terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A SOLIDÃO DO EREMITA


Só, na minha choupana,
Sem companhia de um ser humano
Como é ameno peregrinar pela vida fora
E chegando ao fim achar a morte.

Em remota choupana escondido do mundo
Busco o perdão dos meus pecados.
Sereno e em paz, limpo e sem mancha
Eu quero bater às portas do Céu.

Costumes austeros ensinam o corpo
O caminho direito da santidade
Caminho trilhado com ousadia
E olhos em lágrimas rogando perdão.

Domar e secar o desejo impuro
Renunciar ao apelo do mundo
Um pensamento vivo e sem mácula
É a maneira de alcançar perdão.

Olhar as nuvens e pedir ao céu
Com ansiedade e devoção e muito fervor
Que aceite e creia na confissão
Das minhas lágrimas correndo em rio.

Um leito frio áspero e duro
Tal como o catre dos condenados
Um sono breve e receoso
E orações pela noite fora e madrugada.

Parco e frugal o meu alimento
É quanto basta e mais não preciso.
Não haja dúvida que não serviria
Esquisita exigência e farto apetite.

Uma côdea de pão de peso mui leve
Que eu agradeço com reverência.
A água da fonte que brota no monte
É a cerveja que há p'ra beber.

São magros comeres aqueles que tenho
Mas os enfermos são saciados.
Não há querelas disputas e brigas
Apenas paz e calma serena na consciência.

Um dia terei um rosto puro
Marcado pelos sinais da santidade
as faces lavradas de rugas profundas
A pele queimada curtida e seca.

Os Evangelhos apontam as veredas
Que trilho cantando os Salmos e Horas
Guardando silêncio e sem escutar palavras vãs
Orando a Deus de joelhos no chão.

Espero a visita do meu Criador
Que é o meu Rei e o meu Senhor.
Meu coração não tem descanso a procurá-lo
No reino eterno onde reside.

Que o vício abandone igrejas e lares
Que eu ache uma cela pequena e simples
Entre lajes e túmulos em plena paz
Onde esteja só, comigo e com Ele.

Onde esteja só na minha choupana
Só com o meu espírito e meu coração.
Só, eu vim ao mundo e vi a luz
E só, eu quero abalar do mundo.

Se por viver só eu fiz o mal
E cedi ao mundo e ao seu orgulho
Ouve o meu lamento e diz-me Senhor
Por que consentes na solidão!




Anónimo (Sécs. VIII ou IX) ¹







(Tradução de José Domingos Morais in "O Grito do Gamo - Poemas celtas da Fé e do Sagrado", Assírio & Alvim, 2004)







(1) Embora se desconheça o autor deste longo e confessional poema, pela sua provável data de criação é fácil de se atribuir a autoria a um dos primeiros monges que terão viajado até à Irlanda, depois da evangelização da ilha por S. Patrício. É provável que já tivessem sido erigidas algumas igrejas e mosteiros, embora o autor admita viver numa choupana e ter o desejo de encontrar «uma cela pequena e simples». Tal afirmação torna legítimo questionar se ainda não estariam completas tais construções ou se o eremita vivia ao ar livre por sua vontade, não obstante o tal desejo que expressa. 
Na verdade, sabe-se que o cenário com que se depararam muitos monges que viajaram para a ilha era veramente idílico: florestas por desbravar, rios correndo livres, animais povoando os vales, pássaros colorindo as matas. Tais características tornariam nos próximos séculos a Irlanda num local de meditação e contemplação privilegiadas, uma espécie de eremitério ideal para diversos monges, com os copistas a se tornarem nos mais conhecidos dentre eles. Quanto ao nosso autor, é óbvio que seria católico, mas não seria copista, antes alguém que escolheu a solidão dos bosques para elevar o seu espírito a Deus (embora a última quadra do poema tenha permitido reflectir uma dúvida íntima extremamente interessante, capaz de colocar em causa a própria opção de vida). Também não dispomos de informações sobre a que ordem pertenceria ou até se não seria um nativo convertido, pelo que tais questões ficarão ao critério da imaginação de cada um. 








A Hermit, de Gerard Dou (1613 - 1675)