sexta-feira, 9 de março de 2018

A ROSA DE TRALEE


A pálida lua erguia-se sobre o verde monte,
o sol tombava por detrás do azul mar; assim os vi,
enquanto deambulava com o meu amor até à fonte
cristalina que nasce no belo vale de Tralee¹.

        Era encantadora e bela como a rosa do verão,
        ainda que não fosse só a beleza a me cativar;
        foi a verdade daqueles olhos, a cada amanhecer,
        que Mary, a Rosa de Tralee, me fez amar.

As frias sombras do anoitecer o seu manto abriam,
e Mary, sorrindo, escutava-me com atenção;
pelo vale, os lívidos raios lunares se vertiam,
quando da Rosa de Tralee ganhei o coração.

        Embora encantadora e bela como rosa de verão,
        não foi só a sua beleza a me cativar;
        foi a verdade daqueles olhos, a cada amanhecer,
        que Mary, a Rosa de Tralee, me fez amar.

Na Índia distante, nas agitações da guerra que farta,
a sua voz foi um alívio, todo o conforto que senti;
mas a gélida mão da morte agora nos aparta.
Estou só nesta noite, sem a minha Rosa de Tralee.

        Era encantadora e bela como a rosa do verão,
        ainda que não fosse só a beleza a me cativar;
        foi a verdade daqueles olhos, a cada amanhecer,
        que Mary, a Rosa de Tralee, me fez amar.





William Pembroke Mulchinok (1820 - 1864) ²





(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir do original, com a preservação do esquema de rima escolhido pelo autor.)




(De entre as variadíssimas versões deste tema, sugere-se a de John McDermott, certamente uma das mais bem conseguidas: https://www.youtube.com/watch?v=uj9h1Vp5x3c . Desfrute.)






(1) Tralee, ou Tráigh Lí, significando "Vertente ou Margem do Lee" (um rio), é a maior cidade do condado de Kerry, na região sudoeste da Irlanda, sendo igualmente a sua capital. 
Além de ser o local de confluência de vários pequenos rios, de Tralee partia, em tempos muito remotos, uma estrada que atravessava as montanhas a sul do lugar, e cujos vestígios ainda são identificáveis. Por essa rota, é possível chegar a um conjunto de rochas ordenados com um rochedo no topo chamado "O túmulo de Scotia", pois julga-se que uma filha de um faraó egípcio tenha aí sido enterrada, conferindo à localidade uma importância histórica tremenda. (Scotia ou Scota, que significa "rebento de flor", é considerada, para efeitos mitológicos, a mãe dos irlandeses, sendo mais tarde a partir daí que a Escócia receberia o seu nome). 
A cidade foi fundada no século treze por anglo-normandos, tendo sido incendiada por ordem de Isabel I de Inglaterra, em 1580, como retribuição pelo papel dos locais numa rebelião contra a coroa inglesa. 



(2) Apesar deste popular tema do cancioneiro tradicional irlandês ser por vezes atribuído a  um outro autor, parece existirem cada vez mais evidências que fazem de Mulchinok o seu criador por completo direito. Este, autor de diversos poemas, e que em diversos meios nem é tido por poeta de renome, nasceu em Tralee, no seio de uma abastada família protestante.
A canção-poema que hoje se apresenta terá surgido numa fase inicial da sua vida de adulto, pois professa a profunda paixão que nutriu por uma rapariga católica de origens muito humildes, Mary O'Connor. Natural da mesma região, era filha de um sapateiro e de uma empregada doméstica. Aos dezassete anos entra na casa dos Mulchinok como ajudante de cozinha, mas rapidamente assume o papel de ama das sobrinhas do poeta. É precisamente numa das visitas que este realiza às suas sobrinhas que encontra pela primeira vez Mary e por ela se apaixona perdidamente.
A família, como seria de esperar, não recebeu bem a notícia, tendo ficado especialmente alarmada quando soube que William escrevia e enviava poemas para Mary. Ademais, na mesma altura descobre que o jovem poeta contribuía literariamente para o jornal "The Nation", uma publicação subversiva que aclamava a revolta armada de todos os irlandeses contra a coroa britânica. Ora, a família, sendo protestante, era totalmente leal à soberania inglesa.
Em 1843, William liderou um grupo de homens modestamente armados até ao lugar onde se daria uma discussão eleitoral. Uma escaramuça entre grupos rivais tem início e um homem acaba por morrer. Fatidicamente, as autoridades responsabilizam William pelo acto. Encontrava-se já noivo de Mary, mas com um mandato de captura por homicídio em seu nome a circular, rapidamente compreende que deve deixar o país. Assim, embarca para a Índia, onde se torna correspondente de guerra.
É durante este período da sua vida, pelas cartas que então ia escrevendo, que se verifica o aparecimento do carinhoso nome que deu à sua amada, a "Rosa de Tralee". Presente em muitas das suas linhas, faz-nos crer, pelo modo corrente do seu uso, que o apelido terá surgido ainda antes da sua partida para o oriente.
Graças ao notável trabalho de cobertura no território, as autoridades militares decidem mais tarde intervir a seu favor no processo, ilibando-o de todas as acusações. Assim, na primavera de 1849 regressa finalmente à sua terra natal. Infelizmente, e este é sem dúvida o aspecto mais implacável e trágico da sua existência relativamente curta, o dia em que chega a Tralee é precisamente o mesmo do funeral da sua bem amada. 
Embora devastado, apressa-se a casar com uma mulher que conhecia há largos anos e a partir com ela para os Estados Unidos. Torna-se pai de dois filhos, publica (em 1851) uma colecção dos seus poemas e em 1855 decide regressar à Irlanda, deixando a mulher e dois filhos para trás. 
Ainda oprimido pelos trágicos acontecimentos que se abateram sobre ele e Mary, além do próprio falhanço do seu casamento, entrega-se tristemente a uma vida de alcoólatra, decisão essa que contribuiria fortemente para o seu rápido fim de vida.
Resta acrescentar que a melodia feita para este poema é da autoria do violinista inglês Charles William Glover, falecido um ano antes de William. O tema adquiriu renome internacional quando John McCormack o cantou em "Song O' My Heart", de 1930. Desde 1959 realiza-se em Tralee um concurso de beleza, dos mais importantes a nível nacional, que anualmente elege a nova "rosa de Tralee".





(Mary O'Connor e William P. Mulchinok, ambos segurando uma rosa
na estátua erguida em sua memória)



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