terça-feira, 25 de janeiro de 2022

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 7


BRUXAS DISFARÇADAS DE OVELHAS
(Parte II)



      De acordo com o seu próprio relato, Hector McLean, de Coll¹, vinha ao anoitecer de Arinagour² para Breachacha³ – uma distância de quatro milhas pelo que então era, na maior parte do troço, um trilho de montanha.  

A meio caminho, em Airidh-mhic-mharoich, uma ovelha negra correu ao seu encontro e atirou-o ao chão. A certa altura, como os ataques repetiam-se, Hector conseguiu tirar do bolso um canivete e com ele ameaçar a ovelha, afirmando que na próxima investida não hesitaria em usá-lo. Contudo, a ovelha avançou uma e outra vez, derrubando-o sempre. Numa das ocasiões em que tentava feri-la, o canivete fechou-se sobre si mesmo, fazendo-lhe um corte profundo entre o indicador e o polegar.

Ao chegar a uma ampla drenagem de águas a céu aberto, uma espécie de riacho que corre por debaixo de Breachacha Garden, Hector teve receio em atravessá-lo, não fosse a ovelha segui-lo e, investindo de novo sobre si, atirá-lo para aquelas águas. Porém, já conseguia avistar a sua casa, e com um assobio forte chamou o seu cão. Este veio e atacou ferozmente a ovelha.  

De cada vez que o cão chegava perto demais, a ovelha tornava-se numa velha mulher, alguém que o Hector reconheceu, e saltava no ar. Pediu ela que o homem mandasse o seu cão retirar-se, mas o pedido foi recusado. Insistiu, prometendo desta vez que ficaria sua amiga para o que desse e viesse. Por fim, Hector chamou o cão, mas este já não obedeceu. Apanhou-o então pelo pescoço e tentou pará-lo, virando-o para si mesmo. Prometeu que o seguraria, dando à mulher hipótese de fuga.

A bruxa transformou-se então numa lebre. Já que parecia ser mulher de grande poder, Hector, gritando, disse-lhe que acrescentasse uma perna extra à sua nova forma, para que assim pudesse correr mais depressa. Quando já se encontrava a uma distância considerável, Hector largou o cão, que de pronto a seguiu, e regressou a casa. 

O cão só voltou na tarde seguinte. Perseguira a lebre, obrigando-a a abrigar-se nas reentrâncias duma rocha, e aí montara a sua guarda – até a fome vencer, levando-o a regressar. Na primeira vez que o encontrou, a mulher repreendeu Hector por ter deixado o cão fugir.

    Mais tarde, quando foi prestar os seus serviços numa quinta em Arileod, Hector voltou a avistar a tal mulher, de novo na forma de lebre, roubando o leite das vacas directamente do animal. O seu cão, sempre que se apercebia da presença da mulher, começava a persegui-la, obrigando-a a retomar a sua forma original.

Quando deixou a quinta, a mulher não voltou a ser vista durante dias. Hector foi então à sua procura. Quando a encontrou, acusou-a de ser a causa dos problemas que tinham ocorrido na propriedade. A bruxa enfureceu-se, ameaçando puni-lo por levantar falsas suspeitas. Hector disse-lhe que o proprietário oferecia uma recompensa a quem descobrisse o responsável pelos maus eventos; e que se todas as mulheres de Coll fossem reunidas num outeiro, o seu cão malhado a identificaria facilmente – e assim seria, de pronto, considerada culpada.

Perante isto, a bruxa emudeceu. Pediu-lhe o homem que fosse à vacaria da propriedade naquela noite, para que as pessoas não dissessem que foi por sua culpa que o mal se instalara na quinta. A bruxa desculpou-se dizendo que já era a noite de quarta-feira, e que nada poderia fazer contra tal coisa, mas que na noite seguinte agiria de acordo com o combinado, e que Hector ficaria a saber quando tal acontecesse.

Assim, na noite de quinta-feira, a mulher foi à vacaria de Arileod, soltou as vacas e deixou os bezerros entrar, provocando assim o maior prejuízo que lhe foi possível causar.






(Relato colectado após entrevista a Hector McLean, de Coll. Foi editado pela primeira vez por J. G. Campbell, in “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902.)
 
 
 
 
 


 
(Versão de Pedro Belo Clara a partir da edição de Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)










(1) Coll é uma pequena ilha (pouco mais de 20 km de comprimento) das Hébridas Interiores, na Escócia. Com uma população de cerca de 150 habitantes, a ilha é conhecida pela suas praias e dunas, dois castelos (remontando o mais antigo ao séc. XV) e uma fauna peculiar. Uma invasão no séc. VI, com origem na actual Irlanda, estabeleceu no território um reino celta. Posteriormente, foi governado pela coroa norueguesa até chegar, no séc. XII, ao domínio da coroa escocesa.  


(2) A vila principal da ilha, situada na região oriental. 


(3) Região onde se situam os castelos da ilha, ambos com o mesmo nome. O mais antigo data do séc. XV e o mais recente foi em 2017 colocado à venda. Estão situados nas margens do lago que lhes dá o nome. Acrescente-se que toda a ilha era território do clã MacLean desde 1431. 


(4) Pouco mais de seis quilómetros. Percorridos a pé e ao anoitecer... ora, imagine-se! Outros tempos, não hajam dúvidas...


(5) Vila localizada na costa ocidental de Coll. 






 





"Summons"
- gravura pertencente à série "Coven",
de Rosalie Lettau


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 6


BRUXAS DISFARÇADAS DE OVELHAS
(Parte I)





    Ao anoitecer, um homem de Tiree¹ estava a caminho de sua casa, no extremo oeste da ilha, levando na mão uma arma que havia adquirido recentemente. 
    Num dado momento, acima da praia a que chamam Travay, avistou uma ovelha negra a correr na sua direcção através da planície de Reef. Alarmado pelos movimentos do animal, colocou uma pequena moeda de prata na sua arma; quando a ovelha se aproximou o suficiente, o homem apontou-a ao animal. 
   A ovelha negra transformou-se naquele mesmo instante numa mulher, que ele de pronto reconheceu, com uma capa grosseira puxada até ao cimo da sua cabeça. 
  A mesma mulher havia-o perseguido antes, e por várias ocasiões, especialmente sob a forma de um gato. Ela pediu-lhe que o seu segredo ficasse bem guardado, e o homem prometeu que agiria de acordo com o combinado.
  Porém, numa noite, estando ébrio na vila onde a mulher morava, acabou por contar a sua aventura e o nome da mulher nela envolvida. Em menos de quinze dias o homem morreu afogado, e a mulher, sobre quem já recaíam suspeitas de bruxaria, foi acusada de tal crime.







(Narrador anónimo, sabendo-se apenas que se trata dum nativo de Tiree. O relato foi editado pela primeira vez por J. G. Campbell, na obra “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, de 1902.)








(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da versão editada por Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)












(1) Tiree é a ilha mais ocidental do complexo conhecido por "Hébridas Orientais" ou "Interiores", na Escócia. Possui uma história rica, e os primeiros indícios humanos nela encontrados remontam a uma antiguidade longínqua. Ademais, está historicamente ligada a São Columba, o monge irlandês que evangelizou a Escócia. Dotada de terrenos muito férteis (a origem gaélica do seu nome traduz-se por "terra de milho") e duma espantosa abundância de peixe, bem como excelentes condições para a prática do surf, a ilha albergava, de acordo com os últimos censos, pouco mais de seiscentas pessoas. O turismo é, pois, uma das suas maiores atracções. 











(Autor desconhecido.
Fonte: paintingvalley.com)