domingo, 31 de maio de 2020

ERVA-DE-SÃO-JOÃO


«A erva-de-São-João¹ é conhecida por diversos nomes, todos condizentes com a ideia que o povo tem a seu respeito - "saraiva", "amuleto", "jóia" e "glória de Columba", "nobre planta de Maria", entre outros. Serão, provavelmente, termos pré-cristãos aos quais adicionaram os localmente bem-amados nomes de Maria e São Columba². 

erva-de-São-João é uma das poucas plantas ainda acarinhadas pelo povo graças às suas propriedades de protecção contra visões de eventos futuros, encantamentos, bruxaria, olhares maldosos e a morte; e para assegurar paz e abundância no lar, crescimento e prosperidade nos cercados e o aumento das colheitas nos campos. A planta é secretamente colocada nos corpetes das mulheres e nos coletes dos homens, debaixo da axila esquerda. 

erva-de-São-João, contudo, só é eficaz se for descoberta acidentalmente. Quando tal acontece, desponta uma alegria enorme em quem a encontra, que de modo muito agradecido assim se expressa:


Erva-de-São-João, erva-de-São-João,
Sem a procurar, que sorte!
Oh, Deus meu, Cristo Jesus,
Este ano não verei a morte.


É especialmente apreciada quando descoberta nos cercados do gado, um augúrio de paz e prosperidade para rebanhos e manadas ao longo do ano. Quem a descobre, diz:


Erva-de-São-João, erva-de-São-João,
Feliz de quem te achar!
Quem te apanha no cercado
o seu gado irá preservar.


Há uma lenda entre estas gentes que diz que São Columba levava consigo esta planta graças ao seu amor e admiração pelo santo que lhe dá o nome, esse que deambulou pregando sobre Cristo e baptizando os convertidos vestindo-se apenas de pele de camelo e alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre. 


Irei colher o meu rebento,
Como uma prece ao meu Rei,
Para aquietar a ira dos homens de sangue³,
Para ver os ardis das mulheres devassas⁴.

Irei colher o meu rebento,
Como uma prece ao meu Rei,
Para que meu seja o seu poder
Sobre tudo o que vejo.

Irei colher o meu rebento,
Como uma prece à sacra Trindade,
À sombra da graça Trina
E de Maria, Mãe de Jesus.»





Alexander Carmichael (1832 - 1912)












(Versões adaptadas de Pedro Belo Clara a partir do texto em inglês apresentado no segundo volume de Carmina Gadelica (1900) - um livro de poemas, feitiços e encantamentos populares colectados nas ilhas ocidentais escocesas.)










(1) A erva-de-São-João, também conhecida por "Hipericão", é uma planta da família Hypericaceae, bastante comum em toda a Europa. Cresce em arbusto de forma erecta,  comummente atingindo um metro de altura. Apresenta diversas flores persistentes, dispostas muito juntas, de cor amarela com pequenos pontos pretos ao longo das suas margens. É desde há séculos utilizada na cura de várias maleitas. 


(2) Monge irlandês nascido em 521, é a principal figura da evangelização do actual território escocês, à época ainda habitado pelos pictos. (Não se dirá pioneiro pois já outras tentativas haviam sido feitas, porém infrutíferas.) O seu nome, em gaélico, significa "A Pomba da Igreja".
Segundo as lendas, tinha realmente o hábito de levar consigo hastes desta erva, daí que o povo, inevitavelmente, o tenha ligado a ela. Ainda no campo dos mitos, diz-se que o célebre mistério do Monstro do Lago Ness terá começado no seu tempo de vida, pois nesse local, como se escreveu, o santo baniu para as profundezas do lago uma "besta marinha" que matara um picto e que tentara atacar um discípulo seu. Juntando dois mais dois, facilmente os mais entusiastas do mito chegam ao número quatro. 
Faleceu na mesma terra onde semeou a fé cristã, aos 75 anos de idade, tendo sido sepultado na ilha de Iona, nas Hébridas ocidentais, onde fundou uma abadia. Ainda hoje é considerado o santo padroeiro da Escócia.


(3) Curiosamente, uma das várias propriedades medicinais desta erva é a de ser um potente calmante natural. Embora em tempos mais remotos não tenha sido usada para tal efeito, actualmente utiliza-se bastante em casos de ansiedade e depressão.


(4) Em tempos antigos, dizia-se que esta erva afastava os maus espíritos. A razão para a crença é suportada pela ciência: a erva tem várias aplicações no tratamento de doenças do foro mental, incluindo a depressão e a distimia, isto é, um transtorno dos humores. Seriam os "ardis das mulheres devassas" apenas consequências de tais enfermidades, mas que à luz de uma época de ignorância e superstição passavam despercebidas? sendo mais fácil julgar uma pessoa pelo seu comportamento do que indagar se a razão dos seus actos seria sinal de doença? Deixe-se a questão pairando no ar. 









(A erva-de-São-João, em promenor.)


2 comentários:

  1. Grato, meu bom amigo, pela partilha. Li coisas que desconhecia. Quanto ao "hipericão", ele é abundante nas montanhas da serra do Gerês e muito procurado para a cura de doenças no fígado.
    Na montanha de S. Bento, aqui em Vizela e aonde tive o privilégio e o prazer de levar o meu amigo, também há, desde há uns tempos, o hipericão, transportado (creio eu) das montanhas do Gerês.
    Quanto às crenças populares e os augúrios associados, fiquei deveras gratificado pois disso não tinha conhecimento, como referi.

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  2. Muito obrigado pela visita! Forte abraço.

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