quinta-feira, 25 de junho de 2020

MOLLY MALONE


Em Dublin, bonita cidade,
Onde toda a rapariga é uma beldade,
Pela primeira vez vi a doce Molly Malone¹.
Empurrando o carrinho-de-mão, ia ela
Por toda a larga rua ou viela
Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

          Fresquinho, tão fresquinho!
          Fresquinho, bem vivinho!
          Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

Era, pois, peixeira de profissão,
Mas que tal não cause admiração,
Pois o era também seu pai e sua mãe.
E cada um o seu carrinho empurrou,
E toda a larga rua e viela visitou,
Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

          Fresquinho, tão fresquinho!
          Fresquinho, bem vivinho!
          Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

Duma febre viria a falecer,
Sem que ninguém a pudesse socorrer,
E foi esse o fim da doce Molly Malone.
Agora o seu espírito o carrinho-de-mão guia,
Por toda a larga rua e viela bem esguia,
Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

          Fresquinho, tão fresquinho!
          Fresquinho, bem vivinho!
          Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!




(Anónimo.)







(Versão adaptada de Pedro Belo Clara, a partir do original em inglês.)









(Poderá escutar de seguida a versão dos The Dubliners, provavelmente os mais responsáveis pela popularização em massa do tema: https://www.youtube.com/watch?v=iT-IfGokcCI )








(1) Esta bonita canção tradicional irlandesa é considerada, graças à enorme popularidade que granjeou nas últimas décadas, o hino não-oficial da cidade de Dublin, lugar que lhe serve de pano de fundo.
Foca-se, como bem se lê, numa figura popular de então, que percorre as ruas da cidade apregoando o seu comércio. Contudo, a veracidade deste relato é altamente questionada.
Em teoria, a Molly que se celebra neste tema, peixeira de seu ofício, teria vivido no século XVII e morrido bastante jovem, duma febre súbita. Algumas fontes caracterizam-na como sendo comerciante de dia e prostituta de noite, outras fazem dela um símbolo de castidade num tempo de imoralidades gritantes, e ainda há quem escreva que seria uma jovem mãe quando faleceu, daí que usasse um vestido com decote bem vincado (na época era comum as mulheres mais humildes amamentarem nas ruas, daí que o vestuário fosse adaptado a essa necessidade.) 
No entanto, todas estas versões da suposta verdade não passam de lendas que se construíram em torno desta figura, especialmente em meados do século XX, quando ressurgiu o interesse na canção e na história da mulher por ela celebrada. 
Não existem registos históricos que comprovem a existência de uma Molly Malone percorrendo as ruas de Dublin com um carrinho-de-mão cheio de marisco. O seu nome é relativamente comum (Molly era utilizado como uma alcunha carinhosa para quem se chamasse Mary ou Margaret), assim como o seu ofício de peixeira ambulante. Além disso, a canção utiliza várias expressões já presentes noutras que lhe são anteriores, o que sugere uma criação mais recente com inspiração em tais fontes - prática muito usual no universo da música tradicional.
O seu primeiro registo data de 1876, e já na época era tida como sendo uma canção "de provável origem irlandesa". No entanto, certos especialistas afirmam que algumas passagens melódicas e verbais da canção a afastam daquilo que então era tradicional na Irlanda, especialmente das baladas que nas ruas se escutavam, e preferem apontar a sua origem como sendo escocesa. (Existe uma publicação que, em forma de nota, indica que o texto foi antes editado numa colectânea escocesa, mas tal obra nunca foi encontrada.)
Quando a canção foi publicada, já existiam pelo menos mais duas que falavam duma Molly do mesmo apelido. Numa delas, Molly é, de nascimento, Mary, e já se encontra viúva. Outra, imagine-se, é de origem norte-americana, pré-guerra civil; e ainda encontramos uma outra donde este tema copia várias expressões, desde a "cidade bonita de Dublin" ao famoso pregão dos bivalves. Todas, note-se, datam da primeira metade do século XIX. Além disso, até a própria melodia que acompanha o texto é muito provavelmente inspirada num tema mais antigo.
Assim sendo, conclui-se que a lenda de Mary Malone não passa disso mesmo: pura fantasia. Haverá, contudo, uma explicação para tal. 
Em 1988 comemorou-se o primeiro milénio da cidade de Dublin, e entre as festividades previstas estava o descerrar duma nova estátua, nada mais que a de Mary Malone, passeando-se com o seu carrinho-de-mão. Aí mesmo declarou-se o dia 13 de junho o "Dia de Mary Malone", que ainda é celebrado; pois deram-se provas de uma Molly que faleceu, segundo o registo, nesse dia em 1699, como sendo a Molly da canção. O registo é verídico, é certo, mas nada diz sobre tal personagem e sua vida, sequer se a tal febre súbita foi a causa da sua morte. Sendo um nome comum, que garantias sérias são dadas? A comissão das festividades assim o afirmou e o facto deu-se por garantido, embora haja uma imensa nuvem de suspeição em torno de toda a história - que apresenta contornos nitidamente políticos. 
Actualmente em Grafton Street, todo o turista não pode passar por Dublin sem cumprimentar a doce Molly que, imagine-se, ainda empurra o seu carrinho-de-mão à espera dum novo comprador. 








(A famosa estátua de Molly Malone em Dublin)