terça-feira, 12 de setembro de 2017

Dois poemas de Anthony Raftery


I. Raftery, eu sou


Sou Raftery, o poeta,
cheio de esperanças e amor,
de olhos que não possuem luz,¹
silêncio que não conhece dor.

Sigo na jornada para oeste,
guiado pela luz do coração;
enfraquecido e fatigado,
até ao fim desta peregrinação.

Observai-me todos, agora:
apoiando na parede os costados,
tocando as minhas melodias
para bolsos já esvaziados.



(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original, sem dispensar a consulta das traduções para inglês de Douglas Hyde e Kevin Bradley). ²





II. (Estou velho)


Estou velho, a minha flor murchou.
Por tantas vezes do rumo me desviei.
Dias houve em que o pecado vivi,
mas em Tua graça esperança terei.



(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original e com consulta da tradução em inglês de Críostóir Ó Floinn) ³







Antoine Ó Raifteirí (Anthony Raftery) (1779/84 - 1835) ⁴








(1) O autor faz uma óbvia referência à sua cegueira. Não nasceu com essa condição, pois muito jovem até trabalhou no estábulo de um proprietário local, em Sligo; adquiriu-a quando contraiu sarampo, também em tenra idade, a doença que sem piedade reclamaria a vida dos seus oito irmãos. Alguns contemporâneos, contudo, afirmaram que Raftery não seria totalmente cego, teria apenas grande dificuldade em ver, sendo capaz de distinguir obstáculos (que se lhe apresentariam em formas bastante enevoadas), mas dado o testemunho do próprio poeta na sua criação... não iremos entrar em discussões pouco significativas. 


(2) O poema, sumariamente biográfico, trata-se no fundo de uma pequena canção, das mais famosas do autor, profundamente humana e adornada por uma certa ironia auto-depreciativa e uma tristeza subtil, aquela que tão bem os autores irlandeses sabiam incutir. 
Uma versão da nota de cinco libras irlandesas chegou a apresentar no seu verso uma gravura onde se podia ler, em gaélico, a primeira quadra do poema. 
Embora as traduções referidas não apresentem rima, esta, por existir no original, manteve-se para a versão portuguesa no mesmo arranjo com que inicialmente surgiu.


(3) Terá sido este o derradeiro poema, sem título, que o autor escreveu em vida, também em gaélico. 
Conta-se a história de uma família que vivia perto do cemitério onde o corpo de Raftery está sepultado, que afirmava que numa noite invernal o poeta dirigia-se até lá, talvez em busca de abrigo, quando subitamente uma falha na sua saúde o fez vacilar. Terá então sido levado até uma outra residência perto do local, onde viria pouco depois a falecer, em plena véspera de natal. A dita família, dado o sucedido, viu o poeta como alguém abençoado, apenas pelo seu falecimento ter ocorrido em dia santo. Como no dia de natal ninguém trabalharia, foi colectado entre os vizinhos dinheiro para comprar um caixão, sendo Raftery enterrado no mesmo dia em que falecera. Se a quadra foi composta já na cama da família que o abrigou... é mistério que ainda não conheceu solução. 
O original apresenta rima e a tradução inglesa consultada manteve-a. Naturalmente, a portuguesa não se iria expurgar dela. Contudo, a versão inglesa foi um pouco mais longe e, para privilegiar rima e sentido, sugeriu palavras que o original não contém. Fiéis a este, pautámos a versão lusitana o mais próximo possível da gaélica, tanto quanto uma transferência do género o poderá permitir. Em inglês, por exemplo, surge a palavra "Deus" na última estrofe, enquanto é sabido que o poeta não a usa directamente («em Tua graça»). Um pouco mais adiante, para efeitos de rima, o tradutor em inglês recorreu à palavra "pray" ("orar"), expressão que Raftery não utiliza no seu poema (apenas "dóchais", ou seja, "esperança"). Ponderando sobre o que foi escrito, foi obviamente dada total prioridade à versão original.


(4) O poeta nasceu em Killedan, condado de Mayo, Irlanda, em 1779 ou 1784. Filho de um tecelão, o único dos nove que sobreviveu ao surto de sarampo, cedo iniciou-se na vida activa por forma a auxiliar monetariamente a sua família de parcos haveres. 
A sua cegueira pode muito bem ter contribuído para o ofício que o celebrizou, dado que era habitual os pais de uma criança cega incentivarem o estudo da música, pelo menos a aprendizagem de um instrumento, por modo a ter uma garantia futura na sua vida, apesar da deficiência física. Foi o que se passou com o nosso poeta, somado a uma voz afinada e a um talento inato para a composição musical e poética. 
Como muitos outros, na época, teve um patrono. Mas por razões que a própria história não define com clareza, dado o elevado número de versões que tentam explicá-la, o patronato não registou um serviço longo. Raftery decidiu-se então a vaguear pelo país, partilhando as suas canções e poemas com quem as quisesse pagar. Esse facto fez do poeta um dos derradeiros poetas errantes da Irlanda, um menestrel, um bardo deambulante - figura muito comum na Irlanda de outrora. Homem de baixa estatura, embora forte e ágil, distinguia-se pelo casaco de lã e calções de veludo que sempre envergava, além da sua fiel rabeca, companhia de tantas canções. 
O seu trabalho teve a peculiaridade de nunca ter sido escrito. Através dos esforços de amigos e admiradores dedicados, as rimas que compôs foram sendo compiladas. 
O grande vulto da literatura irlandesa, W. B. Yeats, foi um dos que mandou erigir junto à campa do poeta, em Craughwell, no condado de Galway, o memorial que em sua homenagem ainda hoje perdura.









(Uma das estátuas erguidas em memória do poeta, na Irlanda)




2 comentários:

  1. Muito obrigado pela sua visita e comentário, Lígia. Agrada-me saber que a publicação foi do seu agrado.
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    Renovo o meu sincero agradecimento.
    Beijos. Volte sempre!

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