quarta-feira, 17 de março de 2021

ENQUANTO PASSEAVA


Enquanto passeava numa radiante manhã de maio,
querendo admirar os prados e as alegres flores,
quem vejo, sentada à sombra dum salgueiro, 
senão o maior de todos os meus amores.

O chapéu de pronto retirei, e então a saudei,
cumprimentando-a de ânimo reforçado.
Quando se voltou, as lágrimas corriam.
Disse: "Rapaz falso, haveis-me enganado."

"Um anel de diamantes eu te dei,
um anel de diamantes para na mão direita usar."
"Mas os votos, amor, que fizeste os quebraste
quando com a moça endinheirada foste casar."

"Se com a moça endinheirada me casei, amor,
até ao dia em que morrer o lamentarei;
quando o infortúnio chega, quem o pode evitar?
Estava cego, e jamais o negarei."

Agora, quando à noite na cama me deito,
toma-me o pensamento meu amor verdadeiro.
Quando me volto para abraçar a quem amo,
em vez de oiro encontro latão corriqueiro.

Como queria que a Rainha retirasse o exército
das Índias Ocidentais, América, da Espanha distante,
ver cada homem regressando para a sua noiva,
e nós dois de novo juntos: amada e amante.



Tradicional (sécs. XVIII ou XIX) 
- versão de Andy Irvine. (*)












(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa mais difundida do tema.)






(Dentre várias possíveis, seleccionámos a versão de Kate Rusby. Poderá escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4b9L8RplnSw .)












(*) Mais uma canção tradicional de origens obscuras.
A versão seleccionada é a que mais comummente se escuta nos tempos modernos, e foi apresentada durante a década de 70 pela banda Planxty, de Andy Irvine. Este admitiu que a escutou de Paddy Tunney, um cantor norte-irlandês, natural de Letterkenny, no condado de Donegal. Paddy, por sua vez, referiu-se ao tema como sendo uma canção do tempo da Grande Fome, uma vez que, em súmula, retrata um jovem que rompeu o noivado com a rapariga que verdadeiramente amava a troco de posses (no original faz-se referência a "terras"), isto é, dum casamento seguro. Ora, tal comportamento era bastante comum na Irlanda nesses tempos tão fatídicos, onde quem havia ficado no país, estando desprovido de propriedades e, portanto, meios de subsistência seguros, arriscava tudo num casamento sem amor, mas com o conforto dado pelos bens da nova família. 
Porém, uma investigação mais profunda revela que essa será apenas uma faceta da história, tratando-se antes duma canção que resultou de diversas influências, talvez até bem mais antigas.
Primeiro, há a questão da última quadra, perfeitamente fora do tom do restante poema. Nela, existem referências à Rainha e ao exército (britânico, entenda-se) estar em Espanha. Ora, no tempo da Grande Fome governava Inglaterra e suas colónias a Rainha Vitória, e esta monarca nunca se envolveu militarmente com Espanha. Quem teve destacamentos militares nas três regiões que o verso indica, havendo a indicação de ser uma Rainha, foi Ana, a última monarca da casa Stuart, que governou no princípio do séc. XVIII. Terá sido nesta época escrita, pelo menos a quadra final? Não é certo afirmá-lo com convicção, pois subsiste a sensação de ter sido colocada à força num talvez novo texto. 
Mais tarde, descobriu-se no diário dum capitão escocês que se viu envolvido na Guerra da Crimeia, por volta de 1853, uma cópia desta canção. Os versos são ligeiramente distintos, mas dão crédito a uma possível origem escocesa. Resolve, inclusive, o mistério da última quadra, onde já é feita referência a um Rei, e dá-se a menção aos casamentos estrangeiros, isto é, casamentos ocorridos durante a estadia, longa, dos soldados em terras estrangeiras. Os países enumerados nessa versão são também diferentes da versão irlandesa, e a razão do casamento com uma mulher de posses é entendida como uma pressão dos amigos do noivo para que deixasse aquela a quem realmente amava, precavendo-se assim para o seu futuro.
Parece-nos, então, que a versão irlandesa do tema nasce duma mistura doutros textos e canções, desde logo um inglês, de nome "The False Bride" ("A Falsa Noiva"). Mas é sem dúvida o texto escocês que mais influenciou este que aqui apresentamos, e uma das provas da sua origem é o recurso à palavra "lassie", isto é, "moça", muito mais comum entre escoceses do que irlandeses. É, pois, provável que a canção tenha viajado de boca em boca para a actual Irlanda do Norte e daí se tenha naturalmente difundido pela restante ilha. 
Não obstante os seus desafios de interpretação, lógica e origem clara, é hoje uma canção indispensável em qualquer reportório folk












"A Wife",
de John Everett Millais 
(1829 - 1896)