sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O CIGANO TROVADOR




O cigano trovador desceu as colinas,
um deveras sombrio vale atravessou;
assobiava e cantava até o bosque ecoar:
assim o coração duma donzela arrebatou.

Deixou logo para trás o castelo de seu pai,
abandonou um jovem e belo amante,
renegou a criadagem e o alto estatuto
para acompanhar o seu cigano errante.

Deixou para trás os vestidos de veludo
e sapatos de couro espanhol, do mais fino!
Assobiam e cantavam até o bosque ecoar,
enquanto juntos seguiam o seu destino.

Noutra noite dormiria em penas de ganso
e em lençóis de seda, tão delicado pano;
naquela noite dormiu na fria fria grama,
mas bem perto do seu amado cigano.

O pai aflito montou o cavalo mais veloz,
de todos os grandes vales foi vigilante;
em grande velocidade encontrou a filha
ao lado do seu trovador cigano errante.

E enfim chegaram a grandiosa mansão,
erguida junto ao Claydee
(1), ribeira bela;
com pompa havia música, havia vinho
esperando o cigano e a sua donzela.

“Não é ele nenhum cigano, meu pai,
mas o senhor das terras em diante;
até que chegue a morte aqui ficarei,
junto do meu trovador cigano errante”.




Leo Maguire (1903 - 1985) (2)





(Versão de Pedro Belo Clara a partir do tema original. Embora existam diversas versões desta bonita canção, sugerimos ao leitor mais interessando a dos Clancy Brothers, que aqui poderá escutar enquanto lê o poema que propomos: https://www.youtube.com/watch?v=93oVQt82O-A . O tema cantado ostenta, como verá, um refrão interessantíssimo, que parece reproduzir a canção que o cigano estaria a assobiar e a cantar no seio da história, algo que nesta versão poetizada pelas óbvias razões se omite.)





(1) Não existem registos, tanto quanto a nossa busca permitiu deslindar, da existência de um curso de água com este nome. No original surge como "river Claydee", ou seja, "rio Claydee", embora para efeitos de rima se tenha alterado a sua designação para "ribeira", decisão essa fortalecida pelo carácter fantasioso do local propriamente dito. Ou seja, se o mais provável é a sua criação fictícia, então não subsistem grandes razões para impedir a descida de escalão quantitativo do referido rio para ribeira. 
O tema foi composto por um músico irlandês, e assim julgar-se-ia com raízes nesse país e em suas tradições; contudo, como veremos de seguida, existem motivos sólidos que poderão situar as influências literárias que sustentaram a sua criação como sendo provenientes da Escócia. De facto, neste país já encontramos um rio de nome idêntico, o Clyde, que passa pela conhecida cidade de Glasgow. Assim, "Claydee" poderá apenas referir-se a um modo mais carinhoso como as gentes locais se referiam em tempos idos ao dito rio. Mas também sob este ponto de vista não deixamos de permanecer no campo da especulação... Tanto que o seu autor nestes termos a esta peça se referia: "uma canção tradicional irlandesa".


(2) Leo Maguire foi um famoso cantor, compositor e radialista irlandês, natural de Dublin. A versão escrita que aqui apresentamos deriva de uma conhecida canção que compôs e que Joe Lynch lançou em 1952 com assinável sucesso, timbre esse, aliás, que se mantêm ligado a este tema até aos dias de hoje. Originalmente "The Whistling Gypsy", por diversas vezes surgiu cotada como "Gypsy Rover" ("Cigano Errante"). Optámos por manter o título original, bem como o corpo de texto original (muitas versões cortaram e até adicionaram estrofes à canção), mas com uma ligeira alteração: "whistling" refere "aquele que assobia", ou seja, o "assobiador", e dada a escassa melodia poética que tal expressão produz, decidimos substituí-la por "trovador", uma vez que o autor parece simplesmente sublinhar o carácter alegre e musical de tal figura. "Assobiador", e até "Cantante", podem assim muito bem passar, a um dado nível, por "Trovador".
Importa agora referir que o publicado se trata apenas de uma versão do tema de Maguire, e não da sua completa e literal tradução. Por deter o original um esquema de rima, embora nem sempre regular, decidiu-se que seria acertado manter a rima onde esta se revelasse com maior força, isto é, nos segundos e quartos versos de cada estrofe. Naturalmente, para a manter em português, mesmo que uma tradução quase directa o permitisse, houve necessidade de recorrer a alguns ajustes, sem com isso prejudicar a essência principal de cada estrofe e, principalmente, do poema / canção em si. Foi nessa direcção, pelo menos, que o nosso esforço se desenvolveu.
Em relação à origem desta canção, pois exibe fortes influências que não se poderão ignorar, verifica-se que a mesma finca raízes num tempo bem mais antigo que se julgará à partida para uma canção composta em pleno século XX. Após um estudo mais aprofundado, identificaram-se extraordinárias semelhanças com algumas canções dos princípios do século XIX, nomeadamente com um tema que se viria a desenvolver sob o nome "The Raggle Taggle Gipsy" (numa tradução livre, "O Cigano Excêntrico", no sentido colorido das suas roupas, usadas sem grande sensibilidade estética), por sua vez uma canção com origens numa antiga balada escocesa. Maguire utiliza inclusive na sua canção expressões em tudo idênticas àquelas que compõem este tema (a cama de «penas de ganso», por exemplo).
Não são, de facto, escassas, os poemas e as canções que em sua linha básica abordam a história deste tema: uma mulher, amiúde rica, encontra um homem cigano, ou conjunto deles, e decide fugir na graça do seu encanto, sendo posteriormente perseguida por pai ou marido. Contudo, aqui observamos como de irlandês pouco ou nada esta canção tem, não obstante quem a compôs, pois histórias como esta têm a sua substância em diversos episódios e lendas ocorridas e com ligação à Escócia. A hipótese do rio Clyde, atrás exposta, ganha assim uma nova vida. 
Não dizemos que a Irlanda se expurgou do povo cigano durante séculos, mas a verdade é que, naquelas épocas, os seus números seriam muito escassos na ilha, se não mesmo inexistentes. O caso escocês é bem diferente, já que muitas canções com estes peculiares elementos parecem remontar ao país de Robert, The Bruce. O texto mais antigo em que tal canção parece ser baseada data do século XVII, e até esse exibe fontes passíveis de serem remontadas ao século XVI. Temos, por isso, uma canção simples da nossa era a carregar em si uma pesada e rica herança. 
O ponto histórico de maior relevo surge precisamente quando se verifica que um dos antecedentes do "The Raggle Taggle Gipsy" foi publicado sob o nome de "The Gypsy Johnny Faa" ("Johnny Faa, o Cigano"). Muitos autores e estudiosos acreditam que a canção conta a história de tal personagem com uma veracidade deveras credível. Trata-se de uma balada melancólica que não foge muito do guião já citado, mas por se referir a uma individualidade real adquire outra profundidade. Ora, Johnny Faa foi nem mais nem menos do que o "Rei dos Ciganos", autoridade essa concedida pelo próprio Rei Jaime V em 1540, tornando-o assim o soberano entre todo o povo cigano que habitava na Escócia. Curioso é verificar como historicamente Faa surge cotado como o "Rei dos Egípcios" (em inglês "The King of the Egyptians", onde facilmente se compreende a corrupção linguística para "Gypsys", ou seja, "ciganos", remetendo assim as suas origens ao longínquo Egipto). Conta a lenda que Faa apaixonar-se-ia e de seguida fugiria com a condessa de Cassillis, Escócia, sendo contudo capturados ambos pelo esposo da nobre senhora e Faa condenado assim ao enforcamento.
Em todo o caso, parece ser este o alinhamento por detrás de todas as outras canções e poemas que ao longo dos séculos surgiriam, não obstante o facto de esta terminar com um final feliz. Essa foi, aliás, a intenção confessada pelo próprio Maguire: a de compor uma canção irlandesa (agora duvidamos um pouco dessa expropriação) que não tivesse um fim pesaroso e triste. O desafio fora-lhe lançado numa roda de amigos e o autor cumpriu-o como o soube.









quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O MELRO


Oh, melro no arbusto, 
és feliz onde o teu ninho está. 
Ermita que nenhum sino tange, 
doce, leve, sereno é o teu canto!


Anónimo (por volta do séc. VII). (1)






(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Kuno Meyer, em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)






(1) Este poema é um dos mais antigos poemas encontrados naquelas latitudes. Escrito por um monge copista na actual Irlanda, foi descoberto como um esboço rabiscado na margem de um livro que este à época copiava. Não obstante a sua antiguidade, é deveras revelador dos princípios básicos que fariam a poesia daquela cultura. Contudo, não será ele "celta" por ligação directa àquele histórico povo, mas "celta" pela incidência directa com as paisagens onde os mesmos viveram. Ainda que se trate de um monge católico, por aqueles séculos em grande número na região, a verdade é que o autor não ficou indiferente aos encantos naturais da paisagem circundante nem aos elementos que de modo tão lírico e virginal a embelezavam.
É importante sublinhar que falamos de uma ilha situada no extremo noroeste do mundo então conhecido, livre do domínio e influência romanas, e que somente no séc. VI teria um contacto mais sério com os princípios cristãos, caminho esse desbravado anteriormente pelo famoso São Patrício (385 - 461), o evangelizador da Irlanda e o seu santo padroeiro. 
Nos dois séculos seguintes, por efeito da sua própria literatura de tradição oral e os meios escolásticos implementados pelos cristianismo, o território tornar-se-ia aquilo que Samuel Johnson (1709 - 1784) chamou de "a escola do ocidente europeu, um lugar que privilegiava a literatura e a santidade". Em suma, um refúgio para muitos dos primeiros cristãos que lograram escapar do jugo romano e suas influências culturais. Monges que decidiram dedicar as suas vias à contemplação e ao estudo encontravam na ilha um santuário ímpar, ideal para o natural desenvolvimento das suas intenções. O autor deste poema seria decerto um deles, embora o texto em si seja uma espécie de desabafo que revela uma certa "inveja" pela liberdade e alegria jovial do melro visado em verso. O seguinte, «és feliz onde o teu ninho está», subentende um desejo profundo do autor poder gozar uma felicidade frugal idêntica àquela que o pássaro parece traduzir através do seu mavioso canto, ainda que "ninho" possa funcionar como símbolo para "casa" ou até "coração", conferindo ao poema uma nova profundidade. Um pouco mais à frente, em «Ermita que nenhum sino tange», o monge coloca-se numa condição semelhante à da negra ave, gabando apenas a sua ausência de obrigações monásticas e, claro, a liberdade que daí advém. Quase que se poderá adivinhar a conclusão reflexiva: se o Homem fosse mais simples como os animais, decerto seria bem mais feliz.
Estes primeiros anos de produção literária na ilha resultaram em poemas simples e breves, de verso conciso, lembrando até a índole dos preceitos que, muitos anos depois, celebrariam o Haiku no Japão. Uma grande intimidade com a natureza circundante, a arte de dizer pouco enquanto permite antever muito mais e uma notável simplicidade de processos, veramente minimalista, fariam os louvores dos poemas de então.
O florescimento da literatura irlandesa no gaélico original foi deveras extraordinário, resistindo inclusive às sangrentas invasões Anglo-Saxónicas, embora tenha registado um marcante declínio no início do séc. XIX por força da imposição da língua inglesa às novas gerações de então, medida essa, curiosamente, implementada pelas escolas católicas na Irlanda. Décadas depois, o negro período conhecido por "A Grande Fome", motivando inúmeras mortes e emigrações em massa, daria a machadada quase final numa língua outrora tão próspera em magníficas criações artísticas, até o princípio do séc. XX trazer a independência da Irlanda relativamente ao domínio inglês e diversos movimentos patrióticos e de criação poética terem reavivado a antiga chama de uma cultura literária deveras singular.