segunda-feira, 16 de maio de 2022

A DONZELA DE LLYN-Y-FAN (3ª e última parte)

 
Passado um ano, o casal foi convidado para ir a um casamento. Durante o momento mais alegre e festivo da cerimónia, Nelferch começou a chorar, para grande surpresa de Gwyn. Com carinho, este aproximou-se da mulher e deu-lhe uma palmadinha suave no ombro, exclamando:

- Então, então, porque choras neste momento tão feliz?

Ela respondeu:

- Choro porque os problemas deles estão agora a começar. E choro porque acabaste de me dar a segunda palmada sem motivo. 

E abandonou a cerimónia em pranto. A partir dessa altura, Gwyn redobrou a cautela: mais uma palmada e perderia a esposa para sempre.

Decorreu mais um ano, e Gwyn e Nelferch foram assistir a um funeral. No momento mais triste da cerimónia, quando todos choravam de dor e de saudade, Nelferch irrompeu em gargalhadas ruidosas para grande surpresa dos presentes. Gwyn chegou junto da mulher e, sem pensar, deu-lhe uma pancadinha no braço, dizendo:

- O que se passa? Porque ris tanto neste momento tão triste?

Ela respondeu:

- Rio porque terminaram finalmente os problemas daquele que morreu. E terminou também o nosso casamento, pois acabaste de me dar a terceira palmada sem motivo. Adeus, Gwyn, adeus para sempre!

E com estas palavras Nelferch abandonou o marido, levando consigo os animais que tinha trazido como dote. Seguiram na direcção do lago e, assim que lá chegaram, desapareceram sob as mesmas águas de onde tinham surgido. 

Gwyn ficou desesperado e foi muitas vezes até junto do lago, mas não voltou a ver a mulher. Também os filhos de ambos sofriam pelo afastamento súbito da mãe; até que um dia, esta apareceu ao filho mais velho, quando ele vinha a passar junto à chamada "Estrada do Curandeiro". E disse-lhe que vinha revelar-lhe qual a sua missão no mundo:

- Curarás os doentes e ajudarás todos aqueles que necessitarem de ajuda.

E, dizendo isto, entregou ao filho uma sacola que continha os segredos das ervas e das plantas:

- Aqui tens tudo o que precisas de saber sobre a arte de curar. Este conhecimento será utilizado por ti e pelos teus irmãos. 

Os três irmãos seguiram as instruções da mãe e tornaram-se nos três mais famosos médicos do País de Gales, conhecidos como os Meddygon Myddfai¹. Por causa da sua arte, receberam bens privilégios, tornando-se prósperos. E deram origem a oito gerações de curandeiros cuja fama e renome se mantiveram por muitos e longos anos. 






(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo", provavelmente originado no século XIII.)







(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)













(1) Apesar do cariz fantasioso do conto, estes "curandeiros de Myddfai" são figuras reais. Conceituados herbalistas do século XII / XIII, não terão tido o grau de parentesco que o conto lhes atribui. Na verdade, a história regista um curandeiro e os seus três filhos, que tornaram-se os médicos pessoais dum príncipe daquela região galesa. A sua fama era tal que, graças aos bons efeitos das suas práticas, lograram adquirir terras e gado - a paga de muitos pacientes agradecidos. O seu conhecimento foi passando de geração em geração, sempre por linhagem masculina, até, diz-se, ao ano de 1739, quando faleceu o último dos seus representantes, um tal de John Jones. 
Algures pelo caminho de tão longos anos, crê-se que a população local terá criado esta história fantástica como modo de explicar os enormes talentos curativos que aquela família parecia ter. Eram tão extraordinários que algum membro, lá bem atrás, só poderia ser descendente de fadas. E assim temos a nossa donzela, uma fado do lago, como a matriarca de tamanho talento curativo. 
No entanto, o que não compreendiam é que os tempos medievais foram épocas de grande florescimento cultural, comprovado pela fundação das primeiras universidades e escolas monásticas. A medicina, portanto, não perdeu o seu lugar nesse fluxo de descobertas e transmissão de conhecimentos. A localidade de Myddfai foi um desses lugares, graças ao apoio financeiro dum príncipe galês, dirigido aos mosteiros da zona. É, assim, muito provável que o primeiro membro desta família de famosos curandeiros tenha obtido a sua instrução dos monges locais e dos vários livros que chegavam frequentemente àquelas paragens, para tradução e cópia. 
Os seus conhecimentos terão sobrevivido aos séculos. Crê-se, com algum fundamento, tratarem-se dos que se compilam num livro do século XIV, de seu nome The Red Book of Hergest. 













(Fonte: wiccanow.com)




quinta-feira, 5 de maio de 2022

A DONZELA DE LLYN-Y-FAN (2ª Parte)


Na manhã seguinte, Gwyn regressou às margens do lago com o seu gado. Mais uma vez, esperou quase até ao anoitecer e, quando se preparava para regressar a casa, já sem esperança de voltar a ver aquela que amava, olhou por cima do ombro e avistou a donzela a pentear os cabelos, sentada na planura das águas.

- Senhora - disse ele -, se não me deres o teu amor nada mais me resta senão morrer.

E estendeu-lhe o pão e o queijo do lanche. Desta vez, ela veio até junto dele e aceitou a oferta, com um sorriso. Gwyn reparou que o laço de um dos seus sapatos estava solto. E ficou louco de alegria quando ela lhe disse:

Na perfeição este pão cozeu.
O meu coração é agora teu.

E acrescentou:

- Mas lembra-te, se durante a nossa vida de casados me deres três palmadas sem motivo, desaparecerei para sempre.

A donzela voltou a mergulhar no lago para grande consternação de Gwyn, que julgou que, mais uma vez, ela iria desaparecer. Contudo, alguns segundos depois, surgiu do meio das águas um homem de porte nobre, com um manto de seda branco preso com alfinetes de outo. Com ele vinha a donzela do lago e, para grande surpresa do jovem, uma outra mulher em tudo igual à primeira. Nesse instante, o homem falou:

- Sei que queres casar com uma das minhas filhas. Pois bem, se me disseres qual das duas é a mulher que amas, não terei problemas em consentir que ela case contigo.

Gwyn ficou muito atrapalhado porque as duas irmãs eram iguais como duas gotas de água. Olhou de uma para a outra, sem saber o que dizer, pois era-lhe impossível distinguir uma da outra. E, no momento de maior desespero, quando pensava que tudo estava perdido, uma das raparigas mexeu um dos pés de forma quase imperceptível, e o seu sapato apareceu debaixo do vestido. O jovem olhou para baixo e reparou que o laço que atava o sapato estava solto. Lembrou-se de imediato que havia notado esse pormenor, instantes atrás, quando a donzela do lago tinha vindo até junto dele para aceitar o seu pão. E então apontou para ela e afirmou com segurança:

- Esta é a mulher que eu mais amo neste mundo.

O homem entregou a filha a Gwyn e, com ela, o seu dote, constituído por quantas cabeças de gado ela conseguisse contar sem respirar. Mas não partiu sem antes deixar um aviso:

- Se durante a vossa união bateres por três vezes na minha filha, mesmo que seja sem querer, se lhe deres três palmadas sem motivo, perdê-la-ás para sempre, assim como o dote.

A um sinal do pai, a donzela do lago fechou os olhos, inspirou fundo e começou a contar. À medida que contava, saíam do lago vacas, ovelhas, cabras e cavalos. Quando a donzela perdeu o fôlego, os animais juntaram-se atrás dela e partiram para a sua nova morada, numa quinta em Esgair Llaethdy¹.

Os anos passaram e o casal vivia em grande felicidade e prosperidade. A seu tempo, foram abençoados com três belas crianças. Quando o filho mais velho atingiu os sete anos de idade, Gwyn e Nelferch, que era o nome da donzela do lago, foram convidados para ir ao baptizado do filho de um dos vizinhos. Mas Nelferch não queria ir porque a casa dos vizinhos ficava longe e o caminho era sempre a subir. Quando chegou a altura de saírem de casa, ainda ela não estava vestida e Gwyn repreendeu-a:

- Vamos, despacha-te. Se não queres ir a pé, vai buscar os cavalos e trá-los até à porta.

- Está bem, disse ela. Mas esqueci-me das luvas. Podes ir buscar-mas ao quarto?

- Sim, claro, mas despacha-te. Estamos atrasados, respondeu Gwyn. 

Quando regressou com as luvas, verificou que ela não se tinha mexido e continuava por vestir. E então, para que ela se apressasse, pegou numa das luvas e bateu-lhe com suavidade no ombro, dizendo:

- Vá lá, vá lá, veste-te.

Para sua surpresa, ela afirmou:

- Então, marido, esqueceste-te da tua promessa? Acabaste de me dar a primeira palmada sem motivo. Tem atenção para não me dares a segunda.

Gwyn ficou preocupado quando percebeu que um gesto tão inocente poderia ser considerado uma palmada sem motivo e, por essa razão, jurou a si mesmo ter mais cuidado.


(Continua...)







(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo", provavelmente originado no século XIII.)










(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)











(1) Pequena localidade do condado de Carmarthenshire, paróquia de Myddfai, a cerca de dez quilómetros do lago donde a donzela emergia.  











"Lamia",
de John Williams Waterhouse
(1849 - 1917)


sexta-feira, 29 de abril de 2022

A DONZELA DE LLYN-Y-FAN (1ª Parte)


Há muito, muito tempo, no condado de Carmarthen, no sul de Gales, vivia um homem e a sua mulher numa pequena quinta. Porém, o homem morreu numa batalha e, com ele, morreram também três dos seus quatro filhos. A viúva fez tudo para proteger o único filho que lhe restava e ensinou-o a cuidar da quinta e a tratar do gado, para que ficasse longe das guerras. O rapaz, que se chamava Gwyn, tornou-se no melhor agricultor e pastor da região e, quando cresceu, tornou-se um homem belo e robusto. 

Um dia, Gwyn levou o seu gado até às margens do lago Llyn-Y-Fan¹, onde a erva era mais tenra e saborosa. Sentou-se junto ao lago e acabou por adormecer. No seu sonho ouviu uma voz doce e melodiosa que, convidando-o a olhar para o lago, acabou por acordá-lo. Gwyn esfregou os olhos e ficou estupefacto quando viu, sentada na superfície do lago, a mulher mais bela do mundo. A sua pele era tão branca como a espuma das ondas, os seus olhos mais azuis do que a mais azul das flores, a boca mais vermelha do que a flor da dedaleira e o cabelo tão louro e brilhante que reflectia a luz do sol. A mulher estava a pentear o cabelo com um pente dourado, utilizando a superfície do lago como espelho. O dia estava tão límpido e claro que a sua imagem reflectida na água parecia real, e Gwyn ficou, de imediato, perdidamente apaixonado por aquela mulher tão bela. Devagar, com medo que ela se afastasse, aproximou-se da água e ofereceu-lhe o pão e o queijo que a sua mãe lhe tinha mandado para o lanche. Ela abanou a cabeça a recusar a oferta e dos seus lábios saiu a mesma voz que Gwyn ouvira no sonho:

Muito duro é o teu pão,
esperarás por mim em vão.

Assim que acabou de proferir estas palavras, mergulhou nas águas do lado e desapareceu. 

Gwyn ficou desolado e esperou pelo final do dia junto ao lago, na esperança de que ela voltasse a surgir. Mas isso não aconteceu e o jovem regressou a casa, triste e cabisbaixo. Ao vê-lo naquele estado, a mãe perguntou-lhe o que o afligia e ele contou-lhe tudo o que se tinha passado. Então, concordou que o pão que lhe tinha mandado era duro, e logo se apressou a cozer um outro com uma massa diferente, para que saísse mais tenro. 

No dia seguinte, Gwyn voltou ao lago com o pão e esperou impacientemente que a donzela aparecesse. As horas foram passando sem que nada acontecesse, mas, quando o jovem estava prestes a regressar a casa, a donzela reapareceu à superfície do lago a pentear os seus longos cabelos louros. Parecia ainda mais bela do que no dia anterior e Gwyn sentiu um nó na garganta. Ainda assim, conseguiu dizer-lhe: 

Senhora, há alguma coisa que possa fazer para que saias desse lago e venhas viver comigo?

E ofereceu-lhe o pão que levava consigo. Mas, mais uma vez, ela recusou o pão, afirmando:

Muito tenro é o teu pão,
não terás o meu coração.

E, dito isto, desapareceu de novo nas águas límpidas do lago. 

O jovem voltou a contar tudo à mãe, que lhe disse que, de facto, tinha cozido mal a massa do pão e que, por isso, ela tinha ficado demasiado tenra. Nessa noite, a viúva preparou nova massa e cozeu-a à temperatura ideal, de modo que o pão ficou com a consistência perfeita.


(Continua...)





(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo", provavelmente originado no século XIII.)









(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)









(1) O Llyn-Y-Fan-Fach é um lago com certa de dez hectares, situado no condado de Carmarthenshire, no sul do País de Gales. Encontra-se na margem norte da Montanha Negra, actualmente incluído no Parque Nacional Brecon Beacons.










("Lady of The Lake",
de Astrid Bruning)


quinta-feira, 17 de março de 2022

HINO EM LOUVOR DE SÃO PATRÍCIO (excerto) - Parte II

 
Dominus, Deus e Senhor, a ele escolheu
Para ensinar a Boa-Nova aos povos bárbaros
E ser pescador de nações e homens
Lançando a rede da santa doutrina,
Livrar os crentes dos grilhões do mundo,
Revelar a graça que os aguarda
Quando seguirem o Senhor Deus
Pelo caminho da sua etérea alta morada.

***

Ele escolheu os melhores homens da Irlanda inteira
Para aprenderem e transmitirem
Os Evangelhos e a palavra de Jesus Cristo.
Foi um trabalho longo e penoso e solitário
Que levou a cabo com isenção e bom juízo.
Em recompensa da longa viagem pela Irlanda
Há-de gozar a alegria de contemplar
O Cristo em glória no sempiterno reino dos Céus.

***

Fiel servidor e eminente mensageiro
Da palavra de Deus e da vera doutrina,
Ele deu aos homens de boa vontade
O perfeito exemplo de apostolado e recta conduta.
Ao povo de Deus ele pregou por feitos e obras
E pregou também pela palavra e pelo conselho;
E àqueles que o seu discurso não convertia
Ele inflamava pela sua acção e sua presença. 



São Segundino (séc. V) 










(Tradução de José Domingos Morais, in "O Grito do Gamo - Poemas Celtas da Fé e do Sagrado", Assírio & Alvim, 2004.)









(Nota: Este excerto foi retirado dum conjunto de vinte e três estrofes, devidamente enumeradas e em epígrafe iniciadas por certos adjectivos ordenados alfabeticamente, de acordo com a disposição do alfabeto latino (a saber: Audite, Beata, Constans, Dominus, etc...). Torna-se claro que, sendo um hino, cada adjectivo representa uma virtude associada a São Patrício, o santo padroeiro da Irlanda.)











(Gravura de São Patrício, de autoria desconhecida, exposta na igreja de Miami Beach, nos Estados Unidos)



terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O LAMENTO DE PADDY (*)

 
Sosseguem, rapazes, agora,
Fiquem em silêncio nesta hora,
Pois o que tenho a contar deverão ouvir.
Estava eu pela fome agitado
E pela pobreza angustiado,
Quando decidi da Irlanda partir.
Vendi o cavalo e o arado que tinha,
As ovelhas, os leitões e uma porca minha;
Toda a quinta abandonei então,
E a minha Biddy McGee, bem-amada - 
Que não voltará a ser beijada,
De tão partido que lhe deixei o coração.

Eu e outra centena igual a mim
Para a América num navio seguimos enfim,
Pensando na fortuna que iríamos amealhar.
Quando em terra ianque chegámos salvos e sãos,
Logo um mosquete nos puseram nas mãos,
Dizendo: Paddy, tens de ir e por Lincoln¹ lutar!
Prometeu Meagher², um General do regimento:
Se for alvejado ou sofrer maior tormento,
Todo o soldado receberá uma pensão.
Bem, na guerra uma perna acabei por perder
E com um pino de madeira terei agora de viver.
Juro ser verdade: no dinheiro devido nunca pus a mão!

Considerar-me-ia um felizardo
Por ter o sustento num pequeno veado
E na Irlanda, a terra do meu contentamento.
Mas pelo Diabo digo, sem a língua travada,
Seja a América amaldiçoada!
Já me fartei de tanta guerra e sofrimento.

          Escutem, rapazes, sigam o meu conselho:
          Não venham para a América, seja novo ou velho!
          Só tem guerra para vos oferecer
          E o rugido dos canhões que nos faz enlouquecer.
          Como em casa desejaria estar,
          Na amada Dublin³, além-mar…

 


(Anónimo)

 






(Versão de Pedro Belo Clara a partir das versões mais comuns do tema. Um desses exemplos poderá ser escutado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=v55klRtHNZQ )





(*) Apesar de se encaixar num contexto muito específico, o texto escolhido para esta nova publicação do blogue não deixa de ser uma extensão do tal coração celta que se pretende fazer escutar através dos poemas e canções neste espaço apresentados. 
Como se depreende após a sua leitura, o poema retrata a figura dum irlandês que exorta os seus conterrâneos a ficar no país natal e a não emigrar, assim, para a América, dado não ser o paraíso que poderiam pensar. Afinal, o país encontrava-se nessa altura imerso numa guerra civil e todo o emigrante que ali chegasse era de pronto recrutado e forçado a combater pela União (o Norte, digamos, o lado afecto ao presidente Lincoln, que lutava, pondo isto de modo simplista, pela abolição da escravatura). Era possível escapar ao recrutamento pagando uma determinada soma, mas esse valor, se era acessível a famílias abastadas, era incomportável para os mais pobres, especialmente os emigrantes que acabavam de chegar ao país. Assim, não haveria grande hipótese de fuga - até porque o respeito pelos irlandeses era, nesta altura, praticamente nulo, sendo notória a forma como ganhava expressão a típica estratégia utilizada quando a falta de homens é séria: a muito útil "carne para canhão". (E bem diferente poderia ter sido o desfecho do conflito se não fosse o precioso auxílio irlandês...)
Além disto, o Paddy que nos relata a sua triste vida no seio duma tremenda revolta e comoção interior, denuncia ainda as mentiras com que o exército tornava o recrutamento mais simpático: o caso, verídico, das pensões prometidas que nunca chegaram a ser pagas.
É esta, portanto, uma das mais célebres canções de protesto contra a guerra civil americana (embora possa extrapolar esse conflito em específico) e o tratamento desumano concedido aos emigrantes que naqueles anos chegavam ao país em número elevadíssimo, especialmente os irlandeses, que ainda sentiam as agruras da sua Grande Fome. Esclareça-se que o nome do narrador, Paddy, é o diminuitivo de Patrick, um nome na Irlanda tão comum quanto José, por exemplo, o é em Portugal (graças ao santo padroeiro daquele país, que respondia pelo mesmo nome). Assim, o poema ganha uma dimensão universal, já que este "Paddy" não passa duma personagem-tipo, um esboço onde centenas, se não milhares, de irlandeses emigrantes poderiam reconhecer o próprio rosto. 
Resta acrescentar que, como é comum nos cancioneiros populares, existem diversas versões deste tema, com maior ou menor número de referências em comum. A primeira parece remontar a 1864, da autoria de John R. Dix, um escritor inglês que vivia nos Estados Unidos, e que foi o autor dum poema chamado The Paddy Lament. Digamos, assim, que o Paddy's Lamentation aqui partilhado é uma espécie de versão anónima desse poema. Talvez pelo facto de ter ganhado o estatuto de canção, o texto presente tenha granjeado maior fama e, de certo modo, prevalecido no tempo. Porém, importa lembrar que o tema esteve por várias décadas adormecido até ressuscitar, já no século XX, no... Canadá, imagine-se. É gravado em disco pela primeira vez em 1961, graças a um emigrante inglês que escutara e aprendera o tema da boca doutros emigrantes, irlandeses, que encontrara no Canadá. Assim, o poema-canção adquire, aos poucos, uma dimensão nunca antes tida e acaba sendo redescoberto no país que o viu nascer, os Estados Unidos. 
Em 2002, no famoso filme Gangs de Nova Iorque, um excerto deste tema é interpretado, precisamente no momento em que vários irlandeses, envergando fardas da União, fazem fila para embarcar para uma zona de conflito. A cena é poderosíssima: enquanto uns embarcam, uma grua desembarca dum navio diversos caixões selados. Quem se importava realmente com a vida dum pobre emigrante irlandês?





(1) Abraham Lincoln (1809 – 1865) foi o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América, a quem coube em sorte o governo da ainda jovem nação durante a sua guerra civil – que opôs o norte ao sul do país. Com a vitória da União, aboliu-se no território a escravatura, uma das questões fulcrais do sangrento conflito. Foi assassinado, enquanto assistia ao lado da esposa a uma peça de teatro, por um simpatizante confederado (afeito ao sul, portanto), o não menos célebre John Wilkes Booth.

(2) O General Thomas Francis Meagher foi o líder do 69º Regimento das tropas da União, uma unidade composta apenas por irlandeses de Nova Iorque.

(3) Uma das principais cidades da Irlanda, actualmente a sua capital. 








(Título desconhecido - 
Don Troiani (1949 - ))


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 7


BRUXAS DISFARÇADAS DE OVELHAS
(Parte II)



      De acordo com o seu próprio relato, Hector McLean, de Coll¹, vinha ao anoitecer de Arinagour² para Breachacha³ – uma distância de quatro milhas pelo que então era, na maior parte do troço, um trilho de montanha.  

A meio caminho, em Airidh-mhic-mharoich, uma ovelha negra correu ao seu encontro e atirou-o ao chão. A certa altura, como os ataques repetiam-se, Hector conseguiu tirar do bolso um canivete e com ele ameaçar a ovelha, afirmando que na próxima investida não hesitaria em usá-lo. Contudo, a ovelha avançou uma e outra vez, derrubando-o sempre. Numa das ocasiões em que tentava feri-la, o canivete fechou-se sobre si mesmo, fazendo-lhe um corte profundo entre o indicador e o polegar.

Ao chegar a uma ampla drenagem de águas a céu aberto, uma espécie de riacho que corre por debaixo de Breachacha Garden, Hector teve receio em atravessá-lo, não fosse a ovelha segui-lo e, investindo de novo sobre si, atirá-lo para aquelas águas. Porém, já conseguia avistar a sua casa, e com um assobio forte chamou o seu cão. Este veio e atacou ferozmente a ovelha.  

De cada vez que o cão chegava perto demais, a ovelha tornava-se numa velha mulher, alguém que o Hector reconheceu, e saltava no ar. Pediu ela que o homem mandasse o seu cão retirar-se, mas o pedido foi recusado. Insistiu, prometendo desta vez que ficaria sua amiga para o que desse e viesse. Por fim, Hector chamou o cão, mas este já não obedeceu. Apanhou-o então pelo pescoço e tentou pará-lo, virando-o para si mesmo. Prometeu que o seguraria, dando à mulher hipótese de fuga.

A bruxa transformou-se então numa lebre. Já que parecia ser mulher de grande poder, Hector, gritando, disse-lhe que acrescentasse uma perna extra à sua nova forma, para que assim pudesse correr mais depressa. Quando já se encontrava a uma distância considerável, Hector largou o cão, que de pronto a seguiu, e regressou a casa. 

O cão só voltou na tarde seguinte. Perseguira a lebre, obrigando-a a abrigar-se nas reentrâncias duma rocha, e aí montara a sua guarda – até a fome vencer, levando-o a regressar. Na primeira vez que o encontrou, a mulher repreendeu Hector por ter deixado o cão fugir.

    Mais tarde, quando foi prestar os seus serviços numa quinta em Arileod, Hector voltou a avistar a tal mulher, de novo na forma de lebre, roubando o leite das vacas directamente do animal. O seu cão, sempre que se apercebia da presença da mulher, começava a persegui-la, obrigando-a a retomar a sua forma original.

Quando deixou a quinta, a mulher não voltou a ser vista durante dias. Hector foi então à sua procura. Quando a encontrou, acusou-a de ser a causa dos problemas que tinham ocorrido na propriedade. A bruxa enfureceu-se, ameaçando puni-lo por levantar falsas suspeitas. Hector disse-lhe que o proprietário oferecia uma recompensa a quem descobrisse o responsável pelos maus eventos; e que se todas as mulheres de Coll fossem reunidas num outeiro, o seu cão malhado a identificaria facilmente – e assim seria, de pronto, considerada culpada.

Perante isto, a bruxa emudeceu. Pediu-lhe o homem que fosse à vacaria da propriedade naquela noite, para que as pessoas não dissessem que foi por sua culpa que o mal se instalara na quinta. A bruxa desculpou-se dizendo que já era a noite de quarta-feira, e que nada poderia fazer contra tal coisa, mas que na noite seguinte agiria de acordo com o combinado, e que Hector ficaria a saber quando tal acontecesse.

Assim, na noite de quinta-feira, a mulher foi à vacaria de Arileod, soltou as vacas e deixou os bezerros entrar, provocando assim o maior prejuízo que lhe foi possível causar.






(Relato colectado após entrevista a Hector McLean, de Coll. Foi editado pela primeira vez por J. G. Campbell, in “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902.)
 
 
 
 
 


 
(Versão de Pedro Belo Clara a partir da edição de Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)










(1) Coll é uma pequena ilha (pouco mais de 20 km de comprimento) das Hébridas Interiores, na Escócia. Com uma população de cerca de 150 habitantes, a ilha é conhecida pela suas praias e dunas, dois castelos (remontando o mais antigo ao séc. XV) e uma fauna peculiar. Uma invasão no séc. VI, com origem na actual Irlanda, estabeleceu no território um reino celta. Posteriormente, foi governado pela coroa norueguesa até chegar, no séc. XII, ao domínio da coroa escocesa.  


(2) A vila principal da ilha, situada na região oriental. 


(3) Região onde se situam os castelos da ilha, ambos com o mesmo nome. O mais antigo data do séc. XV e o mais recente foi em 2017 colocado à venda. Estão situados nas margens do lago que lhes dá o nome. Acrescente-se que toda a ilha era território do clã MacLean desde 1431. 


(4) Pouco mais de seis quilómetros. Percorridos a pé e ao anoitecer... ora, imagine-se! Outros tempos, não hajam dúvidas...


(5) Vila localizada na costa ocidental de Coll. 






 





"Summons"
- gravura pertencente à série "Coven",
de Rosalie Lettau


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 6


BRUXAS DISFARÇADAS DE OVELHAS
(Parte I)





    Ao anoitecer, um homem de Tiree¹ estava a caminho de sua casa, no extremo oeste da ilha, levando na mão uma arma que havia adquirido recentemente. 
    Num dado momento, acima da praia a que chamam Travay, avistou uma ovelha negra a correr na sua direcção através da planície de Reef. Alarmado pelos movimentos do animal, colocou uma pequena moeda de prata na sua arma; quando a ovelha se aproximou o suficiente, o homem apontou-a ao animal. 
   A ovelha negra transformou-se naquele mesmo instante numa mulher, que ele de pronto reconheceu, com uma capa grosseira puxada até ao cimo da sua cabeça. 
  A mesma mulher havia-o perseguido antes, e por várias ocasiões, especialmente sob a forma de um gato. Ela pediu-lhe que o seu segredo ficasse bem guardado, e o homem prometeu que agiria de acordo com o combinado.
  Porém, numa noite, estando ébrio na vila onde a mulher morava, acabou por contar a sua aventura e o nome da mulher nela envolvida. Em menos de quinze dias o homem morreu afogado, e a mulher, sobre quem já recaíam suspeitas de bruxaria, foi acusada de tal crime.







(Narrador anónimo, sabendo-se apenas que se trata dum nativo de Tiree. O relato foi editado pela primeira vez por J. G. Campbell, na obra “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, de 1902.)








(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da versão editada por Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)












(1) Tiree é a ilha mais ocidental do complexo conhecido por "Hébridas Orientais" ou "Interiores", na Escócia. Possui uma história rica, e os primeiros indícios humanos nela encontrados remontam a uma antiguidade longínqua. Ademais, está historicamente ligada a São Columba, o monge irlandês que evangelizou a Escócia. Dotada de terrenos muito férteis (a origem gaélica do seu nome traduz-se por "terra de milho") e duma espantosa abundância de peixe, bem como excelentes condições para a prática do surf, a ilha albergava, de acordo com os últimos censos, pouco mais de seiscentas pessoas. O turismo é, pois, uma das suas maiores atracções. 











(Autor desconhecido.
Fonte: paintingvalley.com)