sábado, 12 de janeiro de 2019

O LAMENTO DO EMIGRANTE IRLANDÊS


Sento-me agora no degrau, Mary,
onde nos sentámos lado a lado
numa clara manhã de Maio, há muito,
quando firmámos o nosso noivado.
O milho despontava fresco e verde,
alto e forte era da cotovia o cantar;
rubros estavam os teus lábios, Mary,
e a luz do amor fulgia em teu olhar.

O lugar pouco mudou, Mary:
o dia está tão luminoso quanto outrora,
a alta canção da cotovia faz-se ouvir
e o milho põe-se verde sem demora.
Mas falta-me o suave enleio da tua mão,
e o teu sopro, junto a mim a arder
- continuo escutando as palavras
que não mais poderás dizer.

Tudo isto dois passos além da vereda,
perto donde a capela se faz anunciar,
a capela onde nos casámos, Mary
- a sua torre consigo daqui avistar.
Mas o cemitério fica a meio, Mary,
e pode perturbar tua paz esta passada
- fui eu, adorada, que te entreguei ao sono
eterno com a criança ao peito encostada.

Estou agora muito só, Mary,
um pobre não pode novos amigos encontrar;
mas, oh!, ainda amam eles o melhor,
o pouco que o nosso Pai pode enviar!
E tu foste tudo o que tive, Mary,
a minha bênção e o orgulho meu!
Nada mais me sobra para cuidar,

desde que a minha pobre Mary morreu.

Teu era um bom e bravo coração, Mary,
que guardava ainda em si esperança,
quando a fé em Deus da alma desertou
e os braços ficaram como os duma criança.
Sempre na boca uma palavra de conforto,
e um jeito doce e gentil de olhar
- abençoou-te, Mary, por tudo isso,
embora já não me possas escutar.

Agradeço pelo teu paciente sorriso
quando o coração estava prestes a quebrar,
quando a dor da fome te roía e o escondias, 
somente para o meu bem se preservar.
Abençoou-te pela palavra amável
quando triste, dorido o coração estavas a sentir
- oh, grato estou por teres partido, Mary,
para onde os pesares te não podem afligir!

Lanço-te um demorado adeus,
minha Mary, tão gentil e verdadeira!
Não te esquecerei, adorada, na nova
terra que será a minha hospedeira.
Dizem que há pão e trabalho para todos,
e o sol brilha forte ao passar de cada dia
- mas não esquecerei a velha Irlanda,
cinquenta vezes mais bela, sem fantasia!

Muitas vezes nos vastos e antigos bosques
sentar-me-ei e os olhos cerrarei,
e o coração retornará à terra nativa,
ao lugar onde a minha Mary enterrei;
e pensarei no pequeno degrau
onde nos quedámos lado a lado,
e no milho primaveril e na manhã de maio,
quando firmámos o nosso noivado.




Helen Selina Blackwood, Senhora de Dufferin (1807 - 1867) ¹








(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original colectado em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)










(1) Nasceu Helen Selina Sheridan, em Inglaterra, descendente duma família de alta burguesia com origem na Irlanda. 
As artes desde cedo a envolveram: o seu avô paterno era o famoso dramaturgo irlandês Richard B. Sheridan (1751 - 1816), o seu pai, apesar de ter servido como soldado e desempenhado funções de administrador colonial, eram também um actor e a sua mãe, Caroline H. Sheridan (1779 - 1851), uma romancista inglesa. Não obstante o lado artístico da família, também o campo político foi palco das suas acções. 
Helen perdeu o pai com apenas dez anos de idade. Após o sucedido, a família, então a viver na actual África do Sul, regressa a Inglaterra e, por favor e graça do então príncipe regente, passa a habituar num palácio real, o Hampton Court. Helen viveu aí com a sua mãe, quatro irmãos e duas irmãs mais novas - uma delas seria famosa feminista Caroline Norton (1808 - 1877). A beleza física das três raparigas começou a ser intensamente elogiada pela sociedade, elas que a terão herdado da mãe Caroline, ao ponto de serem usualmente apelidadas de "As Três Graças". 
Aos dezoito anos desposa o Barão de Dufferin e de Claneboye, de quem tem um filho. A partir desta altura, todos os seus escritos passam a apresentar o nome que lhe ficou mais célebre: Helen Selina Blackwood, Lady of Dufferin. Depois de enviuvar, e passando alguns anos pelo meio, já com a idade de cinquenta e cinco aceita um novo casamento, tornando-se então a condessa de Gifford. Um terrível acidente, apenas volvidos dois meses, leva-a de novo à condição de viúva.
Viria a falecer em 1867, vítima de uma condição rara à época: cancro da mama. O seu filho Frederick, que sempre fora próximo da mãe, realiza uma edição póstuma dos poemas e canções de Lady Dufferin. Apesar de ter desfrutado dum óptimo estatuto e grande popularidade no século XIX, o seu trabalho, nos tempos posteriores, mergulharia num enorme esquecimento.
Sobre a escrita em si, há que dizer que a crítica nem sempre na época foi consensual. Com acusações de parco talento, frigidez poética ou imaginação limitada, também teve a sua quota parte de defesa e louvor, especialmente por Alfred P. Graves, já Helen não vivia. Os poemas e as canções foram, de facto, a sua maior especialidade (embora também tenha experimentado o teatro), e cultivava uma notória inclinação para a vida campestre e os camponeses da Irlanda donde descendia. 
O poema que aqui se traduz é o seu trabalho mais afamado, e também ele foi composto para ser cantado. Nitidamente centrado no período da Grande Fome, conta a história de um pobre camponês viúvo e sem o seu único filho, pelo que decide deixar para trás o lar e rumar, pelo que se presume, para a distante América, como tantos então fizeram. Tal como os restantes temas que Helen compôs durante a sua fase mais madura, também este se recheia dum sentimentalismo forte, triste e melancólico. 








(Imagem da capa do folheto musical, 
conforme foi impresso para o apresentar ao público americano)