sábado, 22 de dezembro de 2018

Uma bênção celta de Natal


Que sempre haja trabalho para as tuas mãos ocupar,
Que sempre haja em tua bolsa moedas a tilintar,
Que possa o sol sempre em tua janela reluzir,
Que após cada chuva possa um arco-íris surgir,
Que a mão dum amigo esteja sempre à disposição
E possa Deus encher-te de alegria o coração. 




(Anónimo)






(Versão de Pedro Belo Clara a partir de texto em inglês.)










(Para acompanhar a leitura, sugerimos o clássico "Silent Night" interpretado por Enya em gaélico. Festas felizes a todos os leitores deste humilde blogue. 












(Home For Christmas, 
por Thomas Kinkade)




sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

UMA VELHA MULHER DOS CAMINHOS


Oh, ter uma casinha, ser dona
De lareira, banquinho e tudo! Vê-de:
Os torrões amontoados no fogo,
Uma pilha de turfa encostada à parede!

Ter um relógio com pesos e correntes
E o seu pêndulo em dança afinada,
Uma cómoda cheia de loiça cintilante,
a branco e azul e castanho pintada!

Poderia estar ocupada o dia inteiro,
limpando e varrendo lareira e chão,
e arrumando de novo na prateleira
a faiança colorida, minha adoração!

Poderia nela ter sossego de noite,
sozinha diante da minha lareira quente;
com promessa de cama, mas hesitando
em deixar o relógio e a loiça reluzente.

Ai!, fatigada estou de neblina e escuridão,
estradas sem casa ou arbusto na cercania;
estou cansada do brejo e do caminho,
da solidão do silêncio e do vento em agonia!

Então rezo ao Deus nas alturas,
rezo-Lhe eu a toda a hora e instante
por uma casinha, uma casa só minha,
longe da chuva e do vento errante.



Padraic Colum (1881 - 1972) ¹








(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir do original colectado em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)









(1) Estamos perante um dos maiores e mais significativos nomes do universo artístico gaélico, uma das figuras de proa do renascimento literário irlandês - ou não tivesse feito parte do grupo que fundou o Teatro Abbey, que contava, como se sabe, com W. B. Yeats, Lady Gregory e A.E., tendo inclusive sido membro da sua primeira direcção.
Nasceu Patrick Columb, no condado de Longford, actual República da Irlanda, na casa onde o seu pai à época trabalhava. Já com onze anos, a família muda-se para perto de Dublin e passa o pequeno Paddy a frequentar a escola local. Forma-se aos dezassete anos e é-lhe oferecido o trabalho de escriturário na companhia nacional dos caminhos-de-ferro, que manterá até aos seus vinte e dois anos de idade. Será neste período que inicia a produção dos seus primeiros escritos e trava conhecimento com autores de proa e indivíduos de grande influência. Além dos já citados, teria em James Joyce um amigo para a vida. 
Decide então alterar o seu nome para a forma gaélica mais aproximada, numa clara afirmação nacionalista, e mergulhando fundo do riquíssimo universo das canções populares irlandesas começa, juntamente com Herbert Hughes, por registar diversas delas pela primeira vez em papel. Quando se decide a lançar um livro em nome próprio começa pelo género que primeiro exerceu, a poesia. Pouco depois inicia a criação das suas peças de teatro. 
Com o passar do tempo e o crescimento da sua produção e talento, Colum funda um jornal que viria a durar pouco tempo, mas tal acto valeu-lhe o conhecimento da futura esposa. Juntos, desenvolveriam esforços significativos em prol da cultura na Irlanda, leccionando e albergando sessões literárias na sua própria casa.
Em 1914 o casal decide visitar os Estados Unidos, desconhecendo completamente a importância de um gesto aparentemente tão insignificante. Na verdade, será nesse novo país que o casal passará a maior parte dos anos de vida que ainda lhes restavam. 
Colum começa a escrever histórias infantis e, aos poucos, aprofunda a sua produção prosaica, que mais tarde também viria a abranger os territórios da biografia. Ao todo, sem contar com as peças de teatro, editará sessenta e um livros. Dando azo a uma grande versatilidade, em 1954 também assina o argumento do filme animado "Hansel e Gretel".
O casal empreendeu diversas viagens pela Europa, chegando até, nos anos 30, a viver em França. Mas os Estados Unidos eram definitivamente a sua casa, mesmo que a velha Irlanda nunca estivesse esquecida, e para lá eventualmente acabaram sempre por retornar. Mary morre em 1957, deixando o esposo só ainda por largos anos, pois somente em 1972 Colum faria a sua última viagem após uma vida recheada de êxitos, prémios e condecorações, contando já com noventa anos de idade. E onde? Nos Estados Unidos, claro está, embora o corpo tenha sido trasladado para a Irlanda natal, onde hoje repousa, em Dublin.










(Pormenor de "Old Lady Walking Through Country Dirt Path",
por Penny Lateulere)



sábado, 24 de novembro de 2018

OS CISNES SELVAGENS DE COOLE (1)


As árvores ostentam a sua beleza outonal,
Secos estão os trilhos do bosque agreste,
Sob o crepúsculo de outubro as águas
Reflectem a serenidade celeste;
Entre as pedras, sobre águas transbordantes,
Cinquenta e nove cisnes cintilantes.

Dezanove outonos se passaram
Desde que lhes fiz a primeira contagem;
Vi, enquanto terminava a tarefa,
Todos eles aprontar nova viagem,
Dispersando em grandes anéis quebrados
No volteio das asas em clamores ampliados.

Infatigáveis ainda, amante ladeando amante,
Deslizam em graciosidade
Nas frias e fraternas correntes ou erguem-se nos ares;
Seus corações não conheceram a velha idade;
Paixão ou conquista, vagueando ao sabor do desejo,
Ainda têm neles o seu ensejo.

Mas agora deambulam pelas águas serenas,
Belos e misteriosos;
Entre que juncos farão a sua morada,
Junto a que charco ou lago de recantos frondosos
Encantarão o olhar humano, quando um dia despertar
E descobrir eu que para longe acabaram por voar?





William Butler Yeats (1865 - 1939)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original publicado em The Wild Swans at Coole, de 1919.)









(1) Trata-se de Coole Park, no condado de Galway, na Irlanda, à época a residência de Lady Gregory, uma estimada amiga de Yeats. O poeta vivia nas proximidades, pelo que a sua presença em tão distinta casa era bastante comum. Terá sido, então, numa das suas visitas ou estadia mais longa que este poema nasceu, em 1916 - tendo conhecido a sua versão definitiva três anos depois. 
Coole Park tornou-se a residência dos Gregory em finais do século XVIII, e impressionava pela beleza do edifício e principalmente pela imensa zona de mato selvagem, uma beleza pura e quase primordial. Aquando da morte de Lady Gregory, em 1932, a propriedade passou para a tutela do estado irlandês e, embora a casa já não exista actualmente, ainda hoje se mantém num conhecido e belo parque público. 










(Pôr-do-sol sobre o lago Coole, no parque do mesmo nome.)



segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A RECOMPENSA DAS FADAS


Uma noite, quanto Ianto Llywelyn se preparava para ir para a cama, ouviu um barulho do lado de fora da sua casa. Abriu a janela e perguntou quem era.

Ouviu uma voz límpida e doce que respondeu:

«Queremos um quarto onde possamos vestir os nossos filhos.»

Ianto abriu a porta e viu, com os seus próprios olhos, uma dezena de pequenas criaturas a entrar em sua casa, carregando ao colo bebés minúsculos. Aí fiaram umas horas, lavando e vestindo os bebés e, antes de o galo anunciar a manhã, foram-se embora, deixando a Ianto, como recompensa pela sua generosidade, algumas moedas de ouro.

Depois deste episódio, Ianto passou a acender a lareira todas as noites e a deixar, em cima da mesa, pão, água e leite, tendo ainda o cuidado de tirar da sala tudo o que fosse de ferro, pois as fadas abominam o ferro. E todas as noites as fadas visitavam a sua casa para aí cuidarem dos seus bebés, oferecendo-lhe sempre em troca algumas moedas de ouro.

Ianto deixou de trabalhar e passou a viver apenas com o dinheiro das fadas. Os seus rendimentos eram tão grandes que decidiu casar-se com uma mulher chamada Betsi. Passado pouco tempo após o casamento, esta começou a ficar muito curiosa sobre o modo como o marido arranjava tanto dinheiro. Mas, por muito que lhe perguntasse qual a origem da sua riqueza, Ianto sempre guardou silêncio sobre as visitas das fadas. 

Betsi tornou-se cada vez mais insistente, embora Ianto lhe explicasse que se lhe revelasse o segredo nunca mais ganharia um tostão. Betsi, porém, desconfiada por o marido deixar sempre a lareira acesa e comida na mesa, logo adivinhou que eram as fadas. Desesperado, Ianto confirmou as suspeitas da mulher e saiu de casa para ir afogar a sua inquietação numas canecas de cerveja. Mas quando levou as mãos aos bolsos para pagar, as moedas tinham-se transformado em pequenos pedaços de papel.

Desde esse dia que as fadas nunca mais regressaram a casa de Ianto, pelo que ele teve de voltar a trabalhar e a ganhar dinheiro com o suor do seu rosto.








(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo".)









(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)











(Ilustração de Kinuko Y. Craft, 1940 - ... )


segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O CAMINHANTE


A beleza do mundo entristece-me,
Esta beleza que um dia passará;
Por vezes o coração agitava-se em grande alegria
Ao ver um esquilo saltitando numa árvore,
Ou uma rubra joaninha numa haste de erva,
Ou pequenos coelhos num campo ao entardecer,
Incendiado por um sol oblíquo,
Ou uma colina verdejante de sombras errantes,
Uma colina tranquila onde o montanhês houvesse semeado
Para em breve colher; bem perto dos portões do Paraíso;
Ou crianças descalças sobre as areias
Dalgum mar vazando-se, ou brincando nas ruas
Das pequenas vilas de Connacht¹,
Coisas jovens e felizes.
Então o coração confidenciou-me:
Tudo isto passará,
E passando cambiar-se-á, então morrerá para sempre,
Estas coisas luminosas e verdejantes, jovens e felizes;
E assim segui o meu caminho,
Cheio de penas. 




P. H. Pearse (1879 - 1916) ²







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original colectado em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)








(1) Trata-se de uma das quatro províncias em que a República da Irlanda se subdivide, situada no noroeste do país. Alberga famosas regiões como Galway, Mayo ou Sligo, berços de poetas e alvos de tantas canções de louvor ou de corações partidos. 



(2) Patrick Henry Pearse nasceu em Dublin, Irlanda. Formado em Línguas Modernas, além de ter sido professor, advogado, escritor e activista político, celebrar-se-ia para a posteridade pela sua faceta de revolucionário. Republicano convicto, foi um dos principais líderes da falhada revolução de 1916. 
Apesar de ser filho de um inglês, o seu avô materno, de quem recebeu o nome, revelou em vida tendências revolucionárias, sendo mesmo membro, como o neto viria a ser, da Irmandade Republicana Irlandesa, o movimento que fomentou a referida rebelião.
E desde cedo não escondeu o seu ideal, ele que já idolatrava os maiores heróis que o território conhecera, de Cúchullain a Wolfe Tone. Assim, aos dezasseis anos juntou-se à Liga Gaélica e aos vinte e três era já o editor do jornal a ela anexado, o A Espada de Luz. 
Sempre crítico do sistema educacional da colónia irlandesa, Pearse, pelo seu carácter forte e destemido e visão libertadora, começou por integrar novos grupos revolucionários e a ascender na sua estrutura. Como advogado só defenderia um caso, um que visava a preservação do gaélico junto dos nativos irlandeses, mas por razões obviamente políticas o caso foi perdido.  
Foi Pearse que anunciou a diversas unidades de voluntários o início de manobras militares nas vésperas da revolução e, no seu início, leu a Proclamação da República Irlandesa às portas do quartel-general das forças revoltosas, o monumental posto de correios de Dublin.
Infelizmente, juntamente com outros quinze co-autores, no término do conflito que ajudou a fomentar acabaria fuzilado sob ordem do governo inglês. Após o feito, o povo afecto à rebelião começou por tomar o professor Pearse como a própria encarnação do ideal, dado a participação pública que sem medo assumiu durante aquele breve período. 
Do muito que se estudou sobre a sua vida após a morte precoce, com apenas trinta e seis anos de idade, há quem afirme que Pearse teria Síndrome de Asperger e tendências homossexuais, dado o seu hábito de beijar jovens rapazes. Nada, é claro, que manche o seu nome como um dos rostos da luta independentista irlandesa, existindo actualmente no país diversas ruas com o seu nome, bustos em parques em sua honra e um museu onde outrora se ergueu a escola que frequentou.
Do ponto de vista literário, destacou-se com textos escritos em inglês e gaélico, sendo este poema um dos seus mais divulgados trabalhos. A sua área de criação estendeu-se à poesia, à dramaturgia, ao conto e ao ensaio. 









("A Wayfarer in a Country Lane", 
de Charles Towne (1763 - 1840))



terça-feira, 11 de setembro de 2018

O LAMENTO DAS RAPARIGAS DE BANTRY (1)


Oh, quem os campos irá lavrar ou o milho venderá?
Oh, quem as ovelhas irá limpar e boa tosquia lhes dará?
O feixe que está na eira por debulhar irá permanecer,
pois Johnny o corrupto Rei de Espanha foi combater.

As raparigas da verde vila² em suas tristezas partirão
e o flautista e seus foles para casa soprar o fogo irão,
pois Johnny, o gentil Johnny, atravessa o grande mar
com outros patriotas³ para o Rei de Espanha enfrentar.

Os rapazes, pela feira de Moneyhore⁴, a sua falta irão sentir,
lamentando estar o bravo capitão em lugar por descobrir;
a polícia⁵, contra a sua fibra e vontade, deve agora esperar,
pois o valente rapaz que os empregou um Rei foi desancar.

Não te veremos nas festas⁶ e jogos de hurling, tua adoração,
até que voltes para junto de nós, tesoiro do meu coração⁷!
Nem vexarás os nobres⁸ que revelam sobranceria tamanha,
pois não temos negros olhos como os há em Espanha.

Se o destino cruel o regresso do nosso Johnny não aceitar,
nós, as raparigas de Bantry, tal grande perda iremos chorar.
Aceitando a triste sorte, morreremos em luto e dor lancinante
- o Johnny morreu pelo brio da Irlanda na Espanha distante.




Anónimo (prov. séc. XIX) ⁹







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do texto impresso num artigo da Dublin University Magazine, em dezembro de 1863).






(Para acompanhar a sua leitura, ou simplesmente apreciar após findá-la, propomos a versão de Joanie Madden - dado que, pelas óbvias razões, o tema ganha um melhor sentido quando interpretado por uma voz feminina. Contudo, a interpretação de Tommy Fleming também merece sinceros louvores. Desfrute, caro leitor:  https://www.youtube.com/watch?v=MN-V4OL3axk ).








(1) A Bantry mais famosa é uma cidade do condado de Cork, conhecida pela sua baía. No entanto, um estudo mais cuidado concluirá que a Bantry do texto hoje apresentado é um baronato na região de Wexford, República da Irlanda. Embora actualmente tais divisões já não existam, à luz da época é seguro aceitar essa referência - além doutros indicativos que, por se situarem na mesma região, excluem logo a hipótese da outra cidade mais afamada. 


(2) No texto que serviu de guia a esta versão em português surge a palavra "bownoge" que, definitivamente, nem se encontra nos dicionários ingleses. Na publicação em causa é possível ler uma nota que refere o seguinte: Bown: Quintal fechado ou quadra relvada; Bownoge: Vila verde. Ou seja, não refere um lugar em concreto, apenas dá referência a uma "verde vila". 
De facto, nas proximidades de Wexford existe uma localidade com tal nome, mas importa ressalvar que no texto em inglês a palavra surge em minúsculas, o que inviabiliza a hipótese de se tratar do nome de uma localidade - daí o termo sugerido na nossa tradução.


(3) No original encontra-se escrito "pathriarchs", que se traduzirá em "patriarcas", mas logo o editor da revista se apressou a deixar uma nota elucidando tratar-se de um erro. 
Admitindo, ainda que de modo algo intuitivo, os parcos estudos os admiradores do bravo Johnny, estes terão assim querido dizer "patriots", ou seja, "patriotas", conforme se traduz. Lemos que alguns intérpretes da história desta bonita canção-poema defendem que patriarcas estará correcto, pois significa veteranos, mas parecendo Johnny, conforme descrito, tão jovem, a hipótese perde bastante força (note-se que o verso indica «com outros», logo inclui Johnny no grupo). Obviamente, seguimos o preceito indicado pela revista irlandesa, a mais antiga fonte que pudemos descobrir.


(4) Moneyhore é uma vila situada entre Enniscorthy e Castleboro, no condado de Wexford, célebre pelas suas feiras, especialmente nas eras medievais. Em algumas versões surge "Moneymoore".
Neste momento do texto são os rapazes, provavelmente um grupo de soldados seus amigos, que lamentam não saber onde o «bravo capitão» de momento se encontra. É muito provável que este Johnny, originário do baronato de Bantry, fosse visita assídua da dita feira.


(5) Uma tradução algo complexa que deriva de um jogo de palavras. No original surge "peelers", que num primeiro instante se traduzirá por "descascadores", isto é, aqueles que têm a profissão ou tarefa de descascar ou debulhar. Lendo com mais atenção, nota-se que a referência não é agrícola. 
De modo popular, "peelers" era um nome na Irlanda dado à polícia, e surge escrito pela primeira vez em 1816, daí a tradução que se apresenta. Pode fazer referência aos actos violentos dos seus membros, isto é, a polícia como sendo aquela que "descasca" em quem ousar um acto de rebeldia, mas também é provável que o nome tenha surgido através do grupo de intervenção pela manutenção da paz no território criado por Sir Robert Peel, primeiro-ministro inglês no reinado da Rainha Vitória, um em 1814 outro em 1822. Os "peelers" seriam, portanto, os "homens de Peel" (algumas datas dadas na adenda número 9 demonstrarão como esta teoria tem os seus problemas). Quem escreveu o texto habilmente escolheu tal termo para o jogar, no verso seguinte, com o acto que atribuiu a Johnny: "now peels the King o' Spain" - "agora descasca o / no Rei de Espanha" (ele que antes fugia aos "descascadores"). 
Naqueles tempos, acrescente-se, acontecimentos sociais como as feiras eram o palco preferido para rixas de todo o tipo, nomeadamente as que começavam como insurreição contra o domínio inglês no território. Já que é Johnny que, ironicamente, justifica o emprego a esses "peelers" que devem, agora, aguardar o seu regresso, talvez ele tenha sido um célebre insubmisso no seu tempo. 


(6) No original "wakes". Apesar de num sentido mais directo traduzir-se por "vigílias", refere-se às festas populares realizadas em pequenas vilas e aldeias em honra dos seus santos padroeiros. Ou seja, um momento social, na época, de grande importância. Devido à extensão do verso traduzido, lamentavelmente teve-se de omitir no texto o elucidativo adjectivo "religiosa".


(7) No original impresso surge em gaélico «asthore, gra-gral-machree», uma referência a um chavão empregue em diversas canções românticas e que se traduzirá literalmente por "pequeno e jovem tesoiro do meu coração". Dada a extensão do verso, e sob pena de arruinar toda a estrutura da versão apresentada, houve que proceder a uma adaptação da lírica expressão em causa.


(8) A palavra original é "buckeens", que é sinónima de "gentry", ou seja, especifica um tipo de nobreza, no caso a pequena ou baixa nobreza. Não será, portanto, uma referência aos nobres de nascimento, mas àqueles que na estrutura social estavam imediatamente abaixo, de estatuto adquirido graças a um grande sucesso financeiro ou, em último caso, a avultadas herança. Seja como for, o Johnny tinha a reputação de importunar representantes desta classe.


(9) No universo popular não é tarefa fácil descobrir com extrema precisão e segurança o autor de uma determinada canção ou poema. Não só os mais antigos foram chegando aos tempos modernos graças ao poder da tradição oral, o que facilmente levava a uma captação errónea das palavras (neste caso em particular, por exemplo, logo no primeiro verso, existem versões com "sell the corn" e "sow the corn", que será a diferença entre "vender" e "semear"), como certos autores tinham o hábito de pegar em velhas canções, adaptá-las a seu gosto e, muitas vezes, declararem-se eles os seus criadores.
É um pouco o que se passa com este tema. Melodia e letra nasceram em ocasiões distintas, sendo que as palavras foram posteriormente usadas para preencher uma antiga canção irlandesa. Sobre essa, notemos o que William "Colm" O'Lochlainn (1892 - 1972) escreveu no seu livro "Irish Street Ballads", de 1939, citando George Petrie (1790 - 1866): «colectada no condado de Londonderry [Irlanda do Norte] no verão de 1837, é muito provável que seja um tema com origem no Ulster. Foi cantada para uma balada de camponês anglo-irlandesa». Acrescenta depois umas linhas que Petrie conseguiu preservar, e embora estas refiram um Johnny em nada se igualam aos versos deste texto. 
Ao que apurámos, algumas vozes indicam que os versos são adaptados de "The Witham Miller", mas uma grande certeza em tal assumpção não nos assiste, já que o tema alude historicamente a um moleiro que foi enforcado como pagamento pelos seus crimes (homicídio, provavelmente).  Porque uma das variações deste tema foi usada por Patrick Kavanagh (1904 - 1967) em "Ragland Road", muitos associam o poema a este autor, mas tal também não será correcto. Mesmo que o tenha incluído no seu livro de crónicas "The Banks of the Boro", lembremo-nos que o texto já havia sido editado, pelo menos, em 1863. 
Mais tarde surge num livro de Alfred P. Graves (1846 - 1931), o "Irish Songs Of Wit and Humour", de 1880, talvez a primeira vez que surge em livro, mas sem qualquer referência, uma vez mais, à sua origem ou onde Graves a colectou. Outro autor, Sparling, sete anos depois não a identifica numa obra sua de antologia, fazendo-o somente na segunda edição da obra, em 1888. Contudo, Graves não poderá ser o seu autor, uma vez que o texto, como já demos prova, surge numa revista dezassete anos antes do seu livro de canções. Ademais, à medida que estes iam publicando a canção nas suas antologias iam tomando a liberdade de lhe conceder pequenos acertos, o que actualmente só causa uma enorme confusão. O que podemos afirmar é que a versão impressa mais antiga que encontrámos serviu de base ao trabalho de tradução por assim a considerarmos original, ou pelo menos mais perto dessa forma. Encontra-se presente na já referida revista irlandesa, mas sem que haja qualquer referência à sua origem - pelo que considerámos sensato atribuir a autoria a uma figura anónima. Como afirmámos no início da nota, é um dúbio terreno esta caminhada de investigação pelas origens de temas populares tão antigos. 
Em todo o caso, sabemos que este Johnny, louvado pelas suas capacidades e personalidade, partiu para uma guerra em Espanha. E que relação poderá haver entre o país ibérico e a Irlanda? Naturalmente, para se encontrar sentido é necessário acrescentar mais um país à lista: a Inglaterra. Posto isto, é fortemente provável que o texto tenha surgido durante a Guerra Peninsular (1807 - 1814), onde vários regimentos ingleses, que incluíam irlandeses, combateram as forças de Napoleão em terreno espanhol. Em Portugal, como sabemos, aconteceu algo parecido, se bem que longe do rastro destrutivo que o conflito teve no país vizinho. Portanto, Johnny embarca, ao que parece como capitão, para «o Rei de Espanha desancar». E tudo em nome «do brio da Irlanda». Seria interessante investigar porque estaria o orgulho irlandês em jogo. Apenas para dar provas da coragem do seu povo? Ou, vendo que o poema tem motivos irónicos (o Johnny que dá emprego à polícia) e algo jocosos (o flautista que triste se retira para soprar o fogo da lareira com os seus foles), talvez qualquer sentido mais profundo daí se retire, como, por exemplo, uma promessa de independência ou mostra de força, em terra estrangeira, do carácter irlandês face ao seu colonizador.
No entanto, é também provável que o tema seja um pouco mais recente, e o conflito em causa seja as Guerras Carlistas, ocorridas a partir de 1833, um conflito entre absolutistas (o irmão do rei, D. Carlos de Borbón) e liberais (a regente Maria Cristina, apoiada pela rainha Isabel II). Ora, os ingleses apoiavam estes últimos e sabe-se que entraram no conflito com uma legião de dez batalhões, onde figuravam escoceses e irlandeses - como, aliás, era comum nas recrutas daqueles tempos. Como Carlos se auto-proclamou Rei, é bem possível que o último verso da primeira quadra detenha a chave da correspondência com o que se diz: «o corrupto Rei de Espanha». É por isso que muitos consideram mais credível esta hipótese, apesar de corrupto poder igualmente ser o irmão de Napoleão, que naquele tempo assumiu o trono espanhol.
Exactamente trinta anos depois do conflito carlista a canção surge editada na fonte já antes citada, ainda que com o nome diferente daquele que se foi tornando habitual: O Lamento das Raparigas de Bantry por Johnny - surgindo creditada como uma canção sobre a vida rural da Irlanda. Para todos os efeitos, evitando confusões, adoptámos o título moderno que à canção se concede, apenas para não incorrer no risco de dar a ideia de tratar-se de uma composição diferente. Já o esquema de rima original, como sempre, foi respeitado. Antes de encerrar, damos ainda nota que aqui se apresenta o texto completo como se conhece na sua impressão, e não como é usualmente cantado - pois em norma os intérpretes tendem a excluir a quarta quadra do poema. 








(The Parting of Robert Burns and Highland Mary,
James Archer (1822 - 1904))


terça-feira, 14 de agosto de 2018

A VACA TRESMALHADA


Há muito tempo atrás, as proximidades do lago chamado Llyn Barfog¹ eram habitadas por fadas. As águas do lago eram escuras e profundas e nunca lá se havia avistado um peixe. As fadas costumavam sair ao crepúsculo das noites de verão, vestidas de verde, acompanhadas pelos seus cães e pelas suas cabeças de gado, todas elas do branco mais puro. Porém, raramente se deixavam ver.

Um dia, um agricultor que passava ali perto teve a sorte de avistar um dos Gwartheg y Llyn². E logo resolveu capturá-lo. A partir desse dia, a sua sorte mudou. Tornou-se rico e abastado, pois o leite da vaca das fadas era o melhor da região e toda a gente o queria comprar. O mesmo acontecia com o queijo e a manteiga, que se tornaram dos alimentos mais cobiçados e fizeram da Fuwch Gyfeirliorn³ o animal mais famoso da zona. 

No entanto, o homem ficou tão rico que enlouqueceu e começou a ficar com medo de que a vaca encantada se tornasse demasiado velha para dar leite. Decidiu, pois, engordá-la e ir vender a sua carne no mercado.

No dia anunciado para matar o animal, todos os vizinhos vieram assistir à matança. O agricultor, indiferente aos gemidos da vaca e aos seus olhos suplicantes, amarrou-a e o carniceiro levantou o machado, pronto a desferir o golpe fatal. Nesse instante, ouviu-se um grito agudo e estridente, vindo dos confins do bosque junto da povoação, que paralisou o braço do carniceiro e este deixou cair o machado. Olhando na direcção do grito, as pessoas viram a figura de uma mulher, vestida de verde, que, em pé em cima de um rochedo, os olhava, de braços abertos. De repente, começou a cantar numa voz sonora e profunda:

Vem, Einion,
Vem, Vaca do Lago,
Volta para casa.

Assim que as palavras morreram no ar, a Vaca Tresmalhada e toda a sua prole, até á quarta geração, dirigiram-se para o lago. Percebendo o que estava prestes a acontecer, o agricultor correu atrás do gado, mas não conseguiu alcançá-lo. Quando finalmente chegou junto do lago, cansado e ofegante, apenas teve tempo de ver a mulher vestida de verde, rodeada pelas cabeças de gado, a desaparecer na superfície escura das águas. A marcar o lugar do seu desaparecimento apareceu um lírio-d´água de cor amarela.

Rapidamente o agricultor perdeu toda a sua fortuna, mas muito poucos tiveram pena dele por ter tentado matar o animal que lhe tinha dado tanto dinheiro.




(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo").






(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012








(1) Lago do Homem Barbudo.


(2) Gado do Lago.


(3) Vaca Tresmalhada.








terça-feira, 10 de julho de 2018

A ROSA SECRETA


Distante Rosa, secretíssima e inviolada,
Toma-me na hora para mim destinada,
Onde quem no Santo Sepulcro te procurou,
Ou no tonel de vinho, vive para lá do que o perturbou
E do tumulto dos sonhos derrotados; e no fundo,
Entre pálidas pálpebras pesadas de fecundo
Sono, o Homem nomeou a beleza. Nas tuas folhas o tesouro
De barbas ancestrais, os elmos de rubi e ouro
Dos Magos coroados; e do rei¹ que com seus olhos viu
As Mãos Perfuradas e a Cruz Antiga que subiu
Em druídico vapor, as tochas apagando
Até ao vão delírio por que ele tombou agonizando;
E desse² que encontrou Fand³ por entre orvalho fulgente,
Numa costa sombria onde jamais soprava o vento,
E por um beijo dela perdeu o mundo e Emir⁴;
E desse que fez os deuses saírem da cidadela⁵
E, até despontarem cem rubras auroras, celebrou
E sobre as campas dos seus mortos chorou;
E do rei orgulhoso e sonhador⁶ que recusou o fardo
Da coroa e da mágoa e, chamando bobo e bardo,
Errou na floresta entre viandantes de vinho manchados;
E desse que vendeu a casa e as terras e os arados⁷,
E buscou por ermos e ilhas um tempo infindo
Até enfim encontrar, chorando e rindo,
Uma mulher de porte tão radioso e belo
Que à noite os homens debulhavam milho sobre seu cabelo,
Uma fina trança furtada. Também eu aguardo com ardor
A hora da tua rajada de ódio e amor.
Quando do céu se hão-de as estrelas atear
Como fagulhas de uma forja, e expirar?
Chegou seguramente a tua hora, sopras a forte rajada
Distante Rosa, secretíssima e inviolada?




W. B. Yeats (1865 - 1939)







(Tradução de Margarida Vale de Gato in "Onde Nada Existe", W. B. Yeats, Relógio D'Água Editores, 2000)








(1) Trata-se de uma referência a Conchobar, um rei do Ulaid ou Ulster, um pequeno reino onde hoje existe a Irlanda do Norte, e que terá subsistido entre os séculos V e XII.
É possível que se trate efectivamente de uma personagem real, mas a sua vida é contada no seio de tanta fantasia que a dúvida subsiste. Além disso, os contos sobreviventes que relatam a história deste e outros monarcas, bem como doutros personagens relevantes, pertencem a um capítulo da mitologia irlandesa denominado "O Ciclo de Ulster", pelo que será sempre ténue a fronteira entre realidade e fantasia.
Resta acrescentar que, mais tarde, Yeats admitiu ter cometido um erro no verso em questão. Segundo a história, Conchobar não teve qualquer visão sobre o crucifixo na hora da sua morte, esta fora-lhe antes contada - e então daí resulta o seu estranho falecimento. A história conta-se, é preciso que se diga, numa linha de forte influência cristã. Não obstante, o poema de Yeats permaneceu sem alteração.


(2) "Esse" é somente o maior guerreiro e herói da mitologia irlandesa, no referido capítulo, ainda que tenha uma vida curta: Cúchulainn. É muitas vezes tido como a encarnação de Lugh, deus do sol, da tempestade ou do céu, conforme a interpretação, e que também é o seu próprio pai. 
Lembra em alguns aspectos o Hércules grego e o herói persa Rostam, que também acidentalmente mata o filho. A sua fama passou fronteiras e chegou ao folclore escocês e manx (Ilha de Mann). 


(3) A esposa do deus do mar, Manannán Mac Lir (Manannám, Filho de Lir).


(4) A esposa do nosso herói Cúchulainn. 


(5) Yeats admitiu, um dia, ter criado este verso a partir do que leu sobre Caolte, sobrinho de Fionn Mac Cumhaill (líder dos Fianna, uma tribo de guerreiros semi-independente), mais concretamente na batalha de Gabhra - em que quase todos os seus companheiros foram mortos, o que fez «os deuses saírem da cidadela». 
O relato encontra-se escrito num capítulo denominado "Ciclo Feniano".  


(6) Trata-se de outro rei do Ulster, Fergus Mac Róigh (Fergus, Filho de Róigh).
Apesar do que o poeta escreve, conta-se que num esquema bastante ardiloso e demorado  Fergus vê o trono usurpado por Conchobar, seu enteado. Em resposta à traição, alia-se à sua maior inimiga, a rainha Medb, de Connacht, tornando-se seu amante. Juntos invadem o Ulster, mas sem sucesso. 


(7) Yeats, uma vez mais posteriormente à edição deste poema, admite que inventou aquele «que vendeu a casa e as terras e os arados» a partir do conto The Red Pony (O Pónei Vermelho), antologiado num livro de 1893 chamado "Contos Populares do Ocidente Irlandês".  











quarta-feira, 6 de junho de 2018

DANNY, MEU QUERIDO


Oh, Danny, meu querido, por ti as flautas¹ clamam;
de vale em vale, pelas encostas estão a ecoar. 
O verão terminou, e todas as flores murcham;
é hora, é hora de partir - por ti deverei esperar.

Mas volta quando ao prado regressar o verão,
ou quando o vale se cobrir por nevado manto;
estarei aqui, ao sol ou à sombra sem hesitação,
oh, Danny, Danny meu querido, quero-te tanto.

Se regressares quando todas as flores murcham,
e esteja eu morta, pois é certo que possa estar,
virás a descobrir o lugar onde me sepultam,
e ajoelhando uma Ave Maria irás murmurar. 

Escutar-te-ei, embora o teu passo seja delicado,
e todos os meus sonhos serão mel e cetim;
se o amor que me tens não for olvidado,
repousarei em paz até que voltes para mim.



Frederic E. Weatherly (1848 - 1929) ²







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original, onde se preservou o esquema de rima eleito pelo autor - não obstante as naturais adaptações feitas num esforço por mantê-lo). 





(Tratando-se de uma das mais populares e universais canções irlandesas de sempre, torna-se difícil eleger a melhor interpretação. Pela doçura das vozes, e porque a versão apresentada faz melhor sentido quando cantada por uma voz feminina, optámos pela versão das Celtic Woman. Desfrute: https://www.youtube.com/watch?v=DquA6KyHTos ).






(1) Do original "pipes". Embora se refira quase de certeza à gaita-de-foles, em inglês "bagpipe", a escolha de tal termo não deixa de conter uma certa subjectividade, já que um outro qualquer instrumento de sopro parecido a esse poderá igualmente ser designado do mesmo modo (repare: Bag + pipe = Flauta ou Gaita de saco, literalmente; e ainda Pan + Pipe = Flauta de Pan). Portanto, "pipe" refere-se a um tubo onde, soprando, o ar passa, com buracos que, pressionados pelos dedos, em determinada ordem, originam uma melodia. Assim, optou-se por "flautas", mesmo sabendo dos riscos desta escolha. Opções como "gaitas" ou mesmo "gaitas-de-foles", pela melodia que em português tais palavras exalam, pareceram-nos hipóteses capazes de trazer dissonâncias aos versos traduzidos. Poderíamos ainda optar por "gaiteiros", pois o primeiro verso do poema-canção refere, segundo algumas interpretações que até carecem de maior fundo de argumentação, um chamamento para a guerra. Nos tempos medievais, os ingleses anunciavam os seus recrutamentos desse modo, tocando gaitas-de-foles que se escutavam por quilómetros, embora este instrumento, tão raramente associado aos ingleses, se torne difícil de imaginar tocado por um deles. O mais provável seria um oficial local de baixo nível tocar o instrumento no início do processo de recrutamento, mas dada a sua ligação ao exército como poderia ser correcto chamá-lo de gaiteiro? Mais um motivo, pareceu-nos, para firmar a escolha de "flautas".



(2) Weatherly foi um famoso advogado inglês, nascido no Somerset, que escreveu livros infantis e realizou duradouras incursões pelo mundo da rádio, embora os maiores sucessos da sua vida tenham advindo da composição de canções, a grande maioria dentro do estilo popular, ou folk. Julga-se que seja o autor de cerca de mil e quinhentos temas, ainda que, esclareça-se, maioritariamente no que toca à parte cantada, na medida em que tinha o hábito de pegar em melodias já existentes e então escrever uma letra que considerasse adequada.
Na verdade, está nesse método a origem desta canção, tão popular entre os irlandeses. É muito provável que a esmagadora maioria destes se espante ao saber que, afinal, um tema tão intimamente irlandês tenha sido escrito por um advogado inglês, mas, como já se viu, Weatherly foi um profícuo letrista, tendo coleccionado ao longo da vida inúmeros sucessos que versavam sobre diversos assuntos. 
Naquele tempo, era usual um letrista vender as pautas da sua música a cantores amadores. Era, pelo menos, o melhor meio para entrar na indústria e conseguir a divulgação do seu trabalho. Tendo em conta que em regra não sabiam quem iria comprar as pautas, se homem ou mulher, convinha que a canção fosse o mais geral e abrangente possível, de modo a aumentar o seu público-alvo. Weatherly era deveras astuto nesse sentido, pelo que quase todas as suas canções cumpriram o mesmo método.
Mas tal levanta grandes problemas no que toca à interpretação deste tema em concreto. É importante referir que muitos estudos marcam o nascimento da melodia no início do séc. XVII. Terá, assim, surgido pelas mãos de um harpista irlandês cego, Rory O'Cahan, descendente de um poderoso clã. Um dia, nos primeiros anos de 1600, Rory assistiu ao confiscar da maioria das terras onde os seus antepassados haviam vivido. Revoltado, decidiu compor uma melodia plena de dor e comoção, de forma a dar vazão aos seus mais profundos sentimentos. Nascia assim o "O'Cahan's Lament" (O Lamento de O'Cahan), embora haja quem o considere um elogio fúnebre, composto em honra de um parente falecido. Há, contudo, uma lenda curiosa a respeito da primeira hipótese: numa noite em que estaria extremamente alcoolizado, Rory terá surpreendido um grupo de fadas que tocavam na sua harpa uma melodia belíssima, e o músico, quando recuperou do seu excesso etílico, apressou-se logo a registar as notas que havia escutado. Obviamente, afastar-se-á a lenda da verdade do que aconteceu, mas não deixa de ser uma hipótese plena de interesse lúdico - e que achámos por bem partilhar com os nossos leitores.
A dita melodia, que seria muito mais tarde conhecida por "Danny Boy", ressurgiu no século XIX pela harpa de um outro músico cego e itinerante, Denis O'Hampsey, que chegaria à magnífica idade de 112 anos (!). Ora, Denis, ficando cego muito novo, decidiu desenvolver o seu enorme talento para a música e, a dada altura, terá sido aluno de uma familiar de Rory, que lhe passou a melodia composta por esse também cego músico, assim como muitas outras do seu imenso repertório. Graças às suas viagens, Denis ajudaria a espalhar o tema pela Irlanda e não só, já que também o apresentou aos escoceses que o desejavam ouvir. A dada altura conhece Edward Bunting, um jovem colector de música tradicional irlandesa, mais tarde o autor de um livro lançado em três volumes que antologiava diversos temas populares, incluindo o nosso belo lamento.  
Os anos foram passando e o tema, cada vez mais famoso, tornou-se usual no repertório de vários músicos deambulantes, pois no que toca à arte popular a transmissão oral era um dos primeiros modos de preservar esse valiosíssimo património. Em 1851, na cidade de Limavady, em Londonderry, na actual Irlanda do Norte, junto ao mercado local um músico cego (outro, curiosamente), Jimmy McCurry, tocou um tema que despertaria a atenção de Jane Ross, que morava no outro lado da rua. Tendo escutado a melodia, admirado a sua cativante beleza e, depois, sabido-a estranha ao seu conhecimento vasto, contactou um seu amigo entusiasta de canções populares, Dr. George Petrie, que quatro anos depois a publicaria num livro da sua autoria, ainda sob a classificação de anónima. Não obstante, deve-se a Jane Ross o primeiro grande impulso para a universalização do tema, quase 250 anos depois da sua criação, e que posteriormente ficaria conhecido por "Londonderry Air", ou Canção de Londonderry - mais raramente, surgia creditada como Canção do Condado de Derry. Estranhamente, Jane Ross não achou importante saber quem era o músico que a tocava e onde a tinha aprendido, tampouco quem seria o ser verdadeiro autor. Apenas escutou, apreciou e, registando a melodia, a enviou a alguém que sabia ser apreciador do género. Contudo, é interessante saber que a área de Londonderry fez parte, entre os séculos 12 e 17, dos domínios do clã O'Cahan. De certa forma, parece que o tema não abandonou o seu lar de nascimento. 
É claro que, como é natural que aconteça nestes assuntos, a história não é certa nem todos os seus contornos merecem a aprovação da globalidade dos estudiosos. Apresentamos, por isso, apenas a versão mais usual do tema em questão, apesar dos diversos pontos que ao conto parecem ter sido acrescentados pelos descendentes dos intervenientes mais directos. Mas continuemos. 
Mais tarde, uma outra mulher, Margaret Weatherly, que emigrara para os Estados Unidos com o seu marido durante a febre do ouro, escutou um grupo de mineiros que cantava um tema que considerou de rara beleza. Curiosamente eram australianos, pois foi um músico desse país o primeiro a gravar o tema "Londonderry Air". Fascinada, registou a melodia e de pronto a enviou ao seu cunhado, o nosso já bem conhecido advogado-compositor Frederic. 
Mal recebeu a canção interessou-se logo por ela. Estávamos em 1912, e dois anos antes Frederic havia composto e lançado um tema chamado "Danny Boy", que resultou num completo fracasso. Ao ler a música, notou que a letra do seu "Danny Boy" encaixava quase na perfeição na melodia que lhe chegara da América, e não hesitou em trabalhá-lo no imediato. Um ano depois, em 1913, o tema seria lançado, não sem alguns dissabores: Graves, um outro compositor seu amigo, havia escrito dois temas para a mesma melodia, e não apreciou que Weatherly tenha tido a mesma ideia. Ademais, acusou-o de usurpar algumas das suas ideias na criação da nova letra, enquanto que Weatherly afirmava que as letras de Graves não se encaixavam no espírito da melodia. Lançou também os seus dois temas, mas nunca obtiveram o estrondoso sucesso do "Danny Boy" de Weatherly, o que levaria ao fim da amizade entre ambos. 
Logo no início o advogado inglês afirmou ter composto um tema dedicado aos nacionalistas e unionistas da Irlanda, e que era o seu sonho ver ambas as partes cantarem a sua canção, no esforço de ver arredadas as suas diferenças e na esperança de uma convivência comum e pacífica entre todos. Acrescentou, também, que o tema nada tinha de bélico, nem apelava a guerras ou revoltas, sequer inseria-se em contexto de derramamento de sangue. Ora, isto contrasta com a ideia que o primeiro verso nos dá, conforme antes falámos. Se as flautas não chamavam Danny para a guerra, por que tocavam sequer? Por que iriam chamar por ele, conforme o sujeito da canção refere? Não faz grande sentido, diga-se, mas de qualquer modo aceitemos as palavras do próprio autor.
É óbvio que por tais motivos o tema tornar-se-ia muito popular na Irlanda. Ainda hoje em dias os irlandeses do norte, desprovidos de hino, assumem a canção como sendo o seu tema nacional. Mas os oriundos da república independente também partilham desse sentimento, pelo que o sonho de Weatherly parece ter-se cumprido. 
Portanto, não sendo uma canção de partida para a guerra... o que será, então? Muitos vêem nela a despedida de um chefe de clã irlandês a seu filho, de... partida para a guerra. Certa vez, em concerto, a vocalista do famoso grupo The Seekers, Judith Durham, anunciou o tema como tendo sido composto por um pai que via o seu terceiro filho partir para a guerra, após a morte dos outros dois. Ora, se o próprio autor nega esta vertente do tema, importa afastar de vez tal cenário. Sobra, portanto, a hipótese de canção de amor. Outros ainda vêem uma partida para a América em plena Grande Fome na Irlanda, deixando uma mãe para trás, mas como poderão aqui as flautas se encaixar? Danny vai imigrar e as flautas chamam por ele? Além disso, observando melhor o texto nota-se que a última quadra refere um certo tipo de apego e proximidade que não parece usual no amor filial. A ideia de regressar e ver morto o ente amado, e este admitir que espera tranquilo pelo dia em que o outro virá para o seu lado parece mais adequado a um amor romântico. Será, assim, uma canção de amor, embora a partida de Danny, suas razões e destino, permaneça um mistério. 
Diga-se que Weatherly tinha, de facto, um filho com o mesmo nome, e que viria a falecer em combate durante a primeira Grande Guerra. Em três meses, o advogado inglês perdia o pai e o filho, mas lembremo-nos que o tema foi publicado em 1913, pelo que qualquer relação com tais acontecimentos só poderia surgir de alguma capacidade mediúnica de Weatherly, dom esse que sabemos hoje que não detinha. Além disso, alguns anos depois, numa nova publicação do tema o autor esclareceu, em breve nota, que "Danny Boy" deveria ser cantado por uma voz feminina, e se fosse o cantor um homem então deveria alterar o título e algumas passagens para "Eily Dear" (Querida Eily). Como a tradução literal seria algo como "Danny, meu rapaz", mas que ganha outro nome e um outro qualificativo na mudança de intérprete, no caso "Querida", decidimos arriscar e escolher esse mesmo adjectivo na nossa versão. Convenhamos: quão comum será em português a amada dirigir-se ao ente amado como "meu rapaz"? É de facto um tratamento que sugere uma pessoa mais velha, como pai ou mãe, mas aqui voltaríamos à contradição antes referida. Como de novo se constata, o carácter geral e algo ambíguo da letra desta canção permite várias interpretações e, mais importante ainda, deixa no ar diversas dúvidas quanto ao seu real significado, se algum haverá. Mas foi essa a estratégia do grande sucesso de Weatherly - permitir que qualquer um pudesse cantar os seus temas.
Terminaremos dizendo que ao longo dos anos diversos cantores interpretaram esta canção, e alguns tão distintos como Mario Lanza ou Elvis Presley, contribuindo também para a sua difusão quase universal. Nesse processo, certos reparos foram sendo feitos, certas alterações à letra original, e foram essas tão vincadas que muitos atribuem a Weatherly versões que ele próprio não compôs. Pelo que a nossa pesquisa permitiu descobrir, usámos a original de 1913, como convém. As outras propõem trocas pouco significativas, embora muitas vezes cantadas, estando a principal no segundo e terceiro versos da última quadra: a troca de "sonhos" por "campa" e o "amor olvidado" por "amor confessado". Em todo o caso, consideramos que deverá sempre prevalecer a versão original do autor. Mesmo que a mudança da mesma para o português tenha aproximado o texto mais do molde de poema do que de canção, todas as intenções originais que nele se descobriram foram obviamente mantidas - incluindo a forte inclinação para o género canção de amor.









Calypso's Island, Departure of Ulysses - 
Samuel Palmer (1805 - 1881)