quinta-feira, 24 de junho de 2021

A CIDADE QUE BEM AMEI


Guardarei sempre na lembrança
A cidade que muito amei:
As partidas de futebol junto ao muro do pátio do gás
E os nossos risos por entre o fumo e o cheiro;
O regresso a casa em dias de chuva, correndo pela escura 
     travessa acima,
Passando a prisão, seguindo para além da fonte.
Foram, por muitas razões, dias felizes
Na cidade que bem amei.

De manhã cedo, a buzina da fábrica de camisas
Chamava as mulheres de Creggan¹, da charneca e do brejo,
Enquanto os homens, vivendo de subsídios, faziam a vez das 
     mães,
Alimentando as crianças e passeando os cães.
E quando os tempos endureceram, do pouco que tinham 
     viveram,
E tudo se suportou sem qualquer queixume;
Pois dentro latejava um orgulho ardente
Pela cidade que bem amei.

Havia música no ar de Derry²,
Como uma fala que todos podíamos compreender.
Lembro o dia em que recebi o meu primeiro ordenado,
Quando tocava numa pequena banda de improviso.
Aí passei os dias da juventude, e para dizer a verdade
Entristeceu-me deixar tudo para trás;
Pois aprendera o que é vida e encontrara uma esposa
Na cidade que bem amei.

Quando regressei, oh, como me arderam os olhos,
Ao ver como uma cidade pode ser vergada
Por carros blindados e bares em ruínas
E o gás infiltrado em cada brisa.
O exército instalou-se junto do muro do velho pátio do gás,
E o maldito arame farpado cresce sem cessar.
Com as suas bombas e os seus tanques,
Oh, Deus meu, que fizeram eles
À cidade que bem amei?

A música desapareceu, embora as suas gentes perseverem:
O seu espírito foi magoado, mas jamais se quebrará.
Nunca esquecerão este tempo, mas os corações já vivem
Nesse dia que, nascendo, trará de volta a paz.
O que foi feito feito está, o que se ganhou ganho ficou
E o que se perdeu perdeu-se para sempre.
Apenas poderei rezar por novos dias de luz
Na cidade que bem amei. 




Phil Coulter (1942)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original.)











(Escolhemos a versão dos The Dubliners, que poderá escutar aqui: https://www.youtube.com/watch?v=GaAze9IQpqI )











(1) Uma urbanização situada no extremo oeste da cidade de Derry, construída na década de sessenta para albergar uma população cada vez mais numerosa. Neste lugar, habitavam maioritariamente famílias católicas, mas as condições eram muito precárias. As restantes referências que este verso nos oferece são também nomes de outros bairros sociais da cidade, escritos nos seus termos mais populares.



(2) A cidade natal do autor, situada na Irlanda do Norte, oficialmente designada Londonderry. É a segunda maior cidade do território e foi o lugar onde se originaram as primeiras querelas em prol dos direitos civis, no final da década de sessenta. As dolorosas consequências desse acto, de certa forma, são retratadas ao longo do poema. 









(Vista de uma das ruas de Londonderry, na Irlanda do Norte)
(Fonte: The Chaotic Scot)


quarta-feira, 2 de junho de 2021

O LUGAR DA LIBERDADE

 
Não há mansão por rica que seja
Que valha o conforto da minha choupana.
No alto as estrelas, dádiva do Céu,
O Sol e a luz e o brilho da Lua.

Pela mão dos Anjos e seu engenho foi posta de pé
- É esta uma história que hei-de contar.
E o meu Senhor, o Deus das Alturas,
Deu-lhe um telhado feito de colmo.

Na minha morada a chuva não cai
E não há que temer espadas e lanças.
É um lugar onde se goza a liberdade,
Jardim aberto sem sebe em redor.



Anónimo.
(Irlanda, séc. IX)










(Tradução de José Domingos Morais in "A Perfeita Harmonia - Poemas Celtas da Natureza", Assírio & Alvim, Julho de 2004).
















(Fonte: decoist.com)