terça-feira, 12 de novembro de 2019

MIL-FOLHAS (Um feitiço popular)


Irei colher a bonita mil-folhas¹,
e mais afável será o meu rosto,
e mais calorosos os meus lábios,
e mais casta a minha voz.
Seja a minha voz os raios do sol,
sejam meus lábios o sumo do morango.

Possa eu ser uma ilha no mar,
possa eu ser uma colina na costa,
possa eu ser estrela no minguar da lua,
possa eu ser um cajado para os fracos;
ferir poderei eu todo o homem,
nenhum homem poderá ferir-me.






Anónimo (da tradição popular escocesa.)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa do original em gaélico editado no segundo volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de feitiços e encantamentos populares colectados por Alexander Carmichael.) 
















(1) Trata-se da achillea millefolium, também conhecida por milefólio ou erva-dos-carpinteiros, uma espécie pertencente à família das margaridas e dos crisântemos, por exemplo - a Asteraceae
É comummente tida por uma erva com propriedades instigadoras de um bom casamento, com fidelidade e fertilidade em abundância - além das suas vastas aplicações medicinais (essas sim, já a ciência pôde medir.) 
Os celtas, contudo, na sua maioria viam nesta erva um depósito de força e vitalidade, um manancial de propriedades mágicas. É, pois, curioso constatar que este poema, de modo algo oculto, parece indicar uma delas, talvez a mais desconcertante de todas: a capacidade de mudar de forma. Embora os primeiros versos do poema pareçam apenas aludir a uma magia de embelezamento, os restantes indicam uma capacidade de transformar o "eu", que sabemos humano, em algo mais - não só paisagem ao nível físico, mas algo além de um mero homem. Uma simples metáfora?
Se quisermos desenvolver um pouco este tema, nem que seja apenas para satisfazer curiosidades, poderemos revelar um dos nomes populares que na região britânica e irlandesa à erva dão: cauda-de-lobo. Assim é por assim parecer, de facto, mas quando combinada a esta capacidade de mudar de forma... o caso torna-se mais místico. Pois vários estudiosos do oculto associam o nome e as capacidades da planta aos... lobisomens. Que, é importante esclarecer, naquelas paragens não tinham a conotação negativa que hoje conhecemos - essa herdámos das lendas germânicas. Na Irlanda, os homens com capacidade de se transformarem em lobos eram vistos como guardiões de crianças, feridos e caminhantes perdidos (recordemos o seguinte verso: «possa eu ser um cajado para os fracos».) Criaturas afáveis e prestáveis, portanto. E tudo por obra das ditas ervas? Bem, não está escrito que quem comer um mil-folhas se transforma em lobo, apenas que homens com essa capacidade e a dita planta partilham do mesmo talento: a alteração da forma primitiva. Mas convenhamos... Este poema é, acima de tudo, um feitiço por extenso, e quem o escreveu, pelo desejo de invencibilidade que no fim passa, bem queria ser mais do que era...   
Na verdade, a própria planta é bastante polimórfica, ao ponto de poder exalar aromas diferentes se cultivada em diferentes áreas. Uma rosa na China é uma rosa em Espanha, com cada tipo a possuir o mesmo perfume, mas uma frágil mil-folhas altera o seu aroma consoante a região em que cresce. Quem sabe se não foi essa característica a estimular a imaginação dos celtas?









(Fonte: Pinterest.com)






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