quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

BÊNÇÃO DE ANO NOVO

 
Abençoa, Senhor, o novo dia,
A mim nunca antes oferecido;
É para Tua presença bem-dizer
Que este tempo me foi concedido.

Abençoa estes olhos meus,
Que eles abençoem o que podem ver;
Assim abençoarei o meu vizinho,
Possa ele de igual modo proceder.

Senhor, dá-me um coração puro,
Não me deixes longe de Tua protecção;
Abençoa meus filhos, minha esposa,
Os meus recursos, o gado de criação.



Anónimo.
(Tradicional escocês.)









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa do original em gaélico editado no primeiro volume de Carmina Gadelica (1900), de Alexander Carmichael.)















("O Nascer do Sol",
de Harry Warrick.)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

CÂNTICO DE NATAL


Salvé o Rei! Salvé o Rei! Abençoado seja! Abençoado seja!
Salvé o Rei! Salvé o Rei! Abençoado o Rei que cantamos!
    Todos, saudai! Venha a nós a alegria!

Esta é a noite antes do Nascimento,
O nascimento do Filho da Virgem Maria.
As solas dos Seus pés tocaram a terra,
O Filho da glória dos altos desceu,
O Céu e a Terra para Ele cintilaram.
    Todos, saudai! Venha a nós a alegria!

A Ele a paz da terra, a felicidade do paraíso;
Vejam: seus pés tocaram o mundo!
A Ele homenagem de Reis, um cordeiro para O receber;
Rei vitorioso, Cordeiro glorioso,
Terra e Céu iluminam-se só para Ele.
    Todos, saudai! Venha a nós a alegria!

As montanhas brilham para Ele, assim as planícies;
A voz das vagas e a canção das orlas
A todos anunciam o nascimento de Cristo,
O filho do Rei dos Reis, vindo da terra da salvação;
Cintilou o Sol bem alto, nas montanhas, sem Seu nome.
    Todos, saudai! Venha a nós a alegria!

Cintilou em Seu nome a Terra,
O Senhor Deus uma porta abriu;
Filho da Virgem Maria, depressa vem em meu auxílio,
Cristo da esperança, Portal da alegria,
Sol doirado sobre colinas e montanhas!
    Todos, saudai! Venha a nós a alegria!





Anónimo. 
(Tradicional da Escócia.)













(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa do original em gaélico editado no primeiro volume de Carmina Gadelica (1900), de Alexander Carmichael.)












(Autor desconhecido)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O PODER DO POÇO DE SÃO TEGLA


Na quinta de Amnodd Bwll¹ vivia um agricultor chamado Robert William com a sua mulher, Mari Tomos, e o seu filho, William Robert. 
Quando o rapaz atingiu os doze anos de idade, os pais começaram a ficar muito ansiosos com a sua saúde, pois todos os dias recebiam sinais que pressagiavam a morte prematura do filho: uma das macieiras do jardim havia florido antes do tempo previsto; o velho galo que há anos os acordava pela manhã começou a cantar a meio da noite, pelo que foram obrigados a cortar-lhe a cabeça; Mari Tomos sonhou com um casamento, o que significa que um funeral estaria prestes a acontecer; uma noite, uma ave bateu no vidro do quarto de Robert e Mari, e eles imediatamente pensaram que era o Pássaro da Morte, o pássaro sem penas que bate as asas às janelas da casa que a morte vem visitar. 
Por fim, um dia, Robert William vinha a caminho de casa após a visita a uma feira, em Bala², quando, junto às margens do rio Tryweryn³, viu uma mulher feia e repelente, vestida com um longo vestido preto. O seu rosto era pálido, as maçãs do rosto salientes e os olhos de um negro profundo. Também negros eram os seus dentes, o nariz era pequeno com grandes narinas, e o cabelo cinzento e emaranhado. Com os braços esquálidos chapinhava nas águas do lago, fazendo um barulho estranho. Robert William parou, aterrorizado, mas com mais terror ainda ficou quando a ouvir dizer:
«Meu querido, meu filho, meu filho querido.»
Depois de pronunciar estas palavras, a estranha aparição sumiu-se no ar e Robert William teve a certeza de que tinha acabado de ver a terrível Cyhiraeth⁴, e que o seu grito era o presságio mais que evidente de que o seu filho iria morrer.
Transido de terror, Robert William procurou regressar a casa o mais depressa possível, mas à sua frente avistou uma pequena chama vermelha, a Lanterna da Morte, cujo tamanho é proporcional ao das vítimas cuja morte anuncia. Sendo pequena, pressagiava a morte de uma criança. 
Robert correu para chegar a casa, decidido a procurar ajuda. No dia seguinte, foi ter com um homem sábio que vivia em Trawsfynydd⁵ para saber se havia ainda esperança para o seu filho. O homem sábio disse-lhe que a única solução era levar o rapaz até ao Poço de São Tegla⁶, em Denbigshire⁷, e seguir as suas instruções. 
O pai assim fez e, depois do anoitecer, o rapaz aproximou-se do poço levando um cesto no braço, dentro do qual estava um galo. Primeiro, circundou o poço por três vezes, recitando o Pai-Nosso; depois, aproximou-se da igreja e fez o mesmo. Por fim, entrou na igreja, rastejou para debaixo do altar e aí passou a noite, utilizando a Bíblia por almofada. 
Pela manhã, deixou algumas moedas sobre o altar e o galo dentro da igreja. Se o galo morresse dentro da igreja, o rapaz ficaria são e salvo. 
Pai e filho regressaram a casa, tremendo de ansiedade. Passada uma semana, veio até eles um mensageiro comunicar que a ave tinha morrido e com ela todos os males que ameaçavam a vida de William Robert. O rapaz viveu cheio de saúde até uma idade avançada. 






(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou O Povo Belo".)










(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)











(1) Não é propriamente o nome de uma propriedade, mas de uma região. Situa-se no condado de Gwynedd, no norte do País de Gales - onde também se encontra a belíssima península de Llyn. 


(2) Uma cidade na região centro-norte do País de Gales, em tempos idos famosa pelo seu mercado. Situa-se no condado de Merionethshire.


(3) Um rio no norte de Gales, o principal afluente do rio Dee.


(4) Figura mitológica que embora neste conto assuma uma forma humana, se bem que algo decrépita, geralmente aparece como espectro ou somente uma voz incorpórea, que emite um longo lamento sempre que a morte de alguém se aproxima. Será o equivalente à Banshee irlandesa. 


(5) Pequena vila costeira no noroeste do País de Gales, com menos de mil habitantes. Também se situa no condado de Gwynedd.


(6) Existe alguma controvérsia sobre quem será este santo. Existiu, de facto, um santo de nome Tecla, ou melhor, santa, nos primórdios do cristianismo, tendo sido até seguidora do apóstolo Paulo, e muitas vozes confirmam ser ela a cultuada nesse lugar do norte do País de Gales, a pequena vila de Llandegla, onde a dita igreja se situa. Contudo, existiu um culto local a uma virgem galesa de nome Tegla, e uma certa facção de historiadores inclina-se mais para esta hipótese como sendo ela a real origem da igreja e, também, do nome da vila, pois esta em galês significa "Paróquia de Santa Tecla" ou, no caso, "Santa Tegla". Até porque a santa mais famosa era de origem turca e a outra, também virgem, uma jovem local.  
Parece assim haver um erro no nome traduzido neste texto, já que o santo era, afinal, uma santa, fosse turca ou galesa, pouco importa. Como se vê, no texto surge "São Tegla". Mas dado que a tradução não foi da nossa responsabilidade, manteve-se a forma escolhida por quem a assumiu.
Resta acrescentar que a igreja visitada no conto por pai e filho ainda existe, e surge pela primeira vez registada em documentos do século XIII - embora com evidências de ser ainda mais antiga. 

(7) Condado na zona nordeste do País de Gales. 















(A igreja de Sta. Tegla, ou Tecla.
Fotografia de Eirian Evans.)


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A FORMOSA PORTMORE

 
Oh, formosa Portmore¹, és como estrela a cintilar,
E quanto mais te penso mais em ti quero ficar.
Se agora te possuísse eu como te possuí um dia,
Nenhum senhor da velha Inglaterra te compraria.

Oh, formosa Portmore, como lamento assistir 
À terrível destruição da árvore² que te fazia sorrir.
Em tuas orlas brilhou desde tempos sem memória,
Até os grandes barcos de Antrim³ levarem a sua glória.

Todos os pássaros da floresta choram amargamente,
Dizendo "Onde um abrigo, onde dormir serenamente?"
Pois o carvalho e o freixo, todos eles foram cortados;
E os muros da formosa Portmore por fim derrubados.

Oh, formosa Portmore, és como estrela a cintilar,
E quanto mais te penso mais em ti quero ficar.
Se agora te possuísse eu como te possuí um dia,
Nenhum senhor da velha Inglaterra te compraria.




Tradicional (provavelmente séc. XVIII.) ⁴












(Versão adaptada por Pedro Belo Clara do texto mais comum, originalmente em inglês.)








(Sugere-se a versão de Kate Crossan para acompanhar a leitura do poema. Poderá escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FMBctAxJpl4 .)











(1) Referência à propriedade que se situava bem perto do lago com o mesmo nome, também designado de Beg, no condado de Antrim, na actual Irlanda do Norte.


(2) A referida árvore é, com toda a certeza, o enorme carvalho que naquela localidade ainda se erguia durante o século XVIII. Amplamente conhecido como "O Grande Carvalho de Portmore" ou "A Árvore Ornamental de Portmore", sendo esta a designação mais comum, foi derrubado numa tempestade que assolou a região em 1760. Subsequentemente, a sua valiosa madeira foi maioritariamente utilizada na construção de navios e mobiliário. A segunda quadra faz claramente referência a este acontecimento.


(3) Um dos seis condados que formam a Irlanda do Norte e onde se situa a sua capital, Belfast. 


(4) Este é um tema com algumas particularidades interessantes, desde logo o facto de ser um dos raros textos de todo o universo popular irlandês que celebra uma propriedade e, principalmente, uma certa árvore imponente que a celebrizava. 
Embora quase todo o texto seja um louvor a esse "Grande Carvalho de Portmore", considerar-se-á também um protesto contra o abate massivo das antiquíssimas florestas de carvalho irlandesas, que algures pelo século XVIII estavam a ser devastadas. Poderá assim muito bem ser uma das mais antigas canções de protesto com teor ecológico.
O texto, porém, apresenta disparidades históricas. Na primeira quadra, que se repete no final e que quando posto em canção actua como refrão da mesma, depreende-se um lamento de algum antigo proprietário de Portmore que, muito provavelmente por falta de meios, não pôde manter a sua bem amada propriedade, vendo-se forçado a vendê-la. Este aspecto é histórico, dado que em 1664 um grandioso castelo foi erguido em Portmore a mando de Lord Conway, político inglês e primeiro Conde do lugar com esse nome. Este, por sua vez, obteve-a da família O'Neill, originários da paróquia (freguesia) de Ballinderry, no condado de Antrim, que por motivos financeiros se viu forçada a vendê-la ao Conde inglês. Já então se fazia referência a um enorme carvalho (com cerca de doze metros de circunferência!) que se situava dentro dos muros do novo castelo, motivo de grande estima e orgulho entre os locais. 
As demais quadras, contudo, concretizam um salto histórico de centenas de anos, pois com referências à queda do brioso carvalho situam-nos logo em 1760, o ano em que ocorreu a tempestade que o derrubou. Para não desperdiçar as suas benesses, vários barcos oriundos de Antrim vieram recolher a sua madeira, usando-a essencialmente na construção de novos barcos. Assim sendo, parece justo considerar esse século, o XVIII, como o mais provável para a criação do texto completo deste bonito e melancólico tema. Tanto que, como as fontes o comprovam, no ano seguinte à queda do grande carvalho a propriedade encontrava-se já em estado de abandono, tendo o castelo e outros edifícios circundantes sido removidos. É algo que condiz com o que se escreve na terceira quadra do poema. Hoje em dia, vestígios do muro da propriedade ainda subsistem. 
A melodia desta canção, por sua vez, só surge impressa em documento em 1840, num volume de Edward Bunting (1773 - 1843), que admitiu tê-la recolhido dum harpista do Ulster, região da actual Irlanda do Norte, em 1796. O músico, de seu nome Daniel Black, ter-lhe-á confidenciado que o tema seria contemporâneo da família O'Neill de Ballinderry. Assim, é muito provável que, como geralmente acontece no universo folclórico, a melodia seja mais antiga que o seu texto, datando uma do século XVII e o outro do século seguinte. Pelo menos no caso do texto completo, esclareça-se, pois existe uma quadra, muito idêntica à primeira deste poema, que poderá ser contemporânea da melodia, sendo esse na verdade o verdadeiro lamento dos O'Neill. Mais tarde, então, foi desenvolvido até chegar à forma que se lhe conhece. Ora veja-se:

Oh, formosa Portmore, és como estrela a cintilar,
E quanto mais te penso mais vejo o coração se confortar.
Mas se agora te possuísse eu como te possuí um dia,
Nem todo o ouro de Inglaterra te compraria!

Existe também uma versão escocesa do tema, "Highlander's Farewell", mas essa lamenta não a perda de uma propriedade ou de uma árvore, mas a mais comum perda de todas: um sentido amor. Curiosamente, existe um lago Portmore no país das Terras Altas. 








(Fotografia aérea do Lago Portmore.)


sábado, 12 de setembro de 2020

ORAÇÃO DE VIAGEM (*)

 

Que haja vida no meu discurso,
Um sentido naquilo que falar;
E flores de cerejeira nos lábios
Até que se dê o meu regressar.

Que o amor que Cristo Jesus deu
por meu bem viva em cada coração,
que o amor que Cristo Jesus deu
em mim viva por bem de todo o coração.

Por covas fundas, por florestas,
Por vales longos e bravios: aí vou eu;
Maria, de luz formosa, me ampara,
É Jesus Pastor escudo meu;
Maria, de luz formosa, me ampara,
É Jesus Pastor escudo meu.



Anónimo.









(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir do texto em inglês apresentado no primeiro volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de poemas, feitiços e encantamentos populares colectados nas ilhas ocidentais escocesas.)









(*) O recolector deste texto, quando o publicou em livro, deixou a seguinte nota por companhia: «Este hino foi cantado por um peregrino antes de iniciar a sua viagem. Os familiares e os amigos juntaram-se ao viajante no canto e nos primeiros passos da peregrinação, da qual não poucos, por vários motivos, nunca regressam.»












("1600s The Walk Home For Pilgrim",
de Vintage Images, 2017.)


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O CÃO ENCANTADO

 

A mulher de Hafod Y Gareg regressava a casa, vinda da igreja, quando encontrou no caminho um pequeno cão vadio que parecia doente e exausto. Pegou nele com cuidado e, colocando-o dentro do avental, levou-o para casa. Fê-lo por pena do animal, mas também porque se lembrava de uma história que lhe tido sido contada pela sua prima. 

Esta tinha encontrado um cão pequeno e estranho e tinha-o escorraçado cruelmente. Por isso, as fadas apanharam-na e perguntaram-lhe se preferia viajar acima do vento, abaixo do vento ou no meio do vento. Sem compreender que deveria ter escolhido a última hipótese, a prima da mulher de Hafod Y Gareg respondeu que preferiria viajar abaixo do vento, e as fadas fizeram-na voar entre pedras e arbustos, até que ela chegou a casa, ensanguentada e com as roupas rasgadas. Por esta razão, a mulher de Hafod Y Gareg tratou do cão com carinho e alimentou-o bem. 

No dia seguinte, apareceu um grupo de fadas junto à sua casa a fazer perguntas sobre o cão. Ela disse-lhes que o animal se encontrava são e salvo e que tinha sido tratado com todo o desvelo, estando pronto para regressar a casa. 

Cheias de gratidão, as fadas perguntaram-lhe se ela preferia ter um estábulo sujo ou um estábulo limpo. A mulher de Hafod Y Gareg pensou durante alguns momentos e chegou à conclusão de que um estábulo limpo implicaria a quase inexistência de animais e, por isso, optou pela primeira hipótese. 

Era a resposta correcta. Logo o seu estábulo se encheu de cabeças de gado que produziram o melhor leite e manteiga da região. 






(Conto extraído de "Os Tylwyth Teg ou Povo Belo".)














(Tradução de Angélica Varandas in "Mitos e Lendas Celtas do País de Gales", Clássica Editora, 2012.)









("Midsummer Eve",
de Edward R. Hughes (1832 - 1908))


quinta-feira, 25 de junho de 2020

MOLLY MALONE


Em Dublin, bonita cidade,
Onde toda a rapariga é uma beldade,
Pela primeira vez vi a doce Molly Malone¹.
Empurrando o carrinho-de-mão, ia ela
Por toda a larga rua ou viela
Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

          Fresquinho, tão fresquinho!
          Fresquinho, bem vivinho!
          Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

Era, pois, peixeira de profissão,
Mas que tal não cause admiração,
Pois o era também seu pai e sua mãe.
E cada um o seu carrinho empurrou,
E toda a larga rua e viela visitou,
Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

          Fresquinho, tão fresquinho!
          Fresquinho, bem vivinho!
          Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

Duma febre viria a falecer,
Sem que ninguém a pudesse socorrer,
E foi esse o fim da doce Molly Malone.
Agora o seu espírito o carrinho-de-mão guia,
Por toda a larga rua e viela bem esguia,
Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!

          Fresquinho, tão fresquinho!
          Fresquinho, bem vivinho!
          Gritando: berbigão e mexilhão fresquinho!




(Anónimo.)







(Versão adaptada de Pedro Belo Clara, a partir do original em inglês.)









(Poderá escutar de seguida a versão dos The Dubliners, provavelmente os mais responsáveis pela popularização em massa do tema: https://www.youtube.com/watch?v=iT-IfGokcCI )








(1) Esta bonita canção tradicional irlandesa é considerada, graças à enorme popularidade que granjeou nas últimas décadas, o hino não-oficial da cidade de Dublin, lugar que lhe serve de pano de fundo.
Foca-se, como bem se lê, numa figura popular de então, que percorre as ruas da cidade apregoando o seu comércio. Contudo, a veracidade deste relato é altamente questionada.
Em teoria, a Molly que se celebra neste tema, peixeira de seu ofício, teria vivido no século XVII e morrido bastante jovem, duma febre súbita. Algumas fontes caracterizam-na como sendo comerciante de dia e prostituta de noite, outras fazem dela um símbolo de castidade num tempo de imoralidades gritantes, e ainda há quem escreva que seria uma jovem mãe quando faleceu, daí que usasse um vestido com decote bem vincado (na época era comum as mulheres mais humildes amamentarem nas ruas, daí que o vestuário fosse adaptado a essa necessidade.) 
No entanto, todas estas versões da suposta verdade não passam de lendas que se construíram em torno desta figura, especialmente em meados do século XX, quando ressurgiu o interesse na canção e na história da mulher por ela celebrada. 
Não existem registos históricos que comprovem a existência de uma Molly Malone percorrendo as ruas de Dublin com um carrinho-de-mão cheio de marisco. O seu nome é relativamente comum (Molly era utilizado como uma alcunha carinhosa para quem se chamasse Mary ou Margaret), assim como o seu ofício de peixeira ambulante. Além disso, a canção utiliza várias expressões já presentes noutras que lhe são anteriores, o que sugere uma criação mais recente com inspiração em tais fontes - prática muito usual no universo da música tradicional.
O seu primeiro registo data de 1876, e já na época era tida como sendo uma canção "de provável origem irlandesa". No entanto, certos especialistas afirmam que algumas passagens melódicas e verbais da canção a afastam daquilo que então era tradicional na Irlanda, especialmente das baladas que nas ruas se escutavam, e preferem apontar a sua origem como sendo escocesa. (Existe uma publicação que, em forma de nota, indica que o texto foi antes editado numa colectânea escocesa, mas tal obra nunca foi encontrada.)
Quando a canção foi publicada, já existiam pelo menos mais duas que falavam duma Molly do mesmo apelido. Numa delas, Molly é, de nascimento, Mary, e já se encontra viúva. Outra, imagine-se, é de origem norte-americana, pré-guerra civil; e ainda encontramos uma outra donde este tema copia várias expressões, desde a "cidade bonita de Dublin" ao famoso pregão dos bivalves. Todas, note-se, datam da primeira metade do século XIX. Além disso, até a própria melodia que acompanha o texto é muito provavelmente inspirada num tema mais antigo.
Assim sendo, conclui-se que a lenda de Mary Malone não passa disso mesmo: pura fantasia. Haverá, contudo, uma explicação para tal. 
Em 1988 comemorou-se o primeiro milénio da cidade de Dublin, e entre as festividades previstas estava o descerrar duma nova estátua, nada mais que a de Mary Malone, passeando-se com o seu carrinho-de-mão. Aí mesmo declarou-se o dia 13 de junho o "Dia de Mary Malone", que ainda é celebrado; pois deram-se provas de uma Molly que faleceu, segundo o registo, nesse dia em 1699, como sendo a Molly da canção. O registo é verídico, é certo, mas nada diz sobre tal personagem e sua vida, sequer se a tal febre súbita foi a causa da sua morte. Sendo um nome comum, que garantias sérias são dadas? A comissão das festividades assim o afirmou e o facto deu-se por garantido, embora haja uma imensa nuvem de suspeição em torno de toda a história - que apresenta contornos nitidamente políticos. 
Actualmente em Grafton Street, todo o turista não pode passar por Dublin sem cumprimentar a doce Molly que, imagine-se, ainda empurra o seu carrinho-de-mão à espera dum novo comprador. 








(A famosa estátua de Molly Malone em Dublin)


domingo, 31 de maio de 2020

ERVA-DE-SÃO-JOÃO


«A erva-de-São-João¹ é conhecida por diversos nomes, todos condizentes com a ideia que o povo tem a seu respeito - "saraiva", "amuleto", "jóia" e "glória de Columba", "nobre planta de Maria", entre outros. Serão, provavelmente, termos pré-cristãos aos quais adicionaram os localmente bem-amados nomes de Maria e São Columba². 

erva-de-São-João é uma das poucas plantas ainda acarinhadas pelo povo graças às suas propriedades de protecção contra visões de eventos futuros, encantamentos, bruxaria, olhares maldosos e a morte; e para assegurar paz e abundância no lar, crescimento e prosperidade nos cercados e o aumento das colheitas nos campos. A planta é secretamente colocada nos corpetes das mulheres e nos coletes dos homens, debaixo da axila esquerda. 

erva-de-São-João, contudo, só é eficaz se for descoberta acidentalmente. Quando tal acontece, desponta uma alegria enorme em quem a encontra, que de modo muito agradecido assim se expressa:


Erva-de-São-João, erva-de-São-João,
Sem a procurar, que sorte!
Oh, Deus meu, Cristo Jesus,
Este ano não verei a morte.


É especialmente apreciada quando descoberta nos cercados do gado, um augúrio de paz e prosperidade para rebanhos e manadas ao longo do ano. Quem a descobre, diz:


Erva-de-São-João, erva-de-São-João,
Feliz de quem te achar!
Quem te apanha no cercado
o seu gado irá preservar.


Há uma lenda entre estas gentes que diz que São Columba levava consigo esta planta graças ao seu amor e admiração pelo santo que lhe dá o nome, esse que deambulou pregando sobre Cristo e baptizando os convertidos vestindo-se apenas de pele de camelo e alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre. 


Irei colher o meu rebento,
Como uma prece ao meu Rei,
Para aquietar a ira dos homens de sangue³,
Para ver os ardis das mulheres devassas⁴.

Irei colher o meu rebento,
Como uma prece ao meu Rei,
Para que meu seja o seu poder
Sobre tudo o que vejo.

Irei colher o meu rebento,
Como uma prece à sacra Trindade,
À sombra da graça Trina
E de Maria, Mãe de Jesus.»





Alexander Carmichael (1832 - 1912)












(Versões adaptadas de Pedro Belo Clara a partir do texto em inglês apresentado no segundo volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de poemas, feitiços e encantamentos populares colectados nas ilhas ocidentais escocesas.)










(1) A erva-de-São-João, também conhecida por "Hipericão", é uma planta da família Hypericaceae, bastante comum em toda a Europa. Cresce em arbusto de forma erecta,  comummente atingindo um metro de altura. Apresenta diversas flores persistentes, dispostas muito juntas, de cor amarela com pequenos pontos pretos ao longo das suas margens. É desde há séculos utilizada na cura de várias maleitas. 


(2) Monge irlandês nascido em 521, é a principal figura da evangelização do actual território escocês, à época ainda habitado pelos pictos. (Não se dirá pioneiro pois já outras tentativas haviam sido feitas, porém infrutíferas.) O seu nome, em gaélico, significa "A Pomba da Igreja".
Segundo as lendas, tinha realmente o hábito de levar consigo hastes desta erva, daí que o povo, inevitavelmente, o tenha ligado a ela. Ainda no campo dos mitos, diz-se que o célebre mistério do Monstro do Lago Ness terá começado no seu tempo de vida, pois nesse local, como se escreveu, o santo baniu para as profundezas do lago uma "besta marinha" que matara um picto e que tentara atacar um discípulo seu. Juntando dois mais dois, facilmente os mais entusiastas do mito chegam ao número quatro. 
Faleceu na mesma terra onde semeou a fé cristã, aos 75 anos de idade, tendo sido sepultado na ilha de Iona, nas Hébridas ocidentais, onde fundou uma abadia. Ainda hoje é considerado o santo padroeiro da Escócia.


(3) Curiosamente, uma das várias propriedades medicinais desta erva é a de ser um potente calmante natural. Embora em tempos mais remotos não tenha sido usada para tal efeito, actualmente utiliza-se bastante em casos de ansiedade e depressão.


(4) Em tempos antigos, dizia-se que esta erva afastava os maus espíritos. A razão para a crença é suportada pela ciência: a erva tem várias aplicações no tratamento de doenças do foro mental, incluindo a depressão e a distimia, isto é, um transtorno dos humores. Seriam os "ardis das mulheres devassas" apenas consequências de tais enfermidades, mas que à luz de uma época de ignorância e superstição passavam despercebidas? sendo mais fácil julgar uma pessoa pelo seu comportamento do que indagar se a razão dos seus actos seria sinal de doença? Deixe-se a questão pairando no ar. 









(A erva-de-São-João, em promenor.)


quinta-feira, 14 de maio de 2020

UMA FILHA DE EMIGRANTE


Nunca me esqueçam, peço, agora que me tem o mar;
Fui em tempos jovem e bela, e o coração era livre de voar.
O destino arrancou-me ao país e aos que mais amei,
E à nova terra aonde - assim o quis - nunca cheguei.
Uma pobre filha de emigrante, deveras amedrontada, 
Sem saber que a terra de su'alma para sempre deixava.
Entre dúvidas e receios, meus pais em oração dedicada
pediam coragem para esquecer o que para trás ficava. 

Falavam duma nova terra, além da azul imensidão,
E de paz e boa fortuna para toda uma nova geração.
Então, da terra de trabalhos¹ partimos entre choro e ais,
Beijando a família e os amigos que veríamos não mais. 
O navio cheio estava de gente tão inquieta e sombria,
Só a fuga certa às privações sua esperança sustinha.
Quando o derradeiro vislumbre da Irlanda na névoa fugia,
Cada um reteu as lágrimas e soube-se só com o que tinha.

Os mares rugiam em fúria, dando ao desespero requinte;
E uma febre assolou-me, agravando-se na noite seguinte. 
Depois o delírio chegou, entorpecendo a minha mente,
E, por instantes, pude sorrir à terra de antigamente.
Ainda escutava, ao longe, o choro de minha mãe querida
E a prece de três irmãos que não voltaria a ver, suplicante;
E senti as lágrimas de meu pai pedindo a culpa removida,
Por buscar uma nova vida numa margem ainda distante.

Nunca me esqueçam, peço, agora que me tem o mar;
Fui em tempos jovem e bela, e o coração era livre de voar.
O destino arrancou-me ao país e aos que mais amei,
E à nova terra aonde - assim o quis - nunca cheguei.




Barry Taylor. ²









(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês.)







(Este tema utiliza uma melodia medieval para ganhar corpo melódico. Não existem muitas versões, mas a de Taheny & Reid, no seu álbum "Across The Celtic Moors", eleger-se-á, certamente, como uma das melhores. Poderá escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=IR8NzZqqraA .) 








(1) No original "townland". É uma designação utilizada na Irlanda que representa a mais pequena divisão administrativa de uma terra, podendo ainda, em alguns casos, ser subdividida. Em regra geral, temos os condados, os baronatos, as paróquias e as "townlands". Tal divisão remonta ao tempo dos Celtas, muito provavelmente por razões de cultivo e também de habitação. Ainda hoje os seus nomes apresentam-se em gaélico. 




(2) Barry Taylor é um autor canadiano de origens irlandesas. 
Muito pouco se sabe a seu respeito. No que toca aos tópicos gerais, a nossa busca revelou-se por diversas vezes frustrada. Ainda assim, é absolutamente seguro creditá-lo como o autor do poema que hoje se apresenta. Sabe-se que foi escrito em 1998 e que o seu escriba ainda se encontra entre nós.
Taylor conta que na origem destas linhas esteve a história dos seus antepassados irlandeses, que algures por volta de 1840 deixaram o condado de Tyrone rumo ao Canadá. Enquanto investigava, Taylor descobriu que a bordo no navio, juntamente com a família Huston, donde descende, também havia embarcado uma jovem rapariga, que tudo indicava ser ainda adolescente, juntamente com seus pais e três irmãos. Ou seja, uma tia de Taylor que, aparentemente, ficara esquecida da história. Mergulhando a fundo, descobriu cartas antigas que confidenciavam a tragédia: a jovem, de nome Margaret, morrera a bordo do navio, em pleno Atlântico - lugar que seria o seu derradeiro repouso, dado que em casos análogos os corpos eram deitados ao mar para evitar contágios.
Foi um golpe de marcas profundas na família Huston, que ainda sem ter chegado à nova terra havia já perdido um membro tão querido. Talvez por esse motivo a história não tenha sido alimentada, ao ponto de Taylor apenas ter tido conhecimento dela graças à sua própria investigação. 
Sensibilizado pelo sucedido, escreveu este poema para homenagear a tia, dando-lhe uma merecida voz através das suas palavras, uma chance de contar a sua história. Aliadas à melodia que Taylor elegeu, um tema medieval inglês denominado "The Grenadier and the Lady" ("O Granadeiro e a Dama"), obtêm-se uma peça deveras comovente que detém o mérito de honrar outras tantas histórias trágicas que assolaram imensas famílias irlandesas num dos períodos mais negros da sua história. 




Breve nota explicativa a esta versão

O poema original ostenta rima, mas em esquema incerto. A versão apresentada obedece, assim, ao esquema da última oitava, aquela que nos pareceu melhor apresentar a que seria a intenção original do autor, mas que por qualquer razão, fossem dificuldades linguísticas ou outras, não foi conseguida. Os primeiros quatro versos de cada oitava têm, portanto, uma rima emparelhada e os restantes uma rima cruzada. É esta parte do corpo do poema que corresponde ao refrão da canção. 
Resta acrescentar que quando cantado o poema perde a repetição dos primeiros quatro versos que surge no final do poema. Mas, respeitando a vontade do autor, decidimos inclui-los no seu lugar devido. 











("An Emigrant's Last Fareweel",
Alfred Grey (1845 - 1926))


quinta-feira, 30 de abril de 2020

O AUGÚRIO DOS CISNES


Escutei a doce voz dos cisnes
Quando o alvor se queria anunciar;
Gorgolejando seguiam viagem, 
     Avançando firmes, rompendo o ar.

Depressa me ergui e quieto fiquei;
Aos longes lancei um olhar franco:
Quem vai na frente, guiando?
     A rainha da sorte, um cisne branco!

Foi isto na sexta-feira, noite alta,
Mas aí não tinha o pensamento focado:
Perdi minhas posses e meus parentes,
     Contava-se nesse dia um ano passado.

Deverias ver um cisne à sexta-feira,
Nas benditas horas do amanhecer:
Terias prosperidade de meios e parentes,
     E teus rebanhos deixariam de morrer.






Anónimo (da tradição popular escocesa.)













(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa do original em gaélico editado no segundo volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de poemas, feitiços e encantamentos populares colectados nas ilhas ocidentais escocesas por Alexander Carmichael.) 








(Foto de: tripadvisor.com)


segunda-feira, 30 de março de 2020

ORAÇÃO À VIRGEM


Vinha caminhando a Virgem
Com o Menino no colo.
Os anjos abriam alas
Desdobrando suas asas
Em sinal respeitoso
De muito carinho e louvor.
Dizia o Rei do Universo
Que os anjos mui bem sabiam
Honrar a Virgem e Seu Filho.

Eram de oiro os anéis
Do cabelo de Maria
Branca de neve era a pele
Do querido Menino Jesus.
E os Serafins entoavam
Uma doce melodia.
Dizia o Rei do Universo
Que os Serafins bem sabiam
Honrar a Virgem e Seu Filho.

Maria, Mãe dos milagres,
Vem em nosso socorro
Com Teu glorioso poder.
Vem e dá-nos a mão
Abençoa os alimentos
Abençoa a nossa mesa
Abençoa campos e espigas
O trigo cevada e centeio
O leite a água e o pão.

A Virgem da face de luz
E o Menino da branca pele,
Da pele da cor da neve.

Ela é a lua
Que se ergue serena
Por cima dos montes
No horizonte.

Ele é o sol
A brilhar majestoso
No cume mais alto
Das altas montanhas.



Anónimo.
(Oração da tradição oral em gaélico escocês.)









("Madonna and Child", 
de William Dyce (1806 - 1864))