terça-feira, 11 de setembro de 2018

O LAMENTO DAS RAPARIGAS DE BANTRY (1)


Oh, quem os campos irá lavrar ou o milho venderá?
Oh, quem as ovelhas irá limpar e boa tosquia lhes dará?
O feixe que está na eira por debulhar irá permanecer,
pois Johnny o corrupto Rei de Espanha foi combater.

As raparigas da verde vila² em suas tristezas partirão
e o flautista e seus foles para casa soprar o fogo irão,
pois Johnny, o gentil Johnny, atravessa o grande mar
com outros patriotas³ para o Rei de Espanha enfrentar.

Os rapazes, pela feira de Moneyhore⁴, a sua falta irão sentir,
lamentando estar o bravo capitão em lugar por descobrir;
a polícia⁵, contra a sua fibra e vontade, deve agora esperar,
pois o valente rapaz que os empregou um Rei foi desancar.

Não te veremos nas festas⁶ e jogos de hurling, tua adoração,
até que voltes para junto de nós, tesoiro do meu coração⁷!
Nem vexarás os nobres⁸ que revelam sobranceria tamanha,
pois não temos negros olhos como os há em Espanha.

Se o destino cruel o regresso do nosso Johnny não aceitar,
nós, as raparigas de Bantry, tal grande perda iremos chorar.
Aceitando a triste sorte, morreremos em luto e dor lancinante
- o Johnny morreu pelo brio da Irlanda na Espanha distante.




Anónimo (prov. séc. XIX) ⁹







(Versão de Pedro Belo Clara a partir do texto impresso num artigo da Dublin University Magazine, em dezembro de 1863).






(Para acompanhar a sua leitura, ou simplesmente apreciar após findá-la, propomos a versão de Joanie Madden - dado que, pelas óbvias razões, o tema ganha um melhor sentido quando interpretado por uma voz feminina. Contudo, a interpretação de Tommy Fleming também merece sinceros louvores. Desfrute, caro leitor:  https://www.youtube.com/watch?v=MN-V4OL3axk ).








(1) A Bantry mais famosa é uma cidade do condado de Cork, conhecida pela sua baía. No entanto, um estudo mais cuidado concluirá que a Bantry do texto hoje apresentado é um baronato na região de Wexford, República da Irlanda. Embora actualmente tais divisões já não existam, à luz da época é seguro aceitar essa referência - além doutros indicativos que, por se situarem na mesma região, excluem logo a hipótese da outra cidade mais afamada. 


(2) No texto que serviu de guia a esta versão em português surge a palavra "bownoge" que, definitivamente, nem se encontra nos dicionários ingleses. Na publicação em causa é possível ler uma nota que refere o seguinte: Bown: Quintal fechado ou quadra relvada; Bownoge: Vila verde. Ou seja, não refere um lugar em concreto, apenas dá referência a uma "verde vila". 
De facto, nas proximidades de Wexford existe uma localidade com tal nome, mas importa ressalvar que no texto em inglês a palavra surge em minúsculas, o que inviabiliza a hipótese de se tratar do nome de uma localidade - daí o termo sugerido na nossa tradução.


(3) No original encontra-se escrito "pathriarchs", que se traduzirá em "patriarcas", mas logo o editor da revista se apressou a deixar uma nota elucidando tratar-se de um erro. 
Admitindo, ainda que de modo algo intuitivo, os parcos estudos os admiradores do bravo Johnny, estes terão assim querido dizer "patriots", ou seja, "patriotas", conforme se traduz. Lemos que alguns intérpretes da história desta bonita canção-poema defendem que patriarcas estará correcto, pois significa veteranos, mas parecendo Johnny, conforme descrito, tão jovem, a hipótese perde bastante força (note-se que o verso indica «com outros», logo inclui Johnny no grupo). Obviamente, seguimos o preceito indicado pela revista irlandesa, a mais antiga fonte que pudemos descobrir.


(4) Moneyhore é uma vila situada entre Enniscorthy e Castleboro, no condado de Wexford, célebre pelas suas feiras, especialmente nas eras medievais. Em algumas versões surge "Moneymoore".
Neste momento do texto são os rapazes, provavelmente um grupo de soldados seus amigos, que lamentam não saber onde o «bravo capitão» de momento se encontra. É muito provável que este Johnny, originário do baronato de Bantry, fosse visita assídua da dita feira.


(5) Uma tradução algo complexa que deriva de um jogo de palavras. No original surge "peelers", que num primeiro instante se traduzirá por "descascadores", isto é, aqueles que têm a profissão ou tarefa de descascar ou debulhar. Lendo com mais atenção, nota-se que a referência não é agrícola. 
De modo popular, "peelers" era um nome na Irlanda dado à polícia, e surge escrito pela primeira vez em 1816, daí a tradução que se apresenta. Pode fazer referência aos actos violentos dos seus membros, isto é, a polícia como sendo aquela que "descasca" em quem ousar um acto de rebeldia, mas também é provável que o nome tenha surgido através do grupo de intervenção pela manutenção da paz no território criado por Sir Robert Peel, primeiro-ministro inglês no reinado da Rainha Vitória, um em 1814 outro em 1822. Os "peelers" seriam, portanto, os "homens de Peel" (algumas datas dadas na adenda número 9 demonstrarão como esta teoria tem os seus problemas). Quem escreveu o texto habilmente escolheu tal termo para o jogar, no verso seguinte, com o acto que atribuiu a Johnny: "now peels the King o' Spain" - "agora descasca o / no Rei de Espanha" (ele que antes fugia aos "descascadores"). 
Naqueles tempos, acrescente-se, acontecimentos sociais como as feiras eram o palco preferido para rixas de todo o tipo, nomeadamente as que começavam como insurreição contra o domínio inglês no território. Já que é Johnny que, ironicamente, justifica o emprego a esses "peelers" que devem, agora, aguardar o seu regresso, talvez ele tenha sido um célebre insubmisso no seu tempo. 


(6) No original "wakes". Apesar de num sentido mais directo traduzir-se por "vigílias", refere-se às festas populares realizadas em pequenas vilas e aldeias em honra dos seus santos padroeiros. Ou seja, um momento social, na época, de grande importância. Devido à extensão do verso traduzido, lamentavelmente teve-se de omitir no texto o elucidativo adjectivo "religiosa".


(7) No original impresso surge em gaélico «asthore, gra-gral-machree», uma referência a um chavão empregue em diversas canções românticas e que se traduzirá literalmente por "pequeno e jovem tesoiro do meu coração". Dada a extensão do verso, e sob pena de arruinar toda a estrutura da versão apresentada, houve que proceder a uma adaptação da lírica expressão em causa.


(8) A palavra original é "buckeens", que é sinónima de "gentry", ou seja, especifica um tipo de nobreza, no caso a pequena ou baixa nobreza. Não será, portanto, uma referência aos nobres de nascimento, mas àqueles que na estrutura social estavam imediatamente abaixo, de estatuto adquirido graças a um grande sucesso financeiro ou, em último caso, a avultadas herança. Seja como for, o Johnny tinha a reputação de importunar representantes desta classe.


(9) No universo popular não é tarefa fácil descobrir com extrema precisão e segurança o autor de uma determinada canção ou poema. Não só os mais antigos foram chegando aos tempos modernos graças ao poder da tradição oral, o que facilmente levava a uma captação errónea das palavras (neste caso em particular, por exemplo, logo no primeiro verso, existem versões com "sell the corn" e "sow the corn", que será a diferença entre "vender" e "semear"), como certos autores tinham o hábito de pegar em velhas canções, adaptá-las a seu gosto e, muitas vezes, declararem-se eles os seus criadores.
É um pouco o que se passa com este tema. Melodia e letra nasceram em ocasiões distintas, sendo que as palavras foram posteriormente usadas para preencher uma antiga canção irlandesa. Sobre essa, notemos o que William "Colm" O'Lochlainn (1892 - 1972) escreveu no seu livro "Irish Street Ballads", de 1939, citando George Petrie (1790 - 1866): «colectada no condado de Londonderry [Irlanda do Norte] no verão de 1837, é muito provável que seja um tema com origem no Ulster. Foi cantada para uma balada de camponês anglo-irlandesa». Acrescenta depois umas linhas que Petrie conseguiu preservar, e embora estas refiram um Johnny em nada se igualam aos versos deste texto. 
Ao que apurámos, algumas vozes indicam que os versos são adaptados de "The Witham Miller", mas uma grande certeza em tal assumpção não nos assiste, já que o tema alude historicamente a um moleiro que foi enforcado como pagamento pelos seus crimes (homicídio, provavelmente).  Porque uma das variações deste tema foi usada por Patrick Kavanagh (1904 - 1967) em "Ragland Road", muitos associam o poema a este autor, mas tal também não será correcto. Mesmo que o tenha incluído no seu livro de crónicas "The Banks of the Boro", lembremo-nos que o texto já havia sido editado, pelo menos, em 1863. 
Mais tarde surge num livro de Alfred P. Graves (1846 - 1931), o "Irish Songs Of Wit and Humour", de 1880, talvez a primeira vez que surge em livro, mas sem qualquer referência, uma vez mais, à sua origem ou onde Graves a colectou. Outro autor, Sparling, sete anos depois não a identifica numa obra sua de antologia, fazendo-o somente na segunda edição da obra, em 1888. Contudo, Graves não poderá ser o seu autor, uma vez que o texto, como já demos prova, surge numa revista dezassete anos antes do seu livro de canções. Ademais, à medida que estes iam publicando a canção nas suas antologias iam tomando a liberdade de lhe conceder pequenos acertos, o que actualmente só causa uma enorme confusão. O que podemos afirmar é que a versão impressa mais antiga que encontrámos serviu de base ao trabalho de tradução por assim a considerarmos original, ou pelo menos mais perto dessa forma. Encontra-se presente na já referida revista irlandesa, mas sem que haja qualquer referência à sua origem - pelo que considerámos sensato atribuir a autoria a uma figura anónima. Como afirmámos no início da nota, é um dúbio terreno esta caminhada de investigação pelas origens de temas populares tão antigos. 
Em todo o caso, sabemos que este Johnny, louvado pelas suas capacidades e personalidade, partiu para uma guerra em Espanha. E que relação poderá haver entre o país ibérico e a Irlanda? Naturalmente, para se encontrar sentido é necessário acrescentar mais um país à lista: a Inglaterra. Posto isto, é fortemente provável que o texto tenha surgido durante a Guerra Peninsular (1807 - 1814), onde vários regimentos ingleses, que incluíam irlandeses, combateram as forças de Napoleão em terreno espanhol. Em Portugal, como sabemos, aconteceu algo parecido, se bem que longe do rastro destrutivo que o conflito teve no país vizinho. Portanto, Johnny embarca, ao que parece como capitão, para «o Rei de Espanha desancar». E tudo em nome «do brio da Irlanda». Seria interessante investigar porque estaria o orgulho irlandês em jogo. Apenas para dar provas da coragem do seu povo? Ou, vendo que o poema tem motivos irónicos (o Johnny que dá emprego à polícia) e algo jocosos (o flautista que triste se retira para soprar o fogo da lareira com os seus foles), talvez qualquer sentido mais profundo daí se retire, como, por exemplo, uma promessa de independência ou mostra de força, em terra estrangeira, do carácter irlandês face ao seu colonizador.
No entanto, é também provável que o tema seja um pouco mais recente, e o conflito em causa seja as Guerras Carlistas, ocorridas a partir de 1833, um conflito entre absolutistas (o irmão do rei, D. Carlos de Borbón) e liberais (a regente Maria Cristina, apoiada pela rainha Isabel II). Ora, os ingleses apoiavam estes últimos e sabe-se que entraram no conflito com uma legião de dez batalhões, onde figuravam escoceses e irlandeses - como, aliás, era comum nas recrutas daqueles tempos. Como Carlos se auto-proclamou Rei, é bem possível que o último verso da primeira quadra detenha a chave da correspondência com o que se diz: «o corrupto Rei de Espanha». É por isso que muitos consideram mais credível esta hipótese, apesar de corrupto poder igualmente ser o irmão de Napoleão, que naquele tempo assumiu o trono espanhol.
Exactamente trinta anos depois do conflito carlista a canção surge editada na fonte já antes citada, ainda que com o nome diferente daquele que se foi tornando habitual: O Lamento das Raparigas de Bantry por Johnny - surgindo creditada como uma canção sobre a vida rural da Irlanda. Para todos os efeitos, evitando confusões, adoptámos o título moderno que à canção se concede, apenas para não incorrer no risco de dar a ideia de tratar-se de uma composição diferente. Já o esquema de rima original, como sempre, foi respeitado. Antes de encerrar, damos ainda nota que aqui se apresenta o texto completo como se conhece na sua impressão, e não como é usualmente cantado - pois em norma os intérpretes tendem a excluir a quarta quadra do poema. 








(The Parting of Robert Burns and Highland Mary,
James Archer (1822 - 1904))