segunda-feira, 16 de maio de 2022

A DONZELA DE LLYN-Y-FAN (3ª e última parte)

 
Passado um ano, o casal foi convidado para ir a um casamento. Durante o momento mais alegre e festivo da cerimónia, Nelferch começou a chorar, para grande surpresa de Gwyn. Com carinho, este aproximou-se da mulher e deu-lhe uma palmadinha suave no ombro, exclamando:

- Então, então, porque choras neste momento tão feliz?

Ela respondeu:

- Choro porque os problemas deles estão agora a começar. E choro porque acabaste de me dar a segunda palmada sem motivo. 

E abandonou a cerimónia em pranto. A partir dessa altura, Gwyn redobrou a cautela: mais uma palmada e perderia a esposa para sempre.

Decorreu mais um ano, e Gwyn e Nelferch foram assistir a um funeral. No momento mais triste da cerimónia, quando todos choravam de dor e de saudade, Nelferch irrompeu em gargalhadas ruidosas para grande surpresa dos presentes. Gwyn chegou junto da mulher e, sem pensar, deu-lhe uma pancadinha no braço, dizendo:

- O que se passa? Porque ris tanto neste momento tão triste?

Ela respondeu:

- Rio porque terminaram finalmente os problemas daquele que morreu. E terminou também o nosso casamento, pois acabaste de me dar a terceira palmada sem motivo. Adeus, Gwyn, adeus para sempre!

E com estas palavras Nelferch abandonou o marido, levando consigo os animais que tinha trazido como dote. Seguiram na direcção do lago e, assim que lá chegaram, desapareceram sob as mesmas águas de onde tinham surgido. 

Gwyn ficou desesperado e foi muitas vezes até junto do lago, mas não voltou a ver a mulher. Também os filhos de ambos sofriam pelo afastamento súbito da mãe; até que um dia, esta apareceu ao filho mais velho, quando ele vinha a passar junto à chamada "Estrada do Curandeiro". E disse-lhe que vinha revelar-lhe qual a sua missão no mundo:

- Curarás os doentes e ajudarás todos aqueles que necessitarem de ajuda.

E, dizendo isto, entregou ao filho uma sacola que continha os segredos das ervas e das plantas:

- Aqui tens tudo o que precisas de saber sobre a arte de curar. Este conhecimento será utilizado por ti e pelos teus irmãos. 

Os três irmãos seguiram as instruções da mãe e tornaram-se nos três mais famosos médicos do País de Gales, conhecidos como os Meddygon Myddfai¹. Por causa da sua arte, receberam bens privilégios, tornando-se prósperos. E deram origem a oito gerações de curandeiros cuja fama e renome se mantiveram por muitos e longos anos. 






(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo", provavelmente originado no século XIII.)







(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)













(1) Apesar do cariz fantasioso do conto, estes "curandeiros de Myddfai" são figuras reais. Conceituados herbalistas do século XII / XIII, não terão tido o grau de parentesco que o conto lhes atribui. Na verdade, a história regista um curandeiro e os seus três filhos, que tornaram-se os médicos pessoais dum príncipe daquela região galesa. A sua fama era tal que, graças aos bons efeitos das suas práticas, lograram adquirir terras e gado - a paga de muitos pacientes agradecidos. O seu conhecimento foi passando de geração em geração, sempre por linhagem masculina, até, diz-se, ao ano de 1739, quando faleceu o último dos seus representantes, um tal de John Jones. 
Algures pelo caminho de tão longos anos, crê-se que a população local terá criado esta história fantástica como modo de explicar os enormes talentos curativos que aquela família parecia ter. Eram tão extraordinários que algum membro, lá bem atrás, só poderia ser descendente de fadas. E assim temos a nossa donzela, uma fado do lago, como a matriarca de tamanho talento curativo. 
No entanto, o que não compreendiam é que os tempos medievais foram épocas de grande florescimento cultural, comprovado pela fundação das primeiras universidades e escolas monásticas. A medicina, portanto, não perdeu o seu lugar nesse fluxo de descobertas e transmissão de conhecimentos. A localidade de Myddfai foi um desses lugares, graças ao apoio financeiro dum príncipe galês, dirigido aos mosteiros da zona. É, assim, muito provável que o primeiro membro desta família de famosos curandeiros tenha obtido a sua instrução dos monges locais e dos vários livros que chegavam frequentemente àquelas paragens, para tradução e cópia. 
Os seus conhecimentos terão sobrevivido aos séculos. Crê-se, com algum fundamento, tratarem-se dos que se compilam num livro do século XIV, de seu nome The Red Book of Hergest. 













(Fonte: wiccanow.com)




quinta-feira, 5 de maio de 2022

A DONZELA DE LLYN-Y-FAN (2ª Parte)


Na manhã seguinte, Gwyn regressou às margens do lago com o seu gado. Mais uma vez, esperou quase até ao anoitecer e, quando se preparava para regressar a casa, já sem esperança de voltar a ver aquela que amava, olhou por cima do ombro e avistou a donzela a pentear os cabelos, sentada na planura das águas.

- Senhora - disse ele -, se não me deres o teu amor nada mais me resta senão morrer.

E estendeu-lhe o pão e o queijo do lanche. Desta vez, ela veio até junto dele e aceitou a oferta, com um sorriso. Gwyn reparou que o laço de um dos seus sapatos estava solto. E ficou louco de alegria quando ela lhe disse:

Na perfeição este pão cozeu.
O meu coração é agora teu.

E acrescentou:

- Mas lembra-te, se durante a nossa vida de casados me deres três palmadas sem motivo, desaparecerei para sempre.

A donzela voltou a mergulhar no lago para grande consternação de Gwyn, que julgou que, mais uma vez, ela iria desaparecer. Contudo, alguns segundos depois, surgiu do meio das águas um homem de porte nobre, com um manto de seda branco preso com alfinetes de outo. Com ele vinha a donzela do lago e, para grande surpresa do jovem, uma outra mulher em tudo igual à primeira. Nesse instante, o homem falou:

- Sei que queres casar com uma das minhas filhas. Pois bem, se me disseres qual das duas é a mulher que amas, não terei problemas em consentir que ela case contigo.

Gwyn ficou muito atrapalhado porque as duas irmãs eram iguais como duas gotas de água. Olhou de uma para a outra, sem saber o que dizer, pois era-lhe impossível distinguir uma da outra. E, no momento de maior desespero, quando pensava que tudo estava perdido, uma das raparigas mexeu um dos pés de forma quase imperceptível, e o seu sapato apareceu debaixo do vestido. O jovem olhou para baixo e reparou que o laço que atava o sapato estava solto. Lembrou-se de imediato que havia notado esse pormenor, instantes atrás, quando a donzela do lago tinha vindo até junto dele para aceitar o seu pão. E então apontou para ela e afirmou com segurança:

- Esta é a mulher que eu mais amo neste mundo.

O homem entregou a filha a Gwyn e, com ela, o seu dote, constituído por quantas cabeças de gado ela conseguisse contar sem respirar. Mas não partiu sem antes deixar um aviso:

- Se durante a vossa união bateres por três vezes na minha filha, mesmo que seja sem querer, se lhe deres três palmadas sem motivo, perdê-la-ás para sempre, assim como o dote.

A um sinal do pai, a donzela do lago fechou os olhos, inspirou fundo e começou a contar. À medida que contava, saíam do lago vacas, ovelhas, cabras e cavalos. Quando a donzela perdeu o fôlego, os animais juntaram-se atrás dela e partiram para a sua nova morada, numa quinta em Esgair Llaethdy¹.

Os anos passaram e o casal vivia em grande felicidade e prosperidade. A seu tempo, foram abençoados com três belas crianças. Quando o filho mais velho atingiu os sete anos de idade, Gwyn e Nelferch, que era o nome da donzela do lago, foram convidados para ir ao baptizado do filho de um dos vizinhos. Mas Nelferch não queria ir porque a casa dos vizinhos ficava longe e o caminho era sempre a subir. Quando chegou a altura de saírem de casa, ainda ela não estava vestida e Gwyn repreendeu-a:

- Vamos, despacha-te. Se não queres ir a pé, vai buscar os cavalos e trá-los até à porta.

- Está bem, disse ela. Mas esqueci-me das luvas. Podes ir buscar-mas ao quarto?

- Sim, claro, mas despacha-te. Estamos atrasados, respondeu Gwyn. 

Quando regressou com as luvas, verificou que ela não se tinha mexido e continuava por vestir. E então, para que ela se apressasse, pegou numa das luvas e bateu-lhe com suavidade no ombro, dizendo:

- Vá lá, vá lá, veste-te.

Para sua surpresa, ela afirmou:

- Então, marido, esqueceste-te da tua promessa? Acabaste de me dar a primeira palmada sem motivo. Tem atenção para não me dares a segunda.

Gwyn ficou preocupado quando percebeu que um gesto tão inocente poderia ser considerado uma palmada sem motivo e, por essa razão, jurou a si mesmo ter mais cuidado.


(Continua...)







(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo", provavelmente originado no século XIII.)










(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)











(1) Pequena localidade do condado de Carmarthenshire, paróquia de Myddfai, a cerca de dez quilómetros do lago donde a donzela emergia.  











"Lamia",
de John Williams Waterhouse
(1849 - 1917)