quarta-feira, 6 de junho de 2018

DANNY, MEU QUERIDO


Oh, Danny, meu querido, por ti as flautas¹ clamam;
de vale em vale, pelas encostas estão a ecoar. 
O verão terminou, e todas as flores murcham;
é hora, é hora de partir - por ti deverei esperar.

Mas volta quando ao prado regressar o verão,
ou quando o vale se cobrir por nevado manto;
estarei aqui, ao sol ou à sombra sem hesitação,
oh, Danny, Danny meu querido, quero-te tanto.

Se regressares quando todas as flores murcham,
e esteja eu morta, pois é certo que possa estar,
virás a descobrir o lugar onde me sepultam,
e ajoelhando uma Ave Maria irás murmurar. 

Escutar-te-ei, embora o teu passo seja delicado,
e todos os meus sonhos serão mel e cetim;
se o amor que me tens não for olvidado,
repousarei em paz até que voltes para mim.



Frederic E. Weatherly (1848 - 1929) ²







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original, onde se preservou o esquema de rima eleito pelo autor - não obstante as naturais adaptações feitas num esforço por mantê-lo). 





(Tratando-se de uma das mais populares e universais canções irlandesas de sempre, torna-se difícil eleger a melhor interpretação. Pela doçura das vozes, e porque a versão apresentada faz melhor sentido quando cantada por uma voz feminina, optámos pela versão das Celtic Woman. Desfrute: https://www.youtube.com/watch?v=DquA6KyHTos ).






(1) Do original "pipes". Embora se refira quase de certeza à gaita-de-foles, em inglês "bagpipe", a escolha de tal termo não deixa de conter uma certa subjectividade, já que um outro qualquer instrumento de sopro parecido a esse poderá igualmente ser designado do mesmo modo (repare: Bag + pipe = Flauta ou Gaita de saco, literalmente; e ainda Pan + Pipe = Flauta de Pan). Portanto, "pipe" refere-se a um tubo onde, soprando, o ar passa, com buracos que, pressionados pelos dedos, em determinada ordem, originam uma melodia. Assim, optou-se por "flautas", mesmo sabendo dos riscos desta escolha. Opções como "gaitas" ou mesmo "gaitas-de-foles", pela melodia que em português tais palavras exalam, pareceram-nos hipóteses capazes de trazer dissonâncias aos versos traduzidos. Poderíamos ainda optar por "gaiteiros", pois o primeiro verso do poema-canção refere, segundo algumas interpretações que até carecem de maior fundo de argumentação, um chamamento para a guerra. Nos tempos medievais, os ingleses anunciavam os seus recrutamentos desse modo, tocando gaitas-de-foles que se escutavam por quilómetros, embora este instrumento, tão raramente associado aos ingleses, se torne difícil de imaginar tocado por um deles. O mais provável seria um oficial local de baixo nível tocar o instrumento no início do processo de recrutamento, mas dada a sua ligação ao exército como poderia ser correcto chamá-lo de gaiteiro? Mais um motivo, pareceu-nos, para firmar a escolha de "flautas".



(2) Weatherly foi um famoso advogado inglês, nascido no Somerset, que escreveu livros infantis e realizou duradouras incursões pelo mundo da rádio, embora os maiores sucessos da sua vida tenham advindo da composição de canções, a grande maioria dentro do estilo popular, ou folk. Julga-se que seja o autor de cerca de mil e quinhentos temas, ainda que, esclareça-se, maioritariamente no que toca à parte cantada, na medida em que tinha o hábito de pegar em melodias já existentes e então escrever uma letra que considerasse adequada.
Na verdade, está nesse método a origem desta canção, tão popular entre os irlandeses. É muito provável que a esmagadora maioria destes se espante ao saber que, afinal, um tema tão intimamente irlandês tenha sido escrito por um advogado inglês, mas, como já se viu, Weatherly foi um profícuo letrista, tendo coleccionado ao longo da vida inúmeros sucessos que versavam sobre diversos assuntos. 
Naquele tempo, era usual um letrista vender as pautas da sua música a cantores amadores. Era, pelo menos, o melhor meio para entrar na indústria e conseguir a divulgação do seu trabalho. Tendo em conta que em regra não sabiam quem iria comprar as pautas, se homem ou mulher, convinha que a canção fosse o mais geral e abrangente possível, de modo a aumentar o seu público-alvo. Weatherly era deveras astuto nesse sentido, pelo que quase todas as suas canções cumpriram o mesmo método.
Mas tal levanta grandes problemas no que toca à interpretação deste tema em concreto. É importante referir que muitos estudos marcam o nascimento da melodia no início do séc. XVII. Terá, assim, surgido pelas mãos de um harpista irlandês cego, Rory O'Cahan, descendente de um poderoso clã. Um dia, nos primeiros anos de 1600, Rory assistiu ao confiscar da maioria das terras onde os seus antepassados haviam vivido. Revoltado, decidiu compor uma melodia plena de dor e comoção, de forma a dar vazão aos seus mais profundos sentimentos. Nascia assim o "O'Cahan's Lament" (O Lamento de O'Cahan), embora haja quem o considere um elogio fúnebre, composto em honra de um parente falecido. Há, contudo, uma lenda curiosa a respeito da primeira hipótese: numa noite em que estaria extremamente alcoolizado, Rory terá surpreendido um grupo de fadas que tocavam na sua harpa uma melodia belíssima, e o músico, quando recuperou do seu excesso etílico, apressou-se logo a registar as notas que havia escutado. Obviamente, afastar-se-á a lenda da verdade do que aconteceu, mas não deixa de ser uma hipótese plena de interesse lúdico - e que achámos por bem partilhar com os nossos leitores.
A dita melodia, que seria muito mais tarde conhecida por "Danny Boy", ressurgiu no século XIX pela harpa de um outro músico cego e itinerante, Denis O'Hampsey, que chegaria à magnífica idade de 112 anos (!). Ora, Denis, ficando cego muito novo, decidiu desenvolver o seu enorme talento para a música e, a dada altura, terá sido aluno de uma familiar de Rory, que lhe passou a melodia composta por esse também cego músico, assim como muitas outras do seu imenso repertório. Graças às suas viagens, Denis ajudaria a espalhar o tema pela Irlanda e não só, já que também o apresentou aos escoceses que o desejavam ouvir. A dada altura conhece Edward Bunting, um jovem colector de música tradicional irlandesa, mais tarde o autor de um livro lançado em três volumes que antologiava diversos temas populares, incluindo o nosso belo lamento.  
Os anos foram passando e o tema, cada vez mais famoso, tornou-se usual no repertório de vários músicos deambulantes, pois no que toca à arte popular a transmissão oral era um dos primeiros modos de preservar esse valiosíssimo património. Em 1851, na cidade de Limavady, em Londonderry, na actual Irlanda do Norte, junto ao mercado local um músico cego (outro, curiosamente), Jimmy McCurry, tocou um tema que despertaria a atenção de Jane Ross, que morava no outro lado da rua. Tendo escutado a melodia, admirado a sua cativante beleza e, depois, sabido-a estranha ao seu conhecimento vasto, contactou um seu amigo entusiasta de canções populares, Dr. George Petrie, que quatro anos depois a publicaria num livro da sua autoria, ainda sob a classificação de anónima. Não obstante, deve-se a Jane Ross o primeiro grande impulso para a universalização do tema, quase 250 anos depois da sua criação, e que posteriormente ficaria conhecido por "Londonderry Air", ou Canção de Londonderry - mais raramente, surgia creditada como Canção do Condado de Derry. Estranhamente, Jane Ross não achou importante saber quem era o músico que a tocava e onde a tinha aprendido, tampouco quem seria o ser verdadeiro autor. Apenas escutou, apreciou e, registando a melodia, a enviou a alguém que sabia ser apreciador do género. Contudo, é interessante saber que a área de Londonderry fez parte, entre os séculos 12 e 17, dos domínios do clã O'Cahan. De certa forma, parece que o tema não abandonou o seu lar de nascimento. 
É claro que, como é natural que aconteça nestes assuntos, a história não é certa nem todos os seus contornos merecem a aprovação da globalidade dos estudiosos. Apresentamos, por isso, apenas a versão mais usual do tema em questão, apesar dos diversos pontos que ao conto parecem ter sido acrescentados pelos descendentes dos intervenientes mais directos. Mas continuemos. 
Mais tarde, uma outra mulher, Margaret Weatherly, que emigrara para os Estados Unidos com o seu marido durante a febre do ouro, escutou um grupo de mineiros que cantava um tema que considerou de rara beleza. Curiosamente eram australianos, pois foi um músico desse país o primeiro a gravar o tema "Londonderry Air". Fascinada, registou a melodia e de pronto a enviou ao seu cunhado, o nosso já bem conhecido advogado-compositor Frederic. 
Mal recebeu a canção interessou-se logo por ela. Estávamos em 1912, e dois anos antes Frederic havia composto e lançado um tema chamado "Danny Boy", que resultou num completo fracasso. Ao ler a música, notou que a letra do seu "Danny Boy" encaixava quase na perfeição na melodia que lhe chegara da América, e não hesitou em trabalhá-lo no imediato. Um ano depois, em 1913, o tema seria lançado, não sem alguns dissabores: Graves, um outro compositor seu amigo, havia escrito dois temas para a mesma melodia, e não apreciou que Weatherly tenha tido a mesma ideia. Ademais, acusou-o de usurpar algumas das suas ideias na criação da nova letra, enquanto que Weatherly afirmava que as letras de Graves não se encaixavam no espírito da melodia. Lançou também os seus dois temas, mas nunca obtiveram o estrondoso sucesso do "Danny Boy" de Weatherly, o que levaria ao fim da amizade entre ambos. 
Logo no início o advogado inglês afirmou ter composto um tema dedicado aos nacionalistas e unionistas da Irlanda, e que era o seu sonho ver ambas as partes cantarem a sua canção, no esforço de ver arredadas as suas diferenças e na esperança de uma convivência comum e pacífica entre todos. Acrescentou, também, que o tema nada tinha de bélico, nem apelava a guerras ou revoltas, sequer inseria-se em contexto de derramamento de sangue. Ora, isto contrasta com a ideia que o primeiro verso nos dá, conforme antes falámos. Se as flautas não chamavam Danny para a guerra, por que tocavam sequer? Por que iriam chamar por ele, conforme o sujeito da canção refere? Não faz grande sentido, diga-se, mas de qualquer modo aceitemos as palavras do próprio autor.
É óbvio que por tais motivos o tema tornar-se-ia muito popular na Irlanda. Ainda hoje em dias os irlandeses do norte, desprovidos de hino, assumem a canção como sendo o seu tema nacional. Mas os oriundos da república independente também partilham desse sentimento, pelo que o sonho de Weatherly parece ter-se cumprido. 
Portanto, não sendo uma canção de partida para a guerra... o que será, então? Muitos vêem nela a despedida de um chefe de clã irlandês a seu filho, de... partida para a guerra. Certa vez, em concerto, a vocalista do famoso grupo The Seekers, Judith Durham, anunciou o tema como tendo sido composto por um pai que via o seu terceiro filho partir para a guerra, após a morte dos outros dois. Ora, se o próprio autor nega esta vertente do tema, importa afastar de vez tal cenário. Sobra, portanto, a hipótese de canção de amor. Outros ainda vêem uma partida para a América em plena Grande Fome na Irlanda, deixando uma mãe para trás, mas como poderão aqui as flautas se encaixar? Danny vai imigrar e as flautas chamam por ele? Além disso, observando melhor o texto nota-se que a última quadra refere um certo tipo de apego e proximidade que não parece usual no amor filial. A ideia de regressar e ver morto o ente amado, e este admitir que espera tranquilo pelo dia em que o outro virá para o seu lado parece mais adequado a um amor romântico. Será, assim, uma canção de amor, embora a partida de Danny, suas razões e destino, permaneça um mistério. 
Diga-se que Weatherly tinha, de facto, um filho com o mesmo nome, e que viria a falecer em combate durante a primeira Grande Guerra. Em três meses, o advogado inglês perdia o pai e o filho, mas lembremo-nos que o tema foi publicado em 1913, pelo que qualquer relação com tais acontecimentos só poderia surgir de alguma capacidade mediúnica de Weatherly, dom esse que sabemos hoje que não detinha. Além disso, alguns anos depois, numa nova publicação do tema o autor esclareceu, em breve nota, que "Danny Boy" deveria ser cantado por uma voz feminina, e se fosse o cantor um homem então deveria alterar o título e algumas passagens para "Eily Dear" (Querida Eily). Como a tradução literal seria algo como "Danny, meu rapaz", mas que ganha outro nome e um outro qualificativo na mudança de intérprete, no caso "Querida", decidimos arriscar e escolher esse mesmo adjectivo na nossa versão. Convenhamos: quão comum será em português a amada dirigir-se ao ente amado como "meu rapaz"? É de facto um tratamento que sugere uma pessoa mais velha, como pai ou mãe, mas aqui voltaríamos à contradição antes referida. Como de novo se constata, o carácter geral e algo ambíguo da letra desta canção permite várias interpretações e, mais importante ainda, deixa no ar diversas dúvidas quanto ao seu real significado, se algum haverá. Mas foi essa a estratégia do grande sucesso de Weatherly - permitir que qualquer um pudesse cantar os seus temas.
Terminaremos dizendo que ao longo dos anos diversos cantores interpretaram esta canção, e alguns tão distintos como Mario Lanza ou Elvis Presley, contribuindo também para a sua difusão quase universal. Nesse processo, certos reparos foram sendo feitos, certas alterações à letra original, e foram essas tão vincadas que muitos atribuem a Weatherly versões que ele próprio não compôs. Pelo que a nossa pesquisa permitiu descobrir, usámos a original de 1913, como convém. As outras propõem trocas pouco significativas, embora muitas vezes cantadas, estando a principal no segundo e terceiro versos da última quadra: a troca de "sonhos" por "campa" e o "amor olvidado" por "amor confessado". Em todo o caso, consideramos que deverá sempre prevalecer a versão original do autor. Mesmo que a mudança da mesma para o português tenha aproximado o texto mais do molde de poema do que de canção, todas as intenções originais que nele se descobriram foram obviamente mantidas - incluindo a forte inclinação para o género canção de amor.









Calypso's Island, Departure of Ulysses - 
Samuel Palmer (1805 - 1881)




Sem comentários:

Enviar um comentário