sábado, 21 de dezembro de 2019

Três bênçãos de Natal irlandesas


I.

Que a Paz e a Prosperidade sejam as primeiras
a deixar a tua porta destrancada,
e a Felicidade seja à tua casa
pela candeia do Natal guiada. 


II.

Para ti, a luz da estrela de Natal;
para ti, a esperança dum coração jovial;
para ti, o calor da lareira que conforta;
para ti, a alegria dos amigos à tua porta;
para ti, a felicidade de mil anjos em louvor;
para ti, o amor de Cristo e a paz do Senhor. 


III.

A magia do Natal perdura,
embora a juventude tenha passado;
sobre o rumo natural da vida
um sagrado feitiço é lançado.



(Anónimo)







(Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais em inglês.)
















(In a One Horse Open Sleigh, 
por Nicky Boehme.)


terça-feira, 26 de novembro de 2019

PASSEANDO-SE PELA FEIRA


O meu amor disse: Meus irmãos não se importam,
Nem tuas parcas maneiras para os meus pais contam.
Então de mim se afastou, não sem deixar o seu sentimento:
Não demorará muito, amor, até ao dia do nosso casamento.

De mim se afastou, assim se passeando pela feira;
Com carinho vi-a ir a todo o lado, de toda a maneira;
E então para casa seguiu, uma estrela sobre ela cintilava,
Qual cisne¹, à tardinha, que sobre um lago deslizava.

As pessoas diziam que nunca um casal se casou
Sem que um deles tivesse um lamento que calou;
E eu sorria, enquanto de cesto cheio ia em seu rubor.
E essa foi a última vez que eu vi o meu amor.

Sonhei na última noite com ela falando-me ao ouvido;
Veio tão suavemente, seus passos sem qualquer ruído.
E assim, tão perto de mim, deixou-me o seu sentimento:
Não demorará muito, amor, até ao dia do nosso casamento.





Padraic Colum (1881 - 1972)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês antologiado em "Irish Poems", Everyman's Library, 2011.)  










(São várias as versões que ao longo das décadas diversos artistas elaboraram, cada um retirando versos ou acrescentando palavras a seu gosto. Daí que seja, actualmente, difícil encontrar uma versão totalmente fiel ao texto original. Aquela que se sugere de seguida segue, infelizmente, esse princípio desviante. Contudo, não se expurga do elemento principal: a beleza quase medieval do tema, apesar de nem ser, de longe, uma das mais divulgadas. (Uma certa obscuridade da sua intérprete justificará tal facto.)
Poderão escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=GalawYpYOP8 )







(1) - Existe uma lenda do misticismo gaélico irlandês que explica o simbolismo desta graciosa ave: quando as jovens donzelas morrem em tão tenra idade a sua alma transforma-se em cisne. É, pois, um modo muito subtil de dar a entender que a jovem amada acaba, tragicamente, por falecer. A visita que faz ao seu amado, explicada na última quadra do poema, é uma visita realizada em espírito, onde deixa a promessa do seu ansiado casamento ocorrer finalmente no único lugar agora possível: o que quer que exista depois da vida terrena. Uma promessa, talvez, de eternidade na única dimensão onde ela será possível.






Breves notas: Apesar de Colum ter reclamado a autoria deste poema, a História provou que tal direito não será totalmente autêntico. O famoso escritor irlandês admitiu, porém, ter construído o poema em torno de um verso popular, retirado a uma canção antiga: aquele que encerra a primeira e a última quadra. Contudo, existem evidências de que terá baseado a sua criação num tema chamado "I Once Had a True Love" ("Em Tempos Tive Um Verdadeiro Amor"), que ostenta expressões muito similares às escritas neste poema. Não sendo o bastante, num outro, de nome "My Young Love Said to Me" ("O Meu Jovem Amor Disse-me"), encontramos prova de uma inspiração que não levanta dúvidas. As principais denúncias ocorreram pela boca de Paddy Tunney (1921 - 2002), um poeta e cantor tradicional da Irlanda, também intérprete de ambos os temas.
No fundo, este tipo de expropriação, digamos assim, sem qualquer intenção perjurativa, é bastante comum nos domínios da canção tradicional. Não se sabe o que terá acontecido ao certo, o mais provável é Colum ter escutado a canção e a partir dela ter construído uma nova. O que se sabe é que o autor, juntamente com o musicólogo seu amigo Herbert Hughes, colectou excertos deste tema algures no condado de Donegal, no norte da Irlanda.
Foi publicada pela primeira vez em 1909 num livro que o músico editou, o fruto da pesquisa de ambos, e em 1916 Colum juntou-o a uma obra sua, mas sem qualquer referência ao tal verso que seria de origem popular (muito menos aos demais de outros temas que inegavelmente lhe serviram de inspiração.)

Sobre a melodia em si, a que Hughes colectou, não se sabe ao certo a origem, mas pela sua peculiar composição supõe-se que seja bastante antiga. Existem indícios dos seus acordes na Irlanda e na Escócia, pelo que com segurança se afirma ser mãe de vários temas distintos (a mesma melodia, letras diferentes.)








(SHE MOVED THROUGH THE FAIR (em recorte)
Padraic Woods Rua (1893-1991)) 



terça-feira, 12 de novembro de 2019

MIL-FOLHAS (Um feitiço popular)


Irei colher a bonita mil-folhas¹,
e mais afável será o meu rosto,
e mais calorosos os meus lábios,
e mais casta a minha voz.
Seja a minha voz os raios do sol,
sejam meus lábios o sumo do morango.

Possa eu ser uma ilha no mar,
possa eu ser uma colina na costa,
possa eu ser estrela no minguar da lua,
possa eu ser um cajado para os fracos;
ferir poderei eu todo o homem,
nenhum homem poderá ferir-me.






Anónimo (da tradição popular escocesa.)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa do original em gaélico editado no segundo volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de feitiços e encantamentos populares colectados por Alexander Carmichael.) 
















(1) Trata-se da achillea millefolium, também conhecida por milefólio ou erva-dos-carpinteiros, uma espécie pertencente à família das margaridas e dos crisântemos, por exemplo - a Asteraceae
É comummente tida por uma erva com propriedades instigadoras de um bom casamento, com fidelidade e fertilidade em abundância - além das suas vastas aplicações medicinais (essas sim, já a ciência pôde medir.) 
Os celtas, contudo, na sua maioria viam nesta erva um depósito de força e vitalidade, um manancial de propriedades mágicas. É, pois, curioso constatar que este poema, de modo algo oculto, parece indicar uma delas, talvez a mais desconcertante de todas: a capacidade de mudar de forma. Embora os primeiros versos do poema pareçam apenas aludir a uma magia de embelezamento, os restantes indicam uma capacidade de transformar o "eu", que sabemos humano, em algo mais - não só paisagem ao nível físico, mas algo além de um mero homem. Uma simples metáfora?
Se quisermos desenvolver um pouco este tema, nem que seja apenas para satisfazer curiosidades, poderemos revelar um dos nomes populares que na região britânica e irlandesa à erva dão: cauda-de-lobo. Assim é por assim parecer, de facto, mas quando combinada a esta capacidade de mudar de forma... o caso torna-se mais místico. Pois vários estudiosos do oculto associam o nome e as capacidades da planta aos... lobisomens. Que, é importante esclarecer, naquelas paragens não tinham a conotação negativa que hoje conhecemos - essa herdámos das lendas germânicas. Na Irlanda, os homens com capacidade de se transformarem em lobos eram vistos como guardiões de crianças, feridos e caminhantes perdidos (recordemos o seguinte verso: «possa eu ser um cajado para os fracos».) Criaturas afáveis e prestáveis, portanto. E tudo por obra das ditas ervas? Bem, não está escrito que quem comer um mil-folhas se transforma em lobo, apenas que homens com essa capacidade e a dita planta partilham do mesmo talento: a alteração da forma primitiva. Mas convenhamos... Este poema é, acima de tudo, um feitiço por extenso, e quem o escreveu, pelo desejo de invencibilidade que no fim passa, bem queria ser mais do que era...   
Na verdade, a própria planta é bastante polimórfica, ao ponto de poder exalar aromas diferentes se cultivada em diferentes áreas. Uma rosa na China é uma rosa em Espanha, com cada tipo a possuir o mesmo perfume, mas uma frágil mil-folhas altera o seu aroma consoante a região em que cresce. Quem sabe se não foi essa característica a estimular a imaginação dos celtas?









(Fonte: Pinterest.com)






terça-feira, 22 de outubro de 2019

ILHA DE ESPERANÇA, ILHA DE LÁGRIMAS


No primeiro dia de janeiro,
mil oitocentos e noventa e dois era o ano,
abriram o porto da ilha Ellis¹
àqueles que haviam cruzado o oceano. 
E quem primeiro pisou a soleira
dessa ilha de lágrimas e esperança
foi Annie Moore², irlandesa
de apenas quinze anos - uma criança.

      Ilha de esperança, de lágrimas correndo em veios,
      ilha da liberdade, ilha dos receios,
      mas não é a ilha que não mais pisarás,
      essa ilha de fome, de dor constante,
      ilha que não verás mais um instante,
      mas que na lembrança sempre guardarás.

Na sua pequena mala carregava
toda uma história de trabalho e vontade
e os seus sonhos para a vida futura
naquela terra de liberdade.
A coragem serviu de passaporte
quando o velho mundo desvaneceu,
pois não há futuro no passado
quando um coração só quinze anos viveu. 

      Ilha de esperança, de lágrimas correndo em veios,
      ilha da liberdade, ilha dos receios,
      mas não é a ilha que não mais pisarás,
      essa ilha de fome, de dor constante,
      ilha que não verás mais um instante,
      mas que na lembrança sempre guardarás.

Quando encerraram a ilha Ellis
em mil novecentos e quarenta três,
já dezassete milhões de pessoas
em busca de refúgio tiveram a sua vez.
Na primavera, quando por lá passo,
caminho sobre o longo cais
e imagino como, aos quinze anos,
tamanha viagem se conte em ais. 

      Ilha de esperança, de lágrimas correndo em veios,
      ilha da liberdade, ilha dos receios,
      mas não é a ilha que não mais pisarás,
      essa ilha de fome, de dor constante,
      ilha que não verás mais um instante,
      mas que na lembrança sempre guardarás.




Brendan Graham (1945) ³







(Versão de Pedro Belo Clara.)








(Propomos a belíssima versão que o projecto Celtic Woman elaborou do tema. Poderá escutá-la aqui, gravada ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=0zGMfqHciP0 .)







(1) A ilha Ellis, no original "Ellis Island", situa-se na região norte da baía de Nova Iorque, nos Estados Unidos, e tornou-se famosa por ser a porta de entrada do país ao emigrantes que durante décadas procuraram uma vida melhor no chamado "novo mundo". Era, a bem verdade, o primeiro pedaço de terra que pisavam após a longuíssima viagem transatlântica.
Embora a canção refira o ano de 1892 como o da abertura dos portos aos emigrantes, a verdade é que por muitos anos antes dessa data já milhares haviam pela mesma via entrado no novo continente. A diferença, porém, é que esse foi o ano em que pela primeira vez se executou o registo das chegadas. 
Importa também esclarecer que os dados oficiais apontam para um número a rondar os doze milhões de entradas nos EUA até à década de cinquenta do século passado, contrariando os dezassete milhões referidos pelo autor. Ou estaria ele, assim como quem supõe, a contar com os clandestinos que por lá se introduziram sem que as autoridades competentes tomassem registo da ocorrência?


(2) Como a própria canção já esclarece, Annie Moore foi a primeira emigrante a ser registada nos Estados Unidos. Tinha apenas quinze anos quando realizou a árdua travessia e vinha acompanhada pelos seus dois irmãos mais novos, Anthony e Philip (que teriam à volta de dez e sete anos.) Os seus pais haviam partido quatro anos antes e viviam então em Manhattan, Nova Iorque. A família ficou assim finalmente reunida.
Contudo, existe alguma controvérsia nesta história. Tanto neste tema como em outros que fazem referência a Annie, sempre se foca a questão da sua juventude e louva-se o carácter e a determinação da jovem adolescente. No entanto, existem registos que apontam para novos indícios: Annie teria entre dezassete e dezoito anos, sendo os referidos quinze anos a idade do segundo irmão mais velho. A discrepância é significativa e, diga-se, ameaça seriamente alterar toda a essência dessas canções. 
Resta acrescentar que, sendo a família natural do condado de Cork, num dos portos dessa localidade, de seu nome Cobh, ex-Quennstown, ergue-se uma pequena estátua de Annie com os seus dois irmãos (todos aparentemente representados com as idades que os poemas e canções escritos dentro deste tema habitualmente referem.)


(3) Brendan Graham é um popular letrista e romancista irlandês, natural do condado de Tipperary. Associado à sua carreira encontra-se a particularidade de ter escrito a letra de duas canções vencedoras do festival eurovisão da canção, ambas pela sua Irlanda natal: "Rock'n'roll Kids", em 1994, e o belíssimo "The Voice", em 1996 - interpretado pela banda Secret Garden, com quem habitualmente colabora. É igualmente o autor do estrondoso sucesso "You Raise Me Up", um tema que adquiriu fama mundial pela voz de Josh Groban. 
No que toca ao romance, o sucesso conhecido têm-se essencialmente registado nos mercados irlandês e britânico. Nenhuma das suas obras encontra-se actualmente traduzida para português. 












(A estátua erguida em memória de Annie Moore e seus irmãos, 
em Cobh, na Irlanda.)




quinta-feira, 5 de setembro de 2019

INNISFREE, A ILHA DO LAGO


Erguer-me-ei e de pronto partirei, para Innisfree¹ partirei,
e uma pequena cabana farei, com argila e canas por telhas: 
nove renques de feijão plantarei, uma colmeia terei,
e só viverei no seio do alto rumor das abelhas.

E alguma paz aí terei, pois a paz goteja lentamente,
goteja dos véus da manhã até onde o grilo canta;
a meia-noite é cintilante, o meio-dia púrpura fulgente
e o entardecer cobre-se de asas de pintarroxo, qual manta. 

Erguer-me-ei e de pronto partirei, pois noite e dia
escuto as águas do lago na margem em suave ondulação;
esteja na estrada ou nos passeios de cinza agonia,
escuto o seu murmúrio no mais fundo do coração.





William Butler Yeats (1865 - 1939)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original publicado em 1890, no jornal britânico The National Observer.)











(1) Innisfree, como o próprio título do poema indica, é uma pequena ilha desabitada que se situa do lago Gill, no condado de Sligo, na Irlanda - onde Yeats passava os verões enquanto jovem. O seu nome em gaélico significa "A Ilha da Urze", o que nos deixa com a pertinente questão: será por isso que o poeta diz que os meios-dias aí são "púrpura fulgente"? 



Nota: O poema foi escrito em 1888 quando Yeats estava em Londres. Passeando-se por uma das suas ruas, perdido em pensamentos e com saudades da sua pátria natal, de súbito o poeta viu-se invadido por uma memória de infância: ao escutar um fio de água que caía da janela duma loja, Yeats recordou o som das águas do já referido lago. Além disso, o próprio admitiria, mais tarde, que por aqueles anos ainda alimentava a esperança de construir uma cabana e viver no bravio isolamento de Innisfree, inspirado pelo exemplo de H. D. Thoreau - aspectos a que o poema faz referência.
O sucesso foi imediato, tornando-se um símbolo do revivalismo celta que Yeats tentou trazer à cultura irlandesa, em contraposição às influências que chegavam de Inglaterra. Em 1928, Muriel Herbert (1897 - 1984) musicou-o - embora não haja actualmente uma grande divulgação do tema. 
Ainda é um dos seus poemas mais conhecidos e apreciados, embora o autor tenha diminuído o seu crédito com o passar dos anos, considerando-o filho dum registo que já abandonara de vez, um pequeno espelho onde deixou de rever o seu coração. 
Hoje em dia, os cidadãos irlandeses têm nos seus passaportes uma transcrição do poema.












(Ao fundo, a bonita ilha de Innisfree)


domingo, 14 de julho de 2019

GUTO BACH E AS FADAS


Em Llangybi¹, vivia um rapaz chamado Gruffydd, mas todos o conheciam como Guto Bach. 

Um dia, depois de ter levado as ovelhas de seu pai a pastar, disse à mãe que tinha estado no prado a brincar com crianças pequeninas. Intrigada, a mãe perguntou-lhe quem eram essas crianças, mas o jovem não soube responder. A mãe compreendeu imediatamente que eram fadas e proibiu-o de voltar ao prado para brincar com elas. Mas Guto tinha gostado de brincar com o Povo Pequeno e, por isso, um dia, desobedecendo à mãe, fugiu para o prado e não voltou mais. 

Passaram dois anos e a mãe de Guto Bach, ao abrir a porta de casa, encontrou o filho à entrada com uma trouxa debaixo do braço. Tinha exactamente o mesmo tamanho e vestia as mesmas roupas, como se não tivesse passado tempo algum.

«Onde estiveste, meu filho, durante todo este tempo?», perguntou ela.

«Mas não passou tempo nenhum, mãe. Saí para brincar com as crianças minhas amigas. Veja as roupas lindas que elas me deram.»

E, dizendo isto, abriu a trouxa e tirou de lá de dentro um vestido de papel. Mas a mãe, ainda assustada com o sucedido, queimou-o.

Pouco tempo depois do rapaz regressar, os seus pais perderam quase tudo o que tinham. Desesperados, lembraram-se de que se dizia que, numa enorme rocha, debaixo de um monte perto de Llangybi, estava escondido um grande tesouro. 

Muitos tinham experimentado mover a rocha, sem sucesso. Os pais de Guto Bach decidiram tentar também a sua sorte. Os vizinhos, com pena da sua situação, foram ajudá-los, levando cavalos para deslocar a rocha. Porém, esta não se moveu, apesar dos esforços dos homens e dos animais. Os pais de Guto Bach ficaram desolados. 

Vendo a tristeza dos pais, Guto Bach lembrou-se de que as crianças com quem brincava possuíam muito ouro e muita prata e, por isso, resolveu partir à procura delas.

Encontrou-as num prado a brincar, como de costume. Contou-lhes  sucedido e pediu-lhes se podiam despender algum do seu dinheiro para que pudesse ajudar os pais. Elas responderam que havia dinheiro suficiente debaixo da rocha. Guto afirmou que sabia disso, mas que ninguém a conseguia mover.

«Então, tenta tu movê-la e vê o que acontece», exclamaram as fadas.

Guto regressou a casa e contou aos pais o que as fadas lhe tinham dito. Os pais riram-se, pois não acreditavam que o filho conseguisse mover a pedra quando os homens mais fortes da região e os próprios cavalos tinham falhado. Ainda assim, não tinham nada a perder, por isso, concordaram. 

Levaram-no até à rocha e, assim que o rapaz lhe tocou, a enorme massa de pedra mexeu-se. Ele deu-lho um encontrão e a rocha rebolou para fora do local onde tinha estado, deixando a descoberto uma gruta onde Guto e os seus pais encontraram muitas moedas de ouro e de parta.

As fadas tinham-no recompensado pelos seus momentos inocentes de brincadeira.












(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo".)














(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)
















(1) Pode referir-se a uma de três localidades que com o mesmo nome existem no País de Gales, todas elas situadas em diferentes distritos e erguidas em honra do santo católico Cybi ou Cuby, um bispo (e por um breve período Rei) que viveu no século VI da nossa era. 



















("Broken Wing",
de Lynne Bellchamber.)








quinta-feira, 6 de junho de 2019

O MOÇO DO CABELO ENTRANÇADO


Aquele moço do cabelo entrançado
com quem um dia me atardei um pouco
de olhos luzindo e sorriso nos lábios,
passou por aqui a noite passada
e não se deteve nem me quis ver.
E eu que pensava que não lhe custava
vir até mim, dizer-me palavras
de riso e carinho!
E eu que ansiava por um só beijo
de muita ternura que fosse refresco,
conforto e remédio da febre a ferver!

Se eu fosse donzela de muita riqueza,
pulseiras e jóias de pedras e oiro
e a bolsa cheia de moedas de prata,
há muito teria mandado lavrar
ameno atalho pelo meio do mato,
carreio de flores escondido do mundo,
caminho discreto da minha porta.
Nas noites sem sono a Deus rogaria
que fizesse ouvir o estalido suave
da sua pisada, me desse a saber
o sabor sonhado de um beijo seu
tão aguardado.

E eu que pensava, oh meu amor,
que eras a lua e o brilho da noite,
que eras o sol e a luz do dia!
E eu que pensava, oh minha vida,
que eras a neve na alta montanha,
o fogo do céu enviado por Deus,
a Estrela do Norte diante de mim
guiando meus passos, o rumo apontando!

Apenas disseste palavras sem tino!
Tu prometeste vestir-me de sedas
com ricos lavores,
belos toucados no meu cabelo,
calçar meu pés de finos sapatos
de tacão mui alto.
Tu prometeste perseguir meu corpo
e nadar comigo na ribeira do vale.
Não é o meu jeito, não sou assim
e é minha sina cumprir o destino
de moça mui simples
que passa seus dias, de manhã à noite,
de agulhas na mão sentada à janela
da casa da mãe.






Anónimo. (Canção da tradição oral irlandesa.)









(Tradução de José Domingos Morais in "O Imenso Adeus - Poemas Celtas do Amor", Assírio & Alvim, 2004)














("Waiting (woman at the window)",
de Federico Zandomenegi.)



quinta-feira, 16 de maio de 2019

BEDD GELERT


Gelert era o nome do galgo favorito do príncipe Llywelyn¹, que lhe tinha sido oferecido pelo seu padrinho, o próprio rei João de Inglaterra. Gelert era um cão meigo e dócil para o seu dono, mas portava-se como um verdadeiro cão de guarda durante a noite, sendo ainda mais bravo, ágil e corajoso enquanto cão de caça. Llywelyn gostava tanto dele que o deixava comer à sua mesa e dormir aos pés de sua cama.

Numa manhã, o príncipe Llywelyn partiu para a caça e, soprando o seu corno em frente aos portões do castelo, chamou os seus cães. Todos acorreram ao chamamento, excepto Gelert. Llywelyn ficou admirado por o seu mais fiel companheiro não aparecer para o acompanhar na caçada, mas, ainda assim, partiu sem ele para a floresta. 

A caçada não correu muito bem, talvez porque os outros cães não possuíam a energia e a velocidade de Gelert, e Llywelyn regressou a casa, triste e desalentado. 

Assim que chegou aos portões do castelo, Gelert já lá estava para o receber. Porém, todo ele estava coberto de sangue, que pingava também das suas presas. Llywelyn olhou para o cão, francamente espantado. Este acocorou-se e lambeu-lhe as mãos. 

Cada vez mais intrigado, o príncipe entrou em casa, e um pressentimento fê-lo entrar no quarto do seu filho de dois anos. Todo o quarto estava manchado de sangue. O berço do bebé encontrava-se caído no chão, e a manta do berço encharcada em sangue. 

Llywelyn começou a chamar pela criança, mas ninguém lhe respondeu. Cheio de terror, logo concluiu que havia sido Gelert a matar o seu único filho. E então pegou na espada e mergulhou-a no peito do animal, que caiu gemendo a seus pés, sem entender a atitude do dono.

No momento em que Gelert agonizava, ouviu-se um choro de criança. Atrás do berço derrubado estava o filho de Llywelyn, são e salvo, e, junto dele, o cadáver despedaçado de um lobo enorme. Nesse instante, compreendeu que tinha cometido um erro fatal: o seu fiel cão Gelert, que ele tinha acabado de matar, havia lutado, com risco da própria vida, contra aquele lobo feroz para salvar o seu filho. 

O seu desgosto foi enorme. Entre lágrimas, fez erguer uma sepultura ao nobre Gelert num local que ainda hoje se chama Bedd Gelert, A Sepultura de Gelert. ²








(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo".)












(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)













(1) Trata-se de Llywelyn, o Grande, que governou o actual País de Gales por mais de quarenta anos, a custo de boas artes diplomáticas e, claro, habilidade bélica. 
O seu nome completo era Llywelyn ap Iorwerth (Llywelyn, filho de Iorwerth), nasceu em 1174 e faleceu a 11 de abril de 1240, e pelo meio revelou-se um dos mais emblemáticos líderes galeses. A sua esposa era Joan, filha ilegítima do Rei João de Inglaterra, com quem terá casado contava ela apenas onze ou doze anos de idade, tendo mais tarde protagonizado diversas histórias de adultério. Era chamada "Senhora de Gales", ao invés de "Princesa."
Três anos antes de morrer, já viúvo, Llywelyn terá sofrido um forte acidente vascular cerebral que o paralisou parcialmente. Mais tarde, entregou o governo ao seu filho e tomou o hábito na abadia cisterciense de Aberconwy, que fundou e onde viria a ser inicialmente enterrado. O seu túmulo ainda é possível de ser visto na igreja de St. Grwst, em Llanrwst. O castelo onde terá nascido e aquele que construiu para viver, o Dolwyddelan, ainda existem actualmente, embora o primeiro já esteja em ruínas. 
Resta acrescentar que pelo teor do conto apresentado, poder-se-ia de boamente colocar a sua produção algures nas primeiras décadas do século XIII, talvez até um pouco depois da morte de Llywelyn, embora só apareça escrito numa antologia da segunda metade do séc. XIX - que o conota como "um conto muito popular". Contudo, pelo facto de existirem diversas versões desta história em várias culturas, como por exemplo a indiana, onde só os animais envolvidos se alteram, e ainda outra mais antiga de origem galesa, considera-se a lenda como sendo uma variação dessas outras, e não uma história com um fundo real. Terá sido usada para justificar o nome da vila, ao invés do seu contrário? (ver nota 2.)


(2) A dita vila, de facto, existe. Situa-se na região noroeste do País de Gales, no condado de Gwynedd. Num local reservado, encontra-se um resumo da história atrás relatada junto de uma grande pedra que, segundo a lenda, serve de monumento fúnebre ao nobre Gelbert.
Apesar da celebridade da lenda, vários historiadores confirmam que a origem do nome da vila estará antes relacionado com um santo católico muito antigo, de seu nome Kilart ou Celert, um santo ermita do séc. VII que naqueles lugares não terá falecido, do que com a lenda do fiel galgo que tantos galeses amam. A apoiar tal premissa está o facto do monumento fúnebre ter sido erguido em finais do séc. XVIII a mando do dono de uma estalagem local, por modo, como se suspeita, a incrementar o turismo na zona - e assim expandir os seus lucros. Se não é pelo cão nem pelo santo que, afinal, morreu martirizado, o verdadeiro Gelert que dá nome à vila permanece um grande mistério.











(Gelert, de Charles B. Barber (1845 - 1894))



sexta-feira, 26 de abril de 2019

KILKELLY, IRLANDA (Quinta Parte)




Kilkelly, Irlanda, 1892.
John, meu irmão querido:
desculpa não te ter escrito mais cedo
contando que o pai havia falecido.
Vivia com a Bridget, ela disse que esteve
alegre e saudável até a sua hora chegar.
Devias tê-lo visto com os netos do teu amigo 
Pat McNamara: nunca paravam de brincar.
Sepultá-mo-lo no pátio da igreja de Kilkellly,
ao lado da nossa mãe, sua esposa querida.
O pai era um velhote rijo e bem vivaço, 
considerando o quão dura lhe foi a vida.
Engraçado como não parava de falar em ti,
próximo do fim pelo teu nome ouviu-se chamar.
Porque não pensas em fazer-nos uma visita?
Todos nós gostaríamos outra vez de te abraçar.






Peter Jones.








(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês.)










(Agora que se finda esta série de cinco publicações, deixamos ao estimado leitor a habitual sugestão musical. Desta vez, escolhemos a belíssima versão, segundo o nosso parecer, claro está, que Robbie O'Connell fez do tema, tornando-a provavelmente na mais divulgada e, por isso, conhecida interpretação. Se será ou não a mais bem conseguida, isso deixaremos ao critério de quem a quiser escutar. Aqui fica o vídeo da dita versão, com diversas fotografias de época a ilustrá-lo: https://www.youtube.com/watch?v=Mq8FASqnohU .)










(Nota: É possível consultar todas as cartas que estiveram na origem desta canção. Quem o desejar fazer, poderá visitar o seguinte site: https://www.irishcentral.com/homepage/the-moving-letters-of-a-family-to-their-son-in-america-after-the-famine . 
Com um pouco de tempo e paciência, notar-se-á que muitos detalhes foram compreensivelmente ocultados na história que se canta, nomeadamente a morte duma outra irmã, de seu nome Mary. Como já se sabe, apenas Bridget é referida na canção, mas na última carta que sobreviveu ao tempo, datada de 1892, e onde já se faz nota ao falecimento do pai, é ainda possível encontrar um esclarecimento sobre a morte dessa outra irmã, falecida após «três dias em que esteve na cama, doente.»
Não se torna totalmente claro se John voltou ou não à Irlanda. Também não se sabe porque se interrompeu a correspondência. Uma nova morte? Cartas posteriores que se perderam no tempo? Apenas se poderá conjecturar, mesmo que seja elevado o grau de probabilidade de John não se ter reencontrado com a sua família na ilha natal. 
Em todo o caso, o testemunho que fica imortalizado nesta bonita balada apresenta uma dimensão humana profunda, servindo de exemplo das múltiplas vivências de irlandeses imigrados na América: o trabalho nos caminhos-de-ferro, casamento e filhos vários, ligeira melhoria de condições de vida, a saudade dos que ficaram para trás, a morte dos familiares ainda na terra natal e o quase provável não regresso ao país de origem. Por tudo isto, é natural que este tema fale muito intimamente a cada irlandês, dado ser uma prova viva dum passado tão árduo e difícil de esquecer.)
















(The Old Man Reading A Letter, 
de Fyodor Bronnikov (1827 - 1902))