quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O MELRO


Oh, melro no arbusto, 
és feliz onde o teu ninho está. 
Ermita que nenhum sino tange, 
doce, leve, sereno é o teu canto!


Anónimo (por volta do séc. VII). (1)






(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Kuno Meyer, em "Irish Verse, An Anthology by Bob Blaisdell" - Dover Publications, 2002)






(1) Este poema é um dos mais antigos poemas encontrados naquelas latitudes. Escrito por um monge copista na actual Irlanda, foi descoberto como um esboço rabiscado na margem de um livro que este à época copiava. Não obstante a sua antiguidade, é deveras revelador dos princípios básicos que fariam a poesia daquela cultura. Contudo, não será ele "celta" por ligação directa àquele histórico povo, mas "celta" pela incidência directa com as paisagens onde os mesmos viveram. Ainda que se trate de um monge católico, por aqueles séculos em grande número na região, a verdade é que o autor não ficou indiferente aos encantos naturais da paisagem circundante nem aos elementos que de modo tão lírico e virginal a embelezavam.
É importante sublinhar que falamos de uma ilha situada no extremo noroeste do mundo então conhecido, livre do domínio e influência romanas, e que somente no séc. VI teria um contacto mais sério com os princípios cristãos, caminho esse desbravado anteriormente pelo famoso São Patrício (385 - 461), o evangelizador da Irlanda e o seu santo padroeiro. 
Nos dois séculos seguintes, por efeito da sua própria literatura de tradição oral e os meios escolásticos implementados pelos cristianismo, o território tornar-se-ia aquilo que Samuel Johnson (1709 - 1784) chamou de "a escola do ocidente europeu, um lugar que privilegiava a literatura e a santidade". Em suma, um refúgio para muitos dos primeiros cristãos que lograram escapar do jugo romano e suas influências culturais. Monges que decidiram dedicar as suas vias à contemplação e ao estudo encontravam na ilha um santuário ímpar, ideal para o natural desenvolvimento das suas intenções. O autor deste poema seria decerto um deles, embora o texto em si seja uma espécie de desabafo que revela uma certa "inveja" pela liberdade e alegria jovial do melro visado em verso. O seguinte, «és feliz onde o teu ninho está», subentende um desejo profundo do autor poder gozar uma felicidade frugal idêntica àquela que o pássaro parece traduzir através do seu mavioso canto, ainda que "ninho" possa funcionar como símbolo para "casa" ou até "coração", conferindo ao poema uma nova profundidade. Um pouco mais à frente, em «Ermita que nenhum sino tange», o monge coloca-se numa condição semelhante à da negra ave, gabando apenas a sua ausência de obrigações monásticas e, claro, a liberdade que daí advém. Quase que se poderá adivinhar a conclusão reflexiva: se o Homem fosse mais simples como os animais, decerto seria bem mais feliz.
Estes primeiros anos de produção literária na ilha resultaram em poemas simples e breves, de verso conciso, lembrando até a índole dos preceitos que, muitos anos depois, celebrariam o Haiku no Japão. Uma grande intimidade com a natureza circundante, a arte de dizer pouco enquanto permite antever muito mais e uma notável simplicidade de processos, veramente minimalista, fariam os louvores dos poemas de então.
O florescimento da literatura irlandesa no gaélico original foi deveras extraordinário, resistindo inclusive às sangrentas invasões Anglo-Saxónicas, embora tenha registado um marcante declínio no início do séc. XIX por força da imposição da língua inglesa às novas gerações de então, medida essa, curiosamente, implementada pelas escolas católicas na Irlanda. Décadas depois, o negro período conhecido por "A Grande Fome", motivando inúmeras mortes e emigrações em massa, daria a machadada quase final numa língua outrora tão próspera em magníficas criações artísticas, até o princípio do séc. XX trazer a independência da Irlanda relativamente ao domínio inglês e diversos movimentos patrióticos e de criação poética terem reavivado a antiga chama de uma cultura literária deveras singular. 










2 comentários:

  1. Gostei imensamente do poema e da escola que q os monges adotaram para as suas reflexões religiosas. Sentiam-se feliz por viverem naquele santuário de santidade. Aposto muito melhor q estar em Dubai.

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    1. Sem dúvida que sim, Lígia...
      Grato pela sua visita. Fico feliz que tenha gostado.
      Beijos.

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