terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O LAMENTO DE PADDY (*)

 
Sosseguem, rapazes, agora,
Fiquem em silêncio nesta hora,
Pois o que tenho a contar deverão ouvir.
Estava eu pela fome agitado
E pela pobreza angustiado,
Quando decidi da Irlanda partir.
Vendi o cavalo e o arado que tinha,
As ovelhas, os leitões e uma porca minha;
Toda a quinta abandonei então,
E a minha Biddy McGee, bem-amada - 
Que não voltará a ser beijada,
De tão partido que lhe deixei o coração.

Eu e outra centena igual a mim
Para a América num navio seguimos enfim,
Pensando na fortuna que iríamos amealhar.
Quando em terra ianque chegámos salvos e sãos,
Logo um mosquete nos puseram nas mãos,
Dizendo: Paddy, tens de ir e por Lincoln¹ lutar!
Prometeu Meagher², um General do regimento:
Se for alvejado ou sofrer maior tormento,
Todo o soldado receberá uma pensão.
Bem, na guerra uma perna acabei por perder
E com um pino de madeira terei agora de viver.
Juro ser verdade: no dinheiro devido nunca pus a mão!

Considerar-me-ia um felizardo
Por ter o sustento num pequeno veado
E na Irlanda, a terra do meu contentamento.
Mas pelo Diabo digo, sem a língua travada,
Seja a América amaldiçoada!
Já me fartei de tanta guerra e sofrimento.

          Escutem, rapazes, sigam o meu conselho:
          Não venham para a América, seja novo ou velho!
          Só tem guerra para vos oferecer
          E o rugido dos canhões que nos faz enlouquecer.
          Como em casa desejaria estar,
          Na amada Dublin³, além-mar…

 


(Anónimo)

 






(Versão de Pedro Belo Clara a partir das versões mais comuns do tema. Um desses exemplos poderá ser escutado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=v55klRtHNZQ )





(*) Apesar de se encaixar num contexto muito específico, o texto escolhido para esta nova publicação do blogue não deixa de ser uma extensão do tal coração celta que se pretende fazer escutar através dos poemas e canções neste espaço apresentados. 
Como se depreende após a sua leitura, o poema retrata a figura dum irlandês que exorta os seus conterrâneos a ficar no país natal e a não emigrar, assim, para a América, dado não ser o paraíso que poderiam pensar. Afinal, o país encontrava-se nessa altura imerso numa guerra civil e todo o emigrante que ali chegasse era de pronto recrutado e forçado a combater pela União (o Norte, digamos, o lado afecto ao presidente Lincoln, que lutava, pondo isto de modo simplista, pela abolição da escravatura). Era possível escapar ao recrutamento pagando uma determinada soma, mas esse valor, se era acessível a famílias abastadas, era incomportável para os mais pobres, especialmente os emigrantes que acabavam de chegar ao país. Assim, não haveria grande hipótese de fuga - até porque o respeito pelos irlandeses era, nesta altura, praticamente nulo, sendo notória a forma como ganhava expressão a típica estratégia utilizada quando a falta de homens é séria: a muito útil "carne para canhão". (E bem diferente poderia ter sido o desfecho do conflito se não fosse o precioso auxílio irlandês...)
Além disto, o Paddy que nos relata a sua triste vida no seio duma tremenda revolta e comoção interior, denuncia ainda as mentiras com que o exército tornava o recrutamento mais simpático: o caso, verídico, das pensões prometidas que nunca chegaram a ser pagas.
É esta, portanto, uma das mais célebres canções de protesto contra a guerra civil americana (embora possa extrapolar esse conflito em específico) e o tratamento desumano concedido aos emigrantes que naqueles anos chegavam ao país em número elevadíssimo, especialmente os irlandeses, que ainda sentiam as agruras da sua Grande Fome. Esclareça-se que o nome do narrador, Paddy, é o diminuitivo de Patrick, um nome na Irlanda tão comum quanto José, por exemplo, o é em Portugal (graças ao santo padroeiro daquele país, que respondia pelo mesmo nome). Assim, o poema ganha uma dimensão universal, já que este "Paddy" não passa duma personagem-tipo, um esboço onde centenas, se não milhares, de irlandeses emigrantes poderiam reconhecer o próprio rosto. 
Resta acrescentar que, como é comum nos cancioneiros populares, existem diversas versões deste tema, com maior ou menor número de referências em comum. A primeira parece remontar a 1864, da autoria de John R. Dix, um escritor inglês que vivia nos Estados Unidos, e que foi o autor dum poema chamado The Paddy Lament. Digamos, assim, que o Paddy's Lamentation aqui partilhado é uma espécie de versão anónima desse poema. Talvez pelo facto de ter ganhado o estatuto de canção, o texto presente tenha granjeado maior fama e, de certo modo, prevalecido no tempo. Porém, importa lembrar que o tema esteve por várias décadas adormecido até ressuscitar, já no século XX, no... Canadá, imagine-se. É gravado em disco pela primeira vez em 1961, graças a um emigrante inglês que escutara e aprendera o tema da boca doutros emigrantes, irlandeses, que encontrara no Canadá. Assim, o poema-canção adquire, aos poucos, uma dimensão nunca antes tida e acaba sendo redescoberto no país que o viu nascer, os Estados Unidos. 
Em 2002, no famoso filme Gangs de Nova Iorque, um excerto deste tema é interpretado, precisamente no momento em que vários irlandeses, envergando fardas da União, fazem fila para embarcar para uma zona de conflito. A cena é poderosíssima: enquanto uns embarcam, uma grua desembarca dum navio diversos caixões selados. Quem se importava realmente com a vida dum pobre emigrante irlandês?





(1) Abraham Lincoln (1809 – 1865) foi o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América, a quem coube em sorte o governo da ainda jovem nação durante a sua guerra civil – que opôs o norte ao sul do país. Com a vitória da União, aboliu-se no território a escravatura, uma das questões fulcrais do sangrento conflito. Foi assassinado, enquanto assistia ao lado da esposa a uma peça de teatro, por um simpatizante confederado (afeito ao sul, portanto), o não menos célebre John Wilkes Booth.

(2) O General Thomas Francis Meagher foi o líder do 69º Regimento das tropas da União, uma unidade composta apenas por irlandeses de Nova Iorque.

(3) Uma das principais cidades da Irlanda, actualmente a sua capital. 








(Título desconhecido - 
Don Troiani (1949 - ))