quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O VAGABUNDO SEM TINO ¹


Fui vagabundo sem tino por anos que não contei,
e todo o meu dinheiro em whiskey e cerveja gastei.
Mas agora regresso com oiro de fartar na bagagem,
e o vagabundo sem tino terá a sua última viagem.

      Não, ná, nunca,
      não, ná, nunca, não mais!
      serei o vagabundo sem tino,
      não, nunca, nunca mais!

Fui a uma taberna que tinha hábito de frequentar
e à dona disse não mais ter dinheiro para gastar.
Por crédito pedi, e disse-me: "vossa senhoria,
clientes como vossemecê tenho eu todo o dia!"

      Não, ná, nunca,
      não, ná, nunca, não mais!
      serei o vagabundo sem tino,
      não, nunca, nunca mais!

Então do bolso tirei dez libras d'oiro luzente
e o olhar da dona iluminou-se de contente.
E disse: "tenho whiskeys e vinhos de primeira!
O que antes falei não passava de brincadeira..."

      Não, ná, nunca,
      não, ná, nunca, não mais!
      serei o vagabundo sem tino,
      não, nunca, nunca mais!

Irei até casa de meus pais confessar os pecados,
pedir que o filho pródigo veja os actos perdoados.
E se perdão obtiver, como tantas vezes outrora,
para o vagabundo sem tino terá chegado a hora.

      Não, ná, nunca,
      não, ná, nunca, não mais!
      serei o vagabundo sem tino,
      não, nunca, nunca mais!




(Anónimo.)











(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão irlandesa mais comum.)










(Tratando-se duma canção tradicional bastante afamada, não se estranha a panóplia de versões que foram feitas. Ainda que os The Dubliners tenham sido os primeiros grandes impulsionadores do tema, na década de sessenta, sugerimos a versão de Foster & Allen: https://www.youtube.com/watch?v=BZJp642EcGw .)










(1) Esta famosa e divertida canção enche de vida os pubs de toda a Irlanda, sendo uma das "drinking songs" mais amadas. Quase que se diria impossível visitar um sem que o tema não seja tocado. Contudo, as suas origens são bastante obscuras e até sugerem que não seja natural do país que mais a celebra. No entanto, mesmo que o ADN celta rareie no seu sangue, optámos por incluí-la neste certame precisamente devido à fama imensa que goza em tal país, o que invariavelmente a tornou irlandesa por paixão. 
De acordo com o que a nossa pesquisa pôde apurar, o texto do tema parece basear-se num poema inglês do séc. XVII, "The Goodfellow's Resolution", da autoria de Thomas Lanfiere. Embora o seu título indique, em tradução livre, "A Resolução de Goodfellow", importa esclarecer que este "Goodfellow" tanto poderá ser um apelido, natural em língua inglesa e de sentido mais apropriado à melhor interpretação do texto, como um adjectivo simpático, no caso "Bom Camarada". Mas fiquemos, para o que importa, pela noção de apelido.
O poema, com treze versos no original, nascido num tempo em que o movimento puritano em Inglaterra granjeava cada vez mais seguidores, visava alertar a consciência social para as desgraças de uma vida errante de vícios e prazeres desmedidos. Inseria-se numa categoria de textos moralistas sobre os "maus maridos", textos esses muito comuns à época, sublinhando ainda o perigo das taberneiras em todo esse cenário, elas que estavam sempre prontas a seduzir os seus clientes com as bebidas mais finas que pouco dinheiro poderia pagar ou a surripiar toda a moeda do alforge de um qualquer pobre diabo pelo aproveitamento da sua triste dependência.
Foi o poema nos séculos XVIII e XIX condensado e publicado em diversos meios, como panfletos e manifestos, todos parte do movimento cívico que apelava à moderação dos desejos e, assim, ao controlo e erradicação de todos os vícios. Foi-se tornando cada vez mais popular e disseminado, ao ponto de se ter entranhado na tradição oral dos povos onde chegava, ainda que inicialmente fosse cantado ao som de uma melodia diferente daquela que hoje se conhece. 
Nesse rumo, foi perdendo o seu título. Começou por aparecer creditado como "Mau Marido" e depois, por fim, ao familiar "Vagabundo sem Tino" ("Wild Rover"). A primeira linha do seu melódico refrão, que antes era igual ao título da canção, surge na versão escocesa do tema: «Não, ná, nunca». Com as alterações habituais a que se sujeitam canções e poemas ao passar de boca em boca, a peça, graças aos movimentos migratórios, chegou aos Estados Unidos no século XIX e também à Austrália, onde granjeou grande fama. Só então, e já em pleno século XX, na sua segunda metade, é que chega à Irlanda graças ao intercâmbios de autores, e mais notoriamente pela voz dos The Dubliners (1963), embora já alguns anos antes da sua gravação fosse escutada em alguns pubs da região com letra e melodia algo semelhante à actual.
O mais curioso é a reviravolta de sentido que a canção parece ter sofrido. Se inicialmente, como explicámos, tinha intenção de ser um tema moralista que apelava à moderação, agora o seu sentido vestiu-se de cores jocosas e algo sarcásticas, uma vez que muitos duvidam da sinceridade do vagabundo em terminar com as suas deambulações alcoólicas, não obstante as promessas que jura. Além disso, veja-se a contradição: todos a cantam, ainda, em pleno pub com a sua caneca bem cheia e ao alto erguida, portanto... quem irá acreditar em tal resolução?












("Another Talented Drinker",
de Will Mallar.)