canção tenha viajado de boca em boca para a actual Irlanda do Norte e daí se tenha naturalmente difundido pela restante ilha. 
Não obstante os seus desafios de interpretação, lógica e origem clara, é hoje uma canção indispensável em qualquer reportório folk












"A Wife",
de John Everett Millais 
(1829 - 1896)