sábado, 20 de fevereiro de 2021

A RAPARIGA DE AUGHRIM

 
A chuva cai nos meus loiros caracóis,
as gotas sobre a pele são de enregelar;
a criança tão fria está em braços meus
- Lord Gregory, deixe-me entrar!

      Se és a rapariga de Aughrim,¹
      e não digo que esteja enganado,
      diz-me qual o primeiro objecto
      que entre nós dois foi trocado?

Oh, Gregory, não se lembra
daquela noite na colina, à luz de vela,
quando trocámos os anéis de nossos dedos
contra a minha vontade de donzela?
De oiro martelado era o anel meu,
de negro chumbo aquele que me deu.

      Oh, se és a rapariga de Aughrim,
      como sei já que estás errada!
      Mas diz-me: qual a outra peça
      que entre nós dois foi trocada?

Oh, Gregory, não se lembra
daquela noite na colina, à luz de vela,
quando trocámos nossos camiseiros
contra a minha vontade de donzela?
Era o meu de fino tecido holandês,
o seu apenas feito de pano escocês.

      Oh, se és tu a rapariga de Aughrim,
      como sei bem que não podes ser, 
      qual foi a nossa última troca?
      Será que agora me podes dizer?

Oh, Gregory, não se recorda,
na casa de meu pai, o salão-mor,
quando de mim tomou o que quis?
Foi de todas a desgraça maior...

A chuva cai nos meus loiros caracóis,
as gotas sobre a pele são de enregelar;
a criança tão fria está em braços meus
- Lord Gregory, deixe-me entrar!



(Anónimo.)








(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês.) ²







(Poder-se-á escutar uma versão deste tema aqui: https://www.youtube.com/watch?v=CzFQXQ81nEI .)








(1) Aughrim é uma pequena vila situada no condado de Galway, na Irlanda. 



(2) Esta canção, ao que tudo indica, será a versão irlandesa dum longo poema com o título The Lass of Roch Royal ("A Rapariga de Roch Royal"), presumivelmente escocês. O nome do lugar, porém, não existe, mas encontramos nesse país o castelo Rough, em Falkirk, e o lago Ryan (Loch Ryan) no sudoeste do país. Para todos os efeitos, são aproximações consideradas válidas por quem de direito.
Uma canção com o nome Lord Gregory, possivelmente nesse texto baseada, surge no famoso cânone de Francis James Child (1825 - 1896), um escolástico norte-americano. Aí, Child, que colectou diversas canções populares da Escócia e da Inglaterra, indica que descobriu o tema escrito num manuscrito não publicado do princípio do séc. XVIII. Mais tarde, em 1776, é pela primeira vez editado num volume de nome Ancient and Modern Scottish Songs, da autoria de David Herd (1732 - 1810). Anos depois, em nova edição noutro volume, já surgia com nome distinto: The Lass of Ocram ("A Rapariga de Ocram"). 
Algures no tempo, a canção "viajou" até à Irlanda e aí recebeu a modelagem com que ficou conhecida naquele país. Apesar de uma certa popularidade, ao ponto do irlandês mais comum, por tê-la recebido de geração em geração, a considerar sua, o que terá elevado a fama do tema foi decerto a referência que lhe é feita no conto "O Morto", presente no livro "O Dublinenses", de James Joyce (1882 - 1941). Dada a sua importância no desenrolar da narrativa, que levará ao seu desfecho, o tema foi certamente investigado por muitos entusiastas - contribuindo para a sua universalidade.  
Como é habitual no universo das canções populares, existem imensas variações do tema. Se nuns, como o presente texto, o nome da rapariga infortunada nem sequer é referido, noutros é designada de Annie, Isabell ou Janet. A própria história, por sua vez, também sofre alterações de versão para versão. Como saber qual a que deu origem a tudo? 
Uma das poucas constantes é, de facto, o nome do nobre rapaz envolvido em tamanha malandragem: Lord Gregory. No geral, pode-se afirmar que em todas as versões temos uma rapariga a bater à porta do nobre rapaz que a enganou, pedindo abrigo para ela e seu filho. Como chove, e presume-se ser noite, a rapariga julga falar com o pai da criança, mas o Gregory que responde é, afinal, a sua mãe. (Note-se que Gregory, em português literalmente significando Gregório, é aqui nome de família, não nome próprio.) Assim, esta acaba enganando a rapariga e negar-lhe guarida. Outras versões são mais elaboradas e dão à mãe um cariz de feiticeira, que instiga a rapariga a correr para o mar, pois o filho havia embarcado - mentira, claro está. Nessa, contudo, encontramos um desfecho bem diferente, bem como intenção: o rapaz estaria apaixonado pela pobre moça, e ao vê-la morta num naufrágio  também ele sucumbe.
Não obstante, é uma canção que, embora não se baseie em nada de concretamente real, serve de denúncia de tantos comportamentos incorrectos tidos então, numa sociedade vincadamente patriarcal. Por lei, imagine-se, os pais de filhos feitos fora do casamento nem tinham obrigação de cuidar deles, ao passo que as mulheres eram facilmente castigadas moral e penalmente. 
Apesar de se tratar duma balada triste, é a prova dum tempo cruel, onde os homens tinham uma ampla liberdade de comportamento e nada pagavam pelas suas transgressões amorosas. Uma leitura mais atenta compreenderá como este filho, que a pobre rapariga embala, frio, em seus braços numa noite de chuva é o resultado duma violação, apesar de se depreender um certo namoro entre os dois jovens. Mas veja-se como pouca era já a estima de Gregory por esta rapariga que, sendo mais pobre, não seria propriamente uma camponesa iletrada: dá-lhe, ainda que contra a sua vontade, um anel de ouro e recebe em troca um de... chumbo. 
Só não se sabe, é certo, como Lord Gregory receberia a notícia de ter sido pai, dado que também aqui se presume que é a sua mãe que responde à rapariga e, negando-a, a envia para outro lugar que não aquele. Terá voltado para casa dos pais? Pois se a vemos de noite, debaixo de forte chuva, a bater à porta do seu amado pouco gentil não se depreenderá que fora, antes, expulsa de casa dos seus ofendidos pais?
O tema servira também de aviso a todas as donzelas para que não caíssem nos engodos dos nobres senhores tão desejosos de frescas conquistas. 
Para terminar, esclarece-se que a versão cantada deste texto, em regra, não é tão longa quanto esta aqui apresentada, especialmente nas versões mais recentes, onde cortam as referências aos anéis e aos camiseiros. 






("Portrait Of A Young Girl Holding Flowers"
- autor desc., séc. XIX)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

PERGRIN E A SEREIA

 
Numa tarde de Setembro, um pescador chamado Pergrin encontrava-se perto da costa a remar no seu barco. De repente, pareceu-lhe ver uma mulher numa concavidade de um penhasco. Intrigado, decidiu ir a terra para verificar se não se tinha enganado. Aproximou-se do penhasco com cautela e, para seu espanto, numa das concavidades da rocha, estava uma donzela lindíssima, embora da cintura para baixo tivesse uma cauda igual à dos peixes.

A sereia estava tão absorta a pentear o cabelo, que nem reparou que alguém a observava. Pergrin ficou a olhar para ela e a admirá-la durante muito tempo. Depois, de repente, decidido a levá-la para casa, agarrou-a por um braço e meteu-a dentro do barco. Amarrou-a para que não fugisse e remou em direcção a casa. 

A sereia começou a chorar e a implorar que ele a libertasse. Mas Pergrin, embora delicado, não acedeu às suas súplicas e, chegando a casa, fechou-a num quarto. Tratava-a com carinho e desvelo, mas a sereia chorava todo o dia e passou a recusar comida e bebida. Todos os dias, pedia a Pergrin para a libertar, mas isso era algo que ele não queria fazer. À medida que o tempo foi passando, a sereia foi ficando cada vez mais magra e com ar doentio. Pergrin começou a ficar preocupado. 

Um dia, um amigo contou-lhe o que tinha acontecido a um homem que, tal como ele, tinha capturado uma sereia. Embora ela muito lhe pedisse para a libertar, ou, pelo menos, para a deixar colocar a sua cauda dentro de água, o homem recusou todos os pedidos e ela acabou por morrer. Antes, porém, a sereia amaldiçoou o seu raptor e a aldeia onde tinha ficado presa durante tanto tempo. Passadas poucas semanas, o homem morreu de um modo miserável, assim como miseráveis e pobres foram sempre os habitantes daquela aldeia. 

Pergrin ficou a pensar nesta história. Por isso, quando a sua sereia lhe pediu «Deixa-me ir, que, em troca, quando estiveres em perigo, darei três gritos para te salvar», Pergrin levou-a até ao mar e aí a devolveu às águas. Feliz, a sereia mergulhou nas profundezas.

Passaram muitos meses. Pergrin nunca mais viu a sereia. Um dia, porém, numa tarde límpida e quente, foi à pesca no seu barco e, com ele, também nos seus barcos, foram vários pescadores. O céu estava muito azul, sem a ameaça de uma única nuvem. Mas, de repente, a cabeça da sereia emergiu das águas e ele ouviu-a gritar por três vezes: «Pergrin, recolhe a tua rede e volta para casa.» 

Pergrin obedeceu de imediato. Mal acostou o barco, uma enorme e violenta tempestade abateu-se sobre o mar e levou consigo todos os pescadores que lá tinham ficado. Assim Pergrin regressou a casa, são e salvo. 




(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou O Povo Belo".)












(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)












("A Mermaid",
de John William Waterhouse
(1849 - 1917))