quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

OS CAMPOS DE ATHENRY


Na prisão, junto ao seu solitário muro,
escutei uma jovem com discurso seguro:
«Michael, furtaram-te a luz do dia!
O milho de Trevelyan (1) foste tu reter,
para que os filhos a manhã pudessem ver.
Agora, um navio-prisão espera-te na baía.

Nos campos de Athenry (2) , sem inquietação,
vimos pequenas aves em sua livre expressão.
O nosso amor tinha asas, podia voar!
Tínhamos sonhos e canções para cantar.
Pelos campos de Athenry é imensa a solidão.»

Na prisão, junto ao seu solitário muro,
escutei um jovem em seu grave apuro:
«Nada importa, Mary, quando em liberdade.
Contra a fome e a coroa me rebelei,
mas o nome saiu manchado, bem sei.
Deverás criar os nossos filhos em dignidade.

Nos campos de Athenry, sem inquietação,
vimos pequenas aves em sua livre expressão.
O nosso amor tinha asas, podia voar!
Tínhamos sonhos e canções para cantar.
Pelos campos de Athenry é imensa a solidão.»

Junto ao cais, essa solitária fronteira,
viu ela tombar a estrela derradeira,
enquanto ao horizonte zarpava o navio-prisão.
Viveria pela esperança, e sempre rezaria
por seu amor em Botany (3) , distante baía.
Pelos campos de Athenry é imensa a solidão.




(Pete St. John) (4)





(Versão de Pedro Belo Clara a partir da composição original do tema. 
Manteve-se o esquema de rima e a disposição dos versos do modo em que foram criados pelo seu autor, mesmo que isso exigisse uma perícia adicional e uma liberdade poética mais desafogada. Em todo o caso, nenhum dos sentidos mais pertinentes viu a adulteração daquela que nos pareceu ser a sua essência.
Graças ao seu toque levemente melancólico, deixamos a interpretação de Paddy Reilly sobre o tema, para que a possa escutar enquanto lê (ou relê) o poema que aqui apresentámos: https://www.youtube.com/watch?v=Zr1rzSSMsac ).





(1) Referência a Sir Charles Edward Trevelyan (1807 - 1886), que na época referida pela canção era um superior funcionário britânico da administração do "Lorde-Tenente da Irlanda" (o nome do cargo do governador da ilha, cuja residência fortificada se situava no Castelo de Dublin), destacado para lidar com a crise que então se instalara. 
Durante o período da Grande Fome na Irlanda (1845 - 1849/52), Trevelyan acreditou que os irlandeses famintos poderiam subsistir através do consumo de milho. Contudo, a sua insistência revelou-se vã, já que se tratava de um grão que os nativos da ilha não possuíam meios para adquirir, bem como preparação para o seu cultivo e confecção. Ficou igualmente famoso por proferir as seguintes palavras: "foi o juízo de Deus que enviou esta calamidade para ensinar aos irlandeses uma valiosa lição". Naturalmente, nunca granjeou as simpatias locais. E ainda instigaria rebeliões. Hoje em dia, há quem defenda que graças à sua inércia e a uma constante atitude hostil em relação aos irlandeses o difícil período em causa prolongou-se mais do que seria previsível, ou até mesmo necessário, caso uma solução adequada fosse atempadamente implementada. 


(2) Athenry, do gaélico Baile Áth na Ríogh, ou seja, "Cidade do Vau dos Reis", é uma cidade situada no condado de Galway, na República da Irlanda. Outrora uma movimentada cidade medieval, denominada em mapas ingleses da época por Kingstown ("Cidade do Rei"), tem por principais atractivos as suas originárias muralhas, o seu castelo e um priorato dominicano, ambos datados do séc. XIII. O autor deste tema faz frequentemente menção aos "campos baixos de Athenry", visíveis quando o viajante se aproxima das imediações da cidade. Contudo, por motivos de rima e de arranjo de versos, e dado que a designação não oferece qualquer significância relevante à história da canção, o termo exacto foi ocultado. 


(3) A baía de Botany situa-se em Sydney, na Austrália, à época uma colónia inglesa e local onde diversos prisioneiros oriundos da Irlanda, Escócia, País de Gales e Inglaterra eram desterrados para cumprir pena. Muitos acabariam por iniciar uma nova vida no distante continente.


(4) Curiosamente, é difícil descobrir o exacto ano do nascimento do autor desta canção. A investigação que levámos a cabo revelou-se infrutífera nesse aspecto. Até o site pessoal do autor nada refere sobre o caso. Tudo o que se sabe é que Pete St. John, nascido Peter Mooney, ainda se encontra vivo, é originário de Dublin e aí terá passado a sua infância e juventude durante as décadas de 40 e 50. Imigrou para o Canadá, tendo regressado definitivamente na década de 70 - e então iniciou o seu percurso como um dos mais bem sucedidos compositores e letristas irlandeses de sempre.
Este tema é, sem dúvida, um dos seus maiores sucessos, tendo inclusivamente sido interpretado por diversos músicos do país. Embora a primeira gravação do tema date de 1979, e seja fictícia a narrativa que encerra, a verdade é que a história que a compõe poderia muito bem ser real ou, no mínimo, traduzir a realidade de alguém, uma vez que remete para um período histórico digno de registo, daí a decisão de a incluirmos neste espaço. E como pelas anteriores referências e explicações já terá ficado esclarecido, o tema remete o seu ouvinte e leitor para o negro período da Grande Fome na Irlanda, que vitimou cerca de um milhão (!) de pessoas. 
Tudo se deveu a uma espécie de fungo que contaminou a produção da batata, a principal fonte de sobrevivência de muitos irlandeses. A doença derivada desse contágio afectou toda a Europa, mas foi a Irlanda que mais sofreu com o evento, graças às débeis condições económicas e sociais do território. É esta a origem do insulto que muitas vezes se dirigia a um irlandês, "comedor de batatas", dado que muitos deles não possuíam outra forma de subsistência, a não ser o cultivo do nutritivo tubérculo. Foi neste contexto que Trevelyan sugeriu o consumo de milho, o bem que a personagem masculina desta história roubou, somente «para que os filhos a manhã pudessem ver». Sem piedade, um navio-prisão já o esperava na baía, provavelmente, dada a localização, na bela baía de Galway.
Naturalmente, para os sobreviventes a situação tornou-se deveras insuportável, o que motivou um fluxo de imigração em larga escala. Se uns encontraram refúgio relativamente perto, nomeadamente na Escócia (a cidade de Glasgow acolheria cerca de cem mil irlandeses), outros arriscaram a travessia atlântica e fixaram-se nos Estados Unidos, um país novo e em claro florescimento. A personagem não teve tanta sorte, já que pelo roubo, compreensível e inevitável, foi capturado e de pronto enviado para a distante Austrália, deixando sozinhos mulher e filhos. Como se lê, a história é contada por um outro preso que a escuta pelos muros da prisão, sendo que no final nos deixa um vislumbre daqueles que terão sido os dias futuros daquela família tão abruptamente dividida: o esposo num território estranho, sabe-se lá em que condições; a mulher na Irlanda com os filhos, rezando pelo seu amor e vivendo na esperança de um dia o ter de volta. Será certamente por todas estas circunstâncias que o autor se refere frequentemente à solidão em torno dos campos de Athenry, se bem que, dado o tempo que se vivia, o termo "solidão" poderá igualmente implicar o facto de já quase ninguém se demorar por aqueles lados, vitimados pela fome ou tentados pela imigração. À semelhança de outros temas, este tornou-se quase um hino sobre um período tão negro da história da Irlanda - negro e crucial, dado que certos historiadores chegam mesmo a dividir a história do país em períodos pré-fome e pós-fome.
Apesar das suas sérias implicações, a melodia é extremamente popular. Diversas claques de equipas de futebol, e não só, adaptaram-na e ainda hoje a cantam nos jogos das suas equipas (Celtic e Liverpool, por exemplo). Em Portugal, uma conhecida claque de um histórico clube em 2013 decidiu seguir o mesmo caminho, esboçando um cântico onde sublinha a certeza de que o seu clube "nunca vai acabar". Durante o Europeu de 2012, os adeptos irlandeses entoaram a canção nos derradeiros dez minutos do jogo frente à Espanha, já certos da inevitável eliminação da sua selecção. O gesto foi reproduzido em diversos canais noticiosos pelo mundo fora. 








(O Pôr-do-sol em Athenry,
por Eoin Gardiner ®)