terça-feira, 26 de novembro de 2019

PASSEANDO-SE PELA FEIRA


O meu amor disse: Meus irmãos não se importam,
Nem tuas parcas maneiras para os meus pais contam.
Então de mim se afastou, não sem deixar o seu sentimento:
Não demorará muito, amor, até ao dia do nosso casamento.

De mim se afastou, assim se passeando pela feira;
Com carinho vi-a ir a todo o lado, de toda a maneira;
E então para casa seguiu, uma estrela sobre ela cintilava,
Qual cisne¹, à tardinha, que sobre um lago deslizava.

As pessoas diziam que nunca um casal se casou
Sem que um deles tivesse um lamento que calou;
E eu sorria, enquanto de cesto cheio ia em seu rubor.
E essa foi a última vez que eu vi o meu amor.

Sonhei na última noite com ela falando-me ao ouvido;
Veio tão suavemente, seus passos sem qualquer ruído.
E assim, tão perto de mim, deixou-me o seu sentimento:
Não demorará muito, amor, até ao dia do nosso casamento.





Padraic Colum (1881 - 1972)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês antologiado em "Irish Poems", Everyman's Library, 2011.)  










(São várias as versões que ao longo das décadas diversos artistas elaboraram, cada um retirando versos ou acrescentando palavras a seu gosto. Daí que seja, actualmente, difícil encontrar uma versão totalmente fiel ao texto original. Aquela que se sugere de seguida segue, infelizmente, esse princípio desviante. Contudo, não se expurga do elemento principal: a beleza quase medieval do tema, apesar de nem ser, de longe, uma das mais divulgadas. (Uma certa obscuridade da sua intérprete justificará tal facto.)
Poderão escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=GalawYpYOP8 )







(1) - Existe uma lenda do misticismo gaélico irlandês que explica o simbolismo desta graciosa ave: quando as jovens donzelas morrem em tão tenra idade a sua alma transforma-se em cisne. É, pois, um modo muito subtil de dar a entender que a jovem amada acaba, tragicamente, por falecer. A visita que faz ao seu amado, explicada na última quadra do poema, é uma visita realizada em espírito, onde deixa a promessa do seu ansiado casamento ocorrer finalmente no único lugar agora possível: o que quer que exista depois da vida terrena. Uma promessa, talvez, de eternidade na única dimensão onde ela será possível.






Breves notas: Apesar de Colum ter reclamado a autoria deste poema, a História provou que tal direito não será totalmente autêntico. O famoso escritor irlandês admitiu, porém, ter construído o poema em torno de um verso popular, retirado a uma canção antiga: aquele que encerra a primeira e a última quadra. Contudo, existem evidências de que terá baseado a sua criação num tema chamado "I Once Had a True Love" ("Em Tempos Tive Um Verdadeiro Amor"), que ostenta expressões muito similares às escritas neste poema. Não sendo o bastante, num outro, de nome "My Young Love Said to Me" ("O Meu Jovem Amor Disse-me"), encontramos prova de uma inspiração que não levanta dúvidas. As principais denúncias ocorreram pela boca de Paddy Tunney (1921 - 2002), um poeta e cantor tradicional da Irlanda, também intérprete de ambos os temas.
No fundo, este tipo de expropriação, digamos assim, sem qualquer intenção perjurativa, é bastante comum nos domínios da canção tradicional. Não se sabe o que terá acontecido ao certo, o mais provável é Colum ter escutado a canção e a partir dela ter construído uma nova. O que se sabe é que o autor, juntamente com o musicólogo seu amigo Herbert Hughes, colectou excertos deste tema algures no condado de Donegal, no norte da Irlanda.
Foi publicada pela primeira vez em 1909 num livro que o músico editou, o fruto da pesquisa de ambos, e em 1916 Colum juntou-o a uma obra sua, mas sem qualquer referência ao tal verso que seria de origem popular (muito menos aos demais de outros temas que inegavelmente lhe serviram de inspiração.)

Sobre a melodia em si, a que Hughes colectou, não se sabe ao certo a origem, mas pela sua peculiar composição supõe-se que seja bastante antiga. Existem indícios dos seus acordes na Irlanda e na Escócia, pelo que com segurança se afirma ser mãe de vários temas distintos (a mesma melodia, letras diferentes.)








(SHE MOVED THROUGH THE FAIR (em recorte)
Padraic Woods Rua (1893-1991)) 



terça-feira, 12 de novembro de 2019

MIL-FOLHAS (Um feitiço popular)


Irei colher a bonita mil-folhas¹,
e mais afável será o meu rosto,
e mais calorosos os meus lábios,
e mais casta a minha voz.
Seja a minha voz os raios do sol,
sejam meus lábios o sumo do morango.

Possa eu ser uma ilha no mar,
possa eu ser uma colina na costa,
possa eu ser estrela no minguar da lua,
possa eu ser um cajado para os fracos;
ferir poderei eu todo o homem,
nenhum homem poderá ferir-me.






Anónimo (da tradição popular escocesa.)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa do original em gaélico editado no segundo volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de feitiços e encantamentos populares colectados por Alexander Carmichael.) 
















(1) Trata-se da achillea millefolium, também conhecida por milefólio ou erva-dos-carpinteiros, uma espécie pertencente à família das margaridas e dos crisântemos, por exemplo - a Asteraceae
É comummente tida por uma erva com propriedades instigadoras de um bom casamento, com fidelidade e fertilidade em abundância - além das suas vastas aplicações medicinais (essas sim, já a ciência pôde medir.) 
Os celtas, contudo, na sua maioria viam nesta erva um depósito de força e vitalidade, um manancial de propriedades mágicas. É, pois, curioso constatar que este poema, de modo algo oculto, parece indicar uma delas, talvez a mais desconcertante de todas: a capacidade de mudar de forma. Embora os primeiros versos do poema pareçam apenas aludir a uma magia de embelezamento, os restantes indicam uma capacidade de transformar o "eu", que sabemos humano, em algo mais - não só paisagem ao nível físico, mas algo além de um mero homem. Uma simples metáfora?
Se quisermos desenvolver um pouco este tema, nem que seja apenas para satisfazer curiosidades, poderemos revelar um dos nomes populares que na região britânica e irlandesa à erva dão: cauda-de-lobo. Assim é por assim parecer, de facto, mas quando combinada a esta capacidade de mudar de forma... o caso torna-se mais místico. Pois vários estudiosos do oculto associam o nome e as capacidades da planta aos... lobisomens. Que, é importante esclarecer, naquelas paragens não tinham a conotação negativa que hoje conhecemos - essa herdámos das lendas germânicas. Na Irlanda, os homens com capacidade de se transformarem em lobos eram vistos como guardiões de crianças, feridos e caminhantes perdidos (recordemos o seguinte verso: «possa eu ser um cajado para os fracos».) Criaturas afáveis e prestáveis, portanto. E tudo por obra das ditas ervas? Bem, não está escrito que quem comer um mil-folhas se transforma em lobo, apenas que homens com essa capacidade e a dita planta partilham do mesmo talento: a alteração da forma primitiva. Mas convenhamos... Este poema é, acima de tudo, um feitiço por extenso, e quem o escreveu, pelo desejo de invencibilidade que no fim passa, bem queria ser mais do que era...   
Na verdade, a própria planta é bastante polimórfica, ao ponto de poder exalar aromas diferentes se cultivada em diferentes áreas. Uma rosa na China é uma rosa em Espanha, com cada tipo a possuir o mesmo perfume, mas uma frágil mil-folhas altera o seu aroma consoante a região em que cresce. Quem sabe se não foi essa característica a estimular a imaginação dos celtas?









(Fonte: Pinterest.com)