quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Dois poemas de Joseph Campbell


I. As colinas de Cualann ¹


Na jovialidade do verão,
as colinas de Cualann
são dois chifres doirados,
dois túrgidos seios,
duas tendas de luz. 

Na velhice do inverno,
duas espadas enferrujadas,
duas ondas de sombra,
duas luas de gelo.



II. A velha mulher


Como uma branca vela
em lugar sagrado,
assim é a beleza
dum rosto enrugado.

Como a gasta radiância
dum sol invernoso,
assim é uma mulher
findado o labor penoso. ²

Tem a ninhada longe de si, ³
e o coração no peito
sereno como as águas
debaixo dum moinho desfeito.




Joseph Campbell (1879 - 1944) ⁴











(Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais compilados em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)










(1) Cuallan é nome dado a uma região situada às portas de Dublin, a capital da república irlandesa. Não muito longe ficam as famosas montanhas Wicklow, visíveis no horizonte dessa cidade, e naturalmente ao longo das décadas motivo de diversos poemas e inspiradas canções.  


(2) Primeira nota de tradução: a palavra original é "travail", que poderá adquirir um duplo sentido. A sua utilização não é comum nos dias de hoje, tratando-se dum vocábulo de raízes fincadas no inglês arcaico. Na época, a ele se recorria para fazer-se menção às dores sentidas pela mulher em trabalho de parto, bem como à própria situação em si. Actualmente utiliza-se a palavra "labour", mas o sentido de "travail" é exactamente o mesmo: dores de parto ou entrar em trabalho de parto. Contudo, mais tarde adquire, por esta sua origem, um sentido mais amplo, significando simplesmente "trabalho penoso ou árduo". Ora, colocando tudo isto em contexto, e sabendo que o poeta retrata uma velha mulher, "travail" tanto se poderá referir aos trabalhos de parto que para ela já terminaram, dada a sua avançada idade, bem como aos trabalhos penosos que uma mãe de família, essencialmente naqueles tempos e numa Irlanda que se presume rural, tinha de arcar. A quadra seguinte corrobora em parte esta ideia. Concluindo o raciocínio, optou-se por "labor penoso", expressão de maior generalidade que, por isso mesmo, tanto pode englobar os trabalhos do parto bem como os de educação, cuidado e alimentação da numerosa família.


(3) Segunda nota de tradução: a palavra eleita pelo autor é "brood", que literalmente se traduz por ninhada ou bando, grupo e, de modo lato, descendência. A palavra portuguesa "ninhada", em contexto, poderá parecer desprovida de alguma elegância de som e de sentido, embora se aproxime da intenção do autor. No entanto, dado que outras opções, como "prole", retiram o cariz quantitativo que "ninhada" parece justamente sugerir, sem se privar de alguma aspereza em óptica subentendida, optou-se por esta última hipótese, tanto que a referência original parece óbvia: as numerosas famílias da Irlanda rural, onde era comum uma mulher dar à luz, no mínimo, cinco filhos. 


(4) Campbell nasceu na cidade de Belfast, actual Irlanda do Norte, quando todo o território era ainda considerado uma província inglesa. 
Começou por trabalhar para o seu pai antes de se dedicar ao ensino. Foi neste vespertino período da sua vida que Campbell se iniciou nas letras, primeiro antologiando canções populares no condado de Antrim e depois colaborando junto do compositor Herbert Hughes. Surgiriam com maior frequência artigos e peças de teatro, onde assinava já com a forma gaélica do seu nome (Seosamh Mac Cathmhaoil), fortalecendo ao mesmo tempo ligações com grupos de nacionalistas convictos, isto é, partidários da independência irlandesa. A letra do conhecido tema My Lagan Love é de sua autoria - apenas uma das várias melodias tradicionais que receberam palavras por si escritas. 
Passa pelas cidades de Dublin e Londres em busca de trabalho estável, e será na capital inglesa que retomará a sua ocupação de professor, empreendendo igualmente diversas actividades de desenvolvimento e divulgação da literatura irlandesa. 
Casa em 1910, mas acaba por regressar às origens e tomar parte da "Revolta Pascal" (Easter Rising), em 1916, a famosa sublevação irlandesa em semana de Páscoa que exigia a independência e a instauração de uma república no território, a mais significativa desde a ocorrida em 1798. Campbell toma parte em algumas operações de resgate até se confirmar a rendição dos rebeldes, oficialmente justificada pelo seu expresso desejo em impedir a matança dos cidadãos de Dublin (certas partes da cidade ficaram totalmente em ruínas durante o conflito).  
No ano seguinte, publica a tradução do gaélico de um conjunto de contos de Patrick Pearse, professor, escritor, activista político e um dos principais líderes da rebelião. Mais tarde, adere ao partido independentista Sinn Féin, e quando a guerra civil irlandesa se inicia, após o processo de independência do território, Campbell toma o partido dos republicanos. Mas os anos seguintes trariam algumas contrariedades. 
Após um internamento e a dissolução do seu matrimónio, Campbell emigra para os Estados Unidos e passa a leccionar em Fordham, uma universidade privada e católica de Nova Iorque, onde continuará a desenvolver esforços na preservação e divulgação da língua irlandesa e da sua literatura. 
Regressa à Irlanda em 1939, ao condado de Wicklow, tendo vindo a falecer perto do fim da Segunda Guerra Mundial.  










(As montanhas Wicklow, em pleno parque natural)