sexta-feira, 17 de março de 2017

HINO EM LOUVOR DE SÃO PATRÍCIO (excerto)


Atentai, vós todos que amais a Deus,
Nas santas virtudes de Patrício (1),
Bispo e homem abençoado por Cristo.
Vede como pelas suas obras
É semelhante aos anjos do Céu
E vede como a vida perfeita
Que sempre levou o faz igual
Aos doze apóstolos do Cristo Senhor.

Bendito por Cristo, em todas as coisas
Ele guardou os seus mandamentos.
Das suas obras se desprende uma luz
De intenso brilho que ilumina
Os outros homens. E estes seguem
O seu exemplo santo e perfeito e magnífico,
Entoando cânticos de louvor e glória
Àquele Senhor que está no Céu e é o nosso Pai.



São Segundino (séc. V) (2)



(Selecção e adaptação de Pedro Belo Clara a partir da tradução de José Domingos Morais, in "O Grito do Gamo - Poemas celtas da Fé e do Sagrado").


(Nota: O breve excerto apresentado foi retirado de um conjunto de vinte e três estrofes, devidamente enumeradas e em epígrafe iniciadas por certos adjectivos ordenados alfabeticamente, de acordo com a disposição do alfabeto latino (Audite, Beata, Constans, Dominus, etc...). Torna-se claro que, sendo um hino, escrito em latim e não em gaélico irlandês, cada adjectivo representa uma virtude associada à figura de São Patrício, o santo padroeiro da Irlanda.)



(1) «Patrício (Padraic, em gaélico) nasceu no final do século IV, no seio de uma família cristã, numa vila ou aldeia não identificada na Grã-Bretanha. Todavia, não existe consenso entre os investigadores, havendo quem defenda a tese de que a sua terra natal seria a França, sendo sua mãe uma irmã de São Martinho de Tours. Todos estão porém de acordo em dizer dizer que na primeira adolescência [aos 16 anos de idade, segundo o próprio escreveu em Confessio] teria sido raptado e levado para a Irlanda, onde, na condição de escravo, foi pastor de gado. Em seguida, diz-nos a lenda, um anjo lhe apareceu e apontou o caminho do mar e da fuga para o continente. Aí, o mesmo anjo o encaminhou para uma abadia fundada pelo tio São Martinho. Terminados os anos de formação e já ordenado padre, rumou para a Terra Santa e, em 431, foi sagrado bispo pelo Papa Celestino I, recebendo o encargo de partir em missão para a Irlanda. Numa das escalas da viagem, prossegue a lenda, Cristo apareceu-lhe e fez-lhe entrega do bordão que usara nos campos da Palestina.
Chegado à Irlanda iniciou a sua obra missionária e ergueu o primeiro templo cristão da ilha em local que para o efeito lhe foi oferecido pelo primeiro chefe indígena que converteu.» - José Domingos Morais, in "O Grito do Gamo - Poemas celtas da Fé e do Sagrado".


(2) São Segundino, do latim Secundinus, e em gaélico irlandês Sechnall, terá nascido algures na península itálica no século IV da nossa era. Apesar de muito pouco se saber sobre tal figura, é-lhe atribuída a fundação da cidade actualmente conhecida por Dunshaughlin, no condado de Meath, na República da Irlanda, desenvolvida em torno da igreja supostamente mandada erigir por sua ordem. De facto, o nome primitivo da cidade de que é padroeiro é Domnach Sechnaill, em que o termo Domnach será uma adaptação gaélica de dominicum, pelo que uma tradução possível seria "Igreja de Sechnall" (ou, como sabemos, Segundino). Por esta via, a ligação parece ser válida.
A tradição medieval sempre o considerou um discípulo de São Patrício e um dos primeiros bispos de Armagh, embora estudos recentes tenham vindo a colocar em causa aquilo que outrora foi uma inabalável certeza. Existem documentos que atestam realmente a chegada à Irlanda de três bispos em auxílio de São Patrício (certas fontes indicam que o auxiliado seria São Paládio, curiosamente um provável lapso comum na época), sendo um deles um homem com o mesmo nome, Secundinus. Corria o ano de 439. Não obstante, essa nova corrente de estudos indica que, embora contemporâneos, ambos não se cruzaram em seus respectivos trabalhos de evangelização, estando Segundino junto de Paládio (Palladius), o primeiro bispo da Irlanda, que posteriormente dirigiria uma comunidade cristã na Escócia, onde faleceu. É provável que a associação tenha surgido pela mão dos primeiros historiadores da cidade de Armagh, intentando a promoção do seu próprio patrono (e da localidade em si, obviamente). 
Em todo o caso, é seguro afirmar que São Segundino é o autor deste hino de louvor a São Patrício, o primeiro, segundo alguns especialistas, a ter sido escrito na Irlanda. Segundino viria supostamente a falecer em 447/48, aos 75 anos de idade, tornando-se assim o primeiro bispo católico a sucumbir em solo irlandês. 






(S. Patrício, afugentando as cobras da Irlanda - segunda a crença popular)




terça-feira, 7 de março de 2017

CARRICKFERGUS


Como desejaria estar em Carrickfergus (1),
em Ballyagran (2) por noites de esplendor.
O oceano mais profundo atravessaria,
para então encontrar o meu amor.

Vastas são as águas, não consigo cruzá-las;
para voar, asas é algo que não poderei ter.
Encontrasse eu um barqueiro habilidoso,
para me levar ao meu amor e então morrer…

Em Kilkenny (3), lá assim está escrito
em mármore negra como noite perdida:
com ouro e pratas a teria sustentado.
E não mais cantarei até ter uma bebida!

Ébrio, de novo; raramente vivo sóbrio,
um vadio solitário deambulando sem parar.
Estou enfermo, tenho os dias contados:
venham todos, jovens! Preciso repousar.



Anónimo. (4)





(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão apresentada por Dominic Behan (1928 - 1989), com a indispensável consulta de outras, tidas como a génese deste tema.)


(Nota: Devido à sua universalidade, existem imensas versões desta belíssima e melancólica balada, oferecidas por nomes tão díspares em estilo como os The Dubliners, Joan Baez ou Van Morrison. Pela doçura da voz que interpreta esta versão em particular como se se tratasse de uma canção de embalar, sugere-se o trabalho realizado por Kate Crossan - que aqui poderá escutar a partir do minuto 04:58 do vídeo que colocamos à sua disposição:





(1) Carrickfergus é uma cidade portuária situada no Condado de Antrim, na Irlanda do Norte, a poucos quilómetros de Belfast, a capital. O seu nome parece derivar do gaélico Carraigh Fhearghais, que significa "O Rochedo de Fergus". Embora a primeira palavra se tenha depreciado na sua passagem para a língua inglesa em "Carrick", significando "pedra" ou "rocha", é igualmente um indicativo de algo sólido, forte e robusto, pelo que no contexto ofertado a tradução correcta será "O Castelo de Fergus". 
A cidade é deveras antigas, sendo inclusivamente das mais antigas em toda a Irlanda. Portanto, não se estranha a referência a Fergus Mór, Fergus o Grande, um possível rei dos Dál Riata, uma tribo dos Escotos - nome genérico, pois inicialmente era apenas usado para nomear os saqueadores que falavam o dialecto local, dado pelos romanos ao povos gaélicos que habitavam a região. 
Todas estas referências datam do século V da nossa era, época em que o referido reino se terá expandido desde o norte da Irlanda até à costa oeste da Escócia, um território então pertencente aos Pictos (ambos fundir-se-iam, décadas depois). Diversas fontes, inclusive, afirmam convictamente que Fergus terá sido o legítimo fundador da Escócia enquanto nação, dado que o seu primeiro rei, Kenneth I, e seus descendentes, afirmaram a sua incorrupta ligação a Fergus, algo que acontece até aos dias de hoje. Curiosamente, a Escócia obteve o seu nome graças à presença irlandesa no território, dado que os seus ancestrais eram, como falámos, Pictos e não Escotos. Ora vejamos: "A Terra dos Escotos (Scots)" - Escócia / Scotland. 
Recentemente, o Príncipe William de Inglaterra obteve o título de Barão de Carrickfergus por ocasião do seu casamento.


(2) Esta poderá ser uma das primeiras grandes incongruências desta bonita canção. Na prática, o nome que aqui originalmente se usa a nada se refere. Assumiu-se como base a versão de Behan, como antes foi referido, e nela o autor utiliza o nome "Ballygrand", que na verdade não existe. Noutras versões nota-se o uso de "Ballygrant", facilmente confundível com esta fantasma "Ballygrand", sendo a primeira uma pequena vila na ilha escocesa de Islay, não longe do topo norte da Irlanda Britânica. Fará o seu sentido, claro, embora o mais provável seja a referência a "Ballyagan", um pequeno subúrbio de Carrickfergus. Na tentativa de obter uma versão mais acurada de acordo com as informações obtidas pela nossa pesquisa, procedeu-se à mudança do nome inicialmente usado.


(3) Outro caso idêntico ao anterior, ou seja, provavelmente resultante de um erro ocorrido no processo de escuta e registo escrito da canção. Não que o original "Kilkenny" não exista, pois trata-se de uma cidade situada no coração da República da Irlanda, tendo sido a sua capital medieval. É famosa pelas suas negras pedras que adornam casas e pubs, mas pelo contexto da canção, nem sempre claro, surge a possibilidade de a referência ser a Kilmeny, na Escócia, precisamente uma localidade situada a pouco menos de 1.5 Km de... Ballygrant. Desta vez, decidiu-se não alterar a forma usada por Behan. (No ponto seguinte iremos explorar melhor todas as teorias acerca das localidades correctas e quais as mais honestas origens desta canção.)


(4) Se o caro leitor já teve a oportunidade de ler os pontos anteriores, certamente compreenderá que esta balada irlandesa tem raízes bastante obscuras. De facto, Behan registou-a e declarou a sua autoria, tendo ainda acrescentado-lhe duas quadras (ou uma oitava, como por vezes o poema surge composto). É provável que o tenha feito devido à narrativa inconsistente que o poema em inglês apresenta, traço esse que nesta versão traduzida tentou-se igualmente diminuir. Contudo, por terem sido posteriores, não se procedeu à tradução das quadras introduzidas pelo músico irlandês, versadas na sua maioria em saudosas evocações da possível infância de quem a cantar conta a história.
Behan admitiu que escutou o tema pela boca do famoso actor Peter O'Toole, que a considerava uma das suas baladas preferidas. E como este a escutou no tempo em que vivia em Kerry, julgou que a música teria nessa cidade as suas origens. Então, na década de 60 Behan registou-a com o nome de "The Kerry Boatman" ("O Barqueiro de Kerry"). Mas nada disto tem um fundo real quanto às possíveis origens da canção, somente quanto à confusão que ela traz em si, dado o seu registo ter surgido através do escutar do tema cantado e O'Toole ter confessado não se recordar totalmente do modo correcto de todos os versos que a compunham, já que se tratava de um tema que escutara na sua infância. Isto explicaria as possíveis trocas de "Ballygrant" por "Ballygrand", por exemplo. Mas não só. A segunda linha da canção parece estranha: «Only for nights in Ballygrand» (literalmente: «Apenas pelas noites em Ballygrand»). Contudo, o inglês "for nights" assemelha-se verbalmente a "four nights", que significa "quatro noites". Quer isto dizer que o seu primeiro autor referia-se não aos encantos da noite em Ballyagan ou Ballygrant mas ao desejo de estar "quatro noites apenas" nesse lugar, junto do seu amor? É bem possível. No fim da segunda quadra, que serve de refrão musical ao tema, o mesmo se sucede, e ainda hoje existem versões cantadas que divergem neste ponto: «my love and die» - «meu amor e morrer» ; «my love and I» - «o meu amor e eu». Decerto, graças à preciosa tradição oral, muitas palavras foram mal interpretadas, e ano após ano foram ganhando um outro sentido, independentemente do seu cantor. Outro exemplo: perto do fim, a maioria das versões utiliza a expressão "handsome rover" ("vadio bem-parecido"), mas sabendo da semelhança com "lonesome" ("solitário"), e visto este termo dar um melhor sentido ao texto, por ele se optou. É importante não esquecer que muitos destes temas passavam de boca em boca pelos camponeses, gentes obviamente iletradas que facilmente poderiam ter confundido termos e localidades. Nesta tradução, possivelmente tão válida como qualquer outra versão, teve-se em conta tais lapsos e equívocos, daí que se tenham analisado as diversas versões existentes e, assim, retirado o que pareceu ser o mais coerente de todas elas.
O mais provável é o tema ter resultado da fusão de duas ou mais canções distintas, daí o seu cariz algo fragmentado. A parte sobre as "vastas águas" e o não possuir "asas para voar" é uma cópia quase exacta da canção "The Water is Wide" ("É Vasta a Água"), também creditada como "There Is A Ship" ("Existe Um Navio"), cujo sonoridade, a dado momento, em pouco difere do timbre de Carrickfergus. Portanto, compreende-se como Behan deu a este tema um tom próprio, uma maior coerência e transparência, mas não poderá ser considerado o seu autor legítimo - daí a opção em designá-lo por "anónimo".

As primeiras referências a esta canção surgem a partir de uma outra de nome "Do bhí bean uasal", gaélico para "Havia uma Nobre Senhora". Este tema é da autoria do poeta Cathal Ghunna, que viveu entre os sécs. XVII e XVIII. O problema parece surgir quando se intentou a tradução do gaélico para o inglês, já que na cidade de Cork, na Irlanda, surgiu nos seus arquivos, e datado do século XIX, um documento que continha em forma macarrónica os versos desse poema em gaélico com intercalações em inglês, de cuja a autoria se desconhecia. Não seria, portanto, o poema original em gaélico, mas uma versão do mesmo, misturando alguns versos em inglês. É aqui que surge o nome "Carrickfergus" no título, tanto que outras versões traduzidas do poema em gaélico utilizam o nome "The Young Sick Lover" ("O Jovem Amante Enfermo"). Apesar de nestes textos não existir qualquer referência a Kilkenny, Ballygrant ou sequer a um barqueiro, algumas linhas apresentam uma semelhança incrível - nomeadamente a que aqui surge como abertura, embora não refira "I wish I was", antes "I wish I had you" ("Gostaria de te ter tido"). No entanto, o poema em gaélico fala sobre traições do foro amoroso, enquanto que as primeiras linhas que foram surgido em inglês atribuem uma toada mais nostálgica ao tema. Ainda assim, pelo menos mais duas canções foram identificadas como possível inspiração para este "Carrickfergus" tão fragmentado e de tão dúbio nascimento. Porém, os estudiosos sugerem que em plena Revolução Industrial o comércio do linho intensificou-se entre os condados de Antrim, lugar de Carrickfergus, e o de Cork, e que dessa interação comercial e humana a canção se tenha imiscuído no coração dos Homens e, assim, ganho o seu traçado macarrónico, tornando-a numa completa amálgama literária.
Para terminar, importa desvendar uma possível interpretação do texto, segundo os parâmetros adoptados. E ela dever-se-á ao nome dos locais referidos. Desde logo, foi tido como mais credível o trovador referir-se a Ballyagran do que a Ballygrant, dada a distância deste de Carrickfergus, o que torna pouco provável que desejasse estar em dois locais distintos ao mesmo tempo. O poema parece falar sobre um amor perdido, acontecimento esse que fez o narrador enveredar por uma vida vadia e de abuso de álcool. Aliás, o modo como aqui a canção aparece escrita lembra uma daquelas histórias contadas nas tabernas (pubs) de então, coisa em que os irlandeses eram (e são) costumeiros. Contudo, surge o possível equívoco entre Kilkenny e Kilmeny. Ainda que ambas, curiosamente, tenham associação com mármores negras, em Kilmeny existe um cemitério junto da igreja paroquial com lápides feitas desse material, o que sugere que naquelas linhas do texto, pouco claras em inglês, o narrador se esteja a referir ao epitáfio presente na campa da sua amada. E esse bem que poderia ser um desejo que este lhe havia confidenciado, uma promessa nunca cumprida por ocorrência da sua morte: sustentá-la com ouro e pratas. E aqui surge outro dado que poderá reforçar esta ideia: Ballygrant foi um centro de grande actividade mineira, essencialmente cobre ("led") e prata. Teriam sido estes os elementos originalmente cantados? Por outro lado, Kilkenny foi um importante centro de exportação de mármores, e por lá ainda se conta a história de um jovem inglês oriundo do norte (e Carrickfergus fica bem a norte de Kilkenny), talvez um soldado ou trovador, que em suas viagens se perdeu de amores por uma donzela local. Terão havido promessas de casamento, mas quando regressou a sua amada teria entretanto falecido. Estaria agora, passados tantos anos, a contar a sua triste história? E que verdade ela detém? É difícil de saber, tão confusa é a história por detrás da canção. Talvez se ainda existisse tal campa, se é que algum dia chegou a existir, todas as dúvidas se dissipariam. Por ora, o melhor mesmo será desfrutar da sua vibrante melodia e deixar que o coração viaje pelos insondáveis caminhos dos sentimentos humanos.










(Pormenor nocturno do castelo de Carrickfergus)