segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A FORMOSA PORTMORE

 
Oh, formosa Portmore¹, és como estrela a cintilar,
E quanto mais te penso mais em ti quero ficar.
Se agora te possuísse eu como te possuí um dia,
Nenhum senhor da velha Inglaterra te compraria.

Oh, formosa Portmore, como lamento assistir 
À terrível destruição da árvore² que te fazia sorrir.
Em tuas orlas brilhou desde tempos sem memória,
Até os grandes barcos de Antrim³ levarem a sua glória.

Todos os pássaros da floresta choram amargamente,
Dizendo "Onde um abrigo, onde dormir serenamente?"
Pois o carvalho e o freixo, todos eles foram cortados;
E os muros da formosa Portmore por fim derrubados.

Oh, formosa Portmore, és como estrela a cintilar,
E quanto mais te penso mais em ti quero ficar.
Se agora te possuísse eu como te possuí um dia,
Nenhum senhor da velha Inglaterra te compraria.




Tradicional (provavelmente séc. XVIII.) ⁴












(Versão adaptada por Pedro Belo Clara do texto mais comum, originalmente em inglês.)








(Sugere-se a versão de Kate Crossan para acompanhar a leitura do poema. Poderá escutá-la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FMBctAxJpl4 .)











(1) Referência à propriedade que se situava bem perto do lago com o mesmo nome, também designado de Beg, no condado de Antrim, na actual Irlanda do Norte.


(2) A referida árvore é, com toda a certeza, o enorme carvalho que naquela localidade ainda se erguia durante o século XVIII. Amplamente conhecido como "O Grande Carvalho de Portmore" ou "A Árvore Ornamental de Portmore", sendo esta a designação mais comum, foi derrubado numa tempestade que assolou a região em 1760. Subsequentemente, a sua valiosa madeira foi maioritariamente utilizada na construção de navios e mobiliário. A segunda quadra faz claramente referência a este acontecimento.


(3) Um dos seis condados que formam a Irlanda do Norte e onde se situa a sua capital, Belfast. 


(4) Este é um tema com algumas particularidades interessantes, desde logo o facto de ser um dos raros textos de todo o universo popular irlandês que celebra uma propriedade e, principalmente, uma certa árvore imponente que a celebrizava. 
Embora quase todo o texto seja um louvor a esse "Grande Carvalho de Portmore", considerar-se-á também um protesto contra o abate massivo das antiquíssimas florestas de carvalho irlandesas, que algures pelo século XVIII estavam a ser devastadas. Poderá assim muito bem ser uma das mais antigas canções de protesto com teor ecológico.
O texto, porém, apresenta disparidades históricas. Na primeira quadra, que se repete no final e que quando posto em canção actua como refrão da mesma, depreende-se um lamento de algum antigo proprietário de Portmore que, muito provavelmente por falta de meios, não pôde manter a sua bem amada propriedade, vendo-se forçado a vendê-la. Este aspecto é histórico, dado que em 1664 um grandioso castelo foi erguido em Portmore a mando de Lord Conway, político inglês e primeiro Conde do lugar com esse nome. Este, por sua vez, obteve-a da família O'Neill, originários da paróquia (freguesia) de Ballinderry, no condado de Antrim, que por motivos financeiros se viu forçada a vendê-la ao Conde inglês. Já então se fazia referência a um enorme carvalho (com cerca de doze metros de circunferência!) que se situava dentro dos muros do novo castelo, motivo de grande estima e orgulho entre os locais. 
As demais quadras, contudo, concretizam um salto histórico de centenas de anos, pois com referências à queda do brioso carvalho situam-nos logo em 1760, o ano em que ocorreu a tempestade que o derrubou. Para não desperdiçar as suas benesses, vários barcos oriundos de Antrim vieram recolher a sua madeira, usando-a essencialmente na construção de novos barcos. Assim sendo, parece justo considerar esse século, o XVIII, como o mais provável para a criação do texto completo deste bonito e melancólico tema. Tanto que, como as fontes o comprovam, no ano seguinte à queda do grande carvalho a propriedade encontrava-se já em estado de abandono, tendo o castelo e outros edifícios circundantes sido removidos. É algo que condiz com o que se escreve na terceira quadra do poema. Hoje em dia, vestígios do muro da propriedade ainda subsistem. 
A melodia desta canção, por sua vez, só surge impressa em documento em 1840, num volume de Edward Bunting (1773 - 1843), que admitiu tê-la recolhido dum harpista do Ulster, região da actual Irlanda do Norte, em 1796. O músico, de seu nome Daniel Black, ter-lhe-á confidenciado que o tema seria contemporâneo da família O'Neill de Ballinderry. Assim, é muito provável que, como geralmente acontece no universo folclórico, a melodia seja mais antiga que o seu texto, datando uma do século XVII e o outro do século seguinte. Pelo menos no caso do texto completo, esclareça-se, pois existe uma quadra, muito idêntica à primeira deste poema, que poderá ser contemporânea da melodia, sendo esse na verdade o verdadeiro lamento dos O'Neill. Mais tarde, então, foi desenvolvido até chegar à forma que se lhe conhece. Ora veja-se:

Oh, formosa Portmore, és como estrela a cintilar,
E quanto mais te penso mais vejo o coração se confortar.
Mas se agora te possuísse eu como te possuí um dia,
Nem todo o ouro de Inglaterra te compraria!

Existe também uma versão escocesa do tema, "Highlander's Farewell", mas essa lamenta não a perda de uma propriedade ou de uma árvore, mas a mais comum perda de todas: um sentido amor. Curiosamente, existe um lago Portmore no país das Terras Altas. 








(Fotografia aérea do Lago Portmore.)