quinta-feira, 13 de julho de 2017

VERMELHA É A ROSA


Desce a colina, formosa moça irlandesa,
desce a colina até aos braços do teu amado.
Uma rosa escolheste, amor, e eu um voto fiz:
para sempre serás o meu verdadeiro amor.

        Vermelha é a rosa que cresce nos jardins distantes, 
        e belo o lírio, no vale brotando aos rodos;
        pura é a água correndo do Boyne¹,
        mas o meu amor é o mais belo de todos.

Foi pelos verdes bosques de Killarney²
que vagueámos, a lua e as estrelas cintilavam;
o luar incidiu nos cachos dos seus loiros cabelos,
e então jurou para sempre ser o meu amor.

        Vermelha é a rosa que cresce nos jardins distantes, 
        e belo o lírio, no vale brotando aos rodos;
        pura é a água correndo do Boyne,
        mas o meu amor é o mais belo de todos.

Não é pela despedida a dor de minha irmã;
não é pelo sofrimento de minha mãe,
mas pela perda da formosa moça irlandesa
que o meu coração para sempre se parte.



(Anónimo) ³






(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir da letra da canção popular mais comummente utilizada). 



(Embora proponham uma versão do tema com arranjos musicais que o afastam um pouco do seu cariz tradicional, o dueto de Órla Fallon (Celtic Woman) e Tommy Flamming distingue-se de entre os melhores. Por assim o julgar, aqui o propomos: https://www.youtube.com/watch?v=NBS5rqLY68U  ).




(1) O rio Boyne é um dos mais emblemáticos rios irlandeses, tanto pelo seu valor histórico como mitológico. Rico em salmão e truta, nasce no condado de Kildare até, seguindo a direcção de nordeste, desaguar na fronteira dos condados de Meath e Louth. O seu curso distende-se por mais de 100 Km, sempre rodeado pelo denominado "Vale do Boyne". Ao longo do mesmo, diversos castelos, cruzes celtas e ruínas de antigas cidades poderão ser encontrados. A batalha do Boyne, o maior conflito bélico da história da Irlanda, aí teve o seu lugar em 1690. Julga-se que deve o nome à deusa celta Boann, que significa "rainha" ou até "deusa", não sendo de estranhar que a tal figura se conceda a guarda do rio. 


(2) Killarney, do gaélico Cill Airne, que tem a curiosa tradução de "igreja de abrunhos", é uma cidade do sudoeste irlandês com um passado de fortes tradições religiosas. Foi nas suas imediações construído um mosteiro católico no ano de 640, cujo funcionamento permaneceu activo por mais de 800 anos (!), ao longo dos quais inúmeros documentos de grande valor foram aí copiados e produzidos. Dos seus mais procurados monumentos destacam-se o castelo Ross e a catedral de Sta. Maria. 


(3) Tratando-se de uma canção popular, é-lhe extremamente difícil atribuir uma autoria. Mas, investigando um pouco, certos aspectos poderão ser descobertos, desde logo o facto desta bonita canção ter raízes escocesas. É realmente impressionante o quão parecidas são ambas as melodias, e até ao nível da letra certas passagem revelam uma similaridade inquestionável.
A canção de base dá pelo nome de "The Bonnie Banks of Loch Lomond", ou "As formosas Margens do Lago Lomond", um tema celebrativo, não só do lugar que evoca, o lago Lomond, o maior da Escócia, como também para efeitos práticos, pois ainda é costume nesse país tocar-se esta canção no término de certas festividades. No entanto, é preciso sublinhar que a versão mais conhecida da canção não é a sua original. A que acabou sendo mais divulgada obteve publicação em 1841, mas aquela que a originou datará cerca de cem anos antes. Muitos especialistas julgam ter nascido do lamento de um jacobita após a batalha de Culloden, em 1745, que pôs fim à rebelião jacobita, instigada por um herdeiro da Casa de Stuart, por parte do exército britânico. O anónimo autor terá escrito várias linhas onde confessava a sua pena por não voltar a ver o seu amor, já que se encontrava aprisionado e o seu destino era a morte (decapitação, muito provavelmente). 
Já a versão irlandesa do tema, como se observou, parte de uma base totalmente distinta: não é mais do que uma canção de amor que, como muitas outras, acaba num coração partido. Talvez algum irlandês a tenha escutado de um escocês e assim desejado transpô-la para o seu universo pessoal, quem o saberá? A verdade é que os temas tem grandes semelhanças, sem que à versão irlandesa se anexe qualquer referência ao tema-mãe, isto é, uma simples nota dizendo: "inspirado em". Mas dentro do panorama tradicional, ou folk, é algo bastante comum, pois tal cuidado não era tido pelo mais comum dos indivíduos. Portanto, decerto que a melodia foi escutada, apreciada e reinterpretada dentro do universo irlandês. Posteriormente, o famoso cantor Tommy Maken foi o grande responsável pela sua popularização. 
Olhando mais atentamente a letra do poema, não se descobrem grandes causas para o afastamento dos amantes que tanto se queriam, mas diversos entendidos consideram esta canção como sendo uma "canção de emigração". De facto, a chave parece estar no começo da última quadra da canção: «Não é pela despedida a dor de minha irmã» (original: «It's not for the parting that my sister pains»). Ou seja, esta "partida" ou "despedida" foi sendo interpretada pelos estudiosos como um indício de estarmos perante uma referência ao enorme fluxo migratório que se registou na Irlanda durante o período da Grande Fome, nomeadamente entre 1850 e 1852, o que faz sentido, considerando que a canção já existia e já havia sido publicada por essa altura. Assim sendo, talvez seja justo considerar a emigração como a causa do afastamento do jovem casal, ficando o amado na Irlanda enquanto a amada era impelida a partir, provavelmente com a sua família, em busca de uma vida mais digna (Escócia, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos eram os destinos mais comuns).
Sobre esta versão em português, muitos dos termos originais poderiam, em prol da harmonia geral do poema e da necessária condensação dos versos, por serem amiúde muito longos, ter sido traduzidos em outros de maior formalidade e beleza poética, porém o tecido tradicional da canção, simples, ficaria sem dúvida manchado. Portanto, seguindo a mesma toada directa e simples, sem grande laivo poético, se propõe esta versão. Dado que a original só possui rima no refrão da canção, o mesmo preceito foi para a edição portuguesa tido em conta - como, aliás, fará todo o sentido.










(The Emigrant's Farewell, por Henry Doyle)




segunda-feira, 3 de julho de 2017

A ILHA DE INNISFREE


Conheci uns rapazes
que disseram ser eu um sonhador.
Não tenho dúvida que haja
verdade em suas palavras,
pois decerto alguém está condenado a sonhar
quando tudo o que ama está longe.

São as coisas mais preciosas
sonhos rumo ao exílio;
conduzem-nos até à terra
que está do outro lado do mar,
especialmente quando se é um exilado
da bela e amada ilha de Innisfree.

Quando o luar espreita
do cimo dos telhados
desta grandiosa cidade,
por mais magnífico que seja
mal sinto o seu encanto ou riso:
de novo regresso a casa, em Innisfree.

Caminho por verdes colinas,
atravessando vales de sonho;
e encontro uma paz
que nenhum outro lugar conhece.
Escuto pássaros cantando 
melodias compostas para os anjos,
e observo os rios sorrindo
enquanto fluem. 

Então, até uma humilde cabana me dirijo,
o amado lar de sempre,
e com ternura encaro os rostos
das gentes que estimo.
Em redor da turfa ardendo na lareira,
de joelhos flectidos,
o rosário de suas vidas é contado. 

Mas os sonhos não duram,
embora não sejam esquecidos;
e em breve regresso
à austera realidade.
Mesmo que pavimentassem
estes passeios com oiro em pó,
ainda assim preferiria
a minha ilha de Innisfree.



Dick Farrelly (1916 - 1990) ¹





(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original).



(Recomenda-se a belíssima versão apresentada pelo relativamente recente projecto Celtic Woman, que junta à nostalgia do poema a usual suavidade e doçura da voz feminina. Uma receita de sucesso, dir-se-ia -  https://www.youtube.com/watch?v=lh_aO4lT7IU ).





(1) Richard 'Dick' Farrelly foi um poeta e compositor irlandês que igualmente desempenhou funções como... polícia. 
Conta a história que o presente tema, sem dúvida a sua mais famosa produção, foi escrito e musicado durante uma viagem de autocarro desde a sua natal cidade de Kells, no condado de Meath, até Dublin, a capital da República da Irlanda. O tema foi lançado em 1950 e logo captou a atenção do público. Tanto que, dois anos depois, o conceituado realizador John Ford estreia o filme "The Quiet Man" ("O Homem Tranquilo"), com John Wayne e Maureen O'Hara como cabeças de cartaz, em que dá à melodia o estatuto de tema principal, escutado mais de dez vezes ao longo da película. Infelizmente, o seu criador não apareceu creditado na ficha técnica do filme, como lhe seria devido.
Para muitos críticos trata-se de uma das canções mais belas do riquíssimo acervo musical irlandês, e das mais importantes no que toca ao seu teor. De facto, nela o autor reflecte os anseios de todo o emigrante, a saudade sentida por quem está longe da terra que o viu nascer - um assunto que os irlandeses levam muito a peito, dada a história do seu país. O apego à terra e o desejo ardente do regresso fazem, assim, desta canção um instrumento com o qual muitos se poderão identificar. 
Innisfree é uma ilha deserta no norte da Irlanda, mas apesar de ter figurado num poema de Yeats, não é provável que Farrelly se referisse à mesma. Poderia, claro, ter pensado na sua terra natal, da qual partia durante a viagem em que o tema nasceu, mas esta não é uma ilha, pelo que a interpretação mais fiel recai sob a Irlanda em si, disfarçada num nome de interessante conotação. Pois, se "Free" facilmente se traduz em "livre" ou "liberto", "Innis" apresenta uma pronunciação muito próxima sonoramente de "Irish", que significa "irlandês", embora em gaélico "innis" signifique "ilha". Juntando as duas parcelas, talvez o enigma, caso exista, se torne mais claro.
Importa sempre referir que no seu original o poema, de linguagem simples e directa, apresenta uma grande irregularidade em termos de métrica e rima, aparecendo esta somente nos antepenúltimo e último verso de cada estrofe, por modo a rimar quase sempre com o nome da localidade em causa. Por isto, optou-se por retirar nesta versão a hipótese de rima, tornando o texto mais fiel à fluidez que originalmente contém. As estrofes também nem sempre apresentam o mesmo número de versos, e o grosso deste trabalho foi assim dirigido para a tentativa de tornar o texto mais poema do que letra de canção, respeitando sempre os preceitos básicos que se lhe adivinham.
Desde o seu lançamento, dada a fama de que justamente goza, este tema já ganhou vida de muitos modos distintos, através de diversas e competentes vozes, tanto masculinas como femininas, sem nunca expurgar-lhe da nostalgia mágica que exala. "A Ilha de Innisfree" parece, de certo modo, uma bonita utopia, na visão do emigrante que sonha regressar sem nunca o poder, que ganha asas sempre que o primeiro acorde soa no imaginário de cada ouvinte.







(Uma bonita paisagem do condado de Meath, região natal de Farrelly)