quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O CÂNTICO DE WEXFORD (Todos vós, gente de bem)



Todos vós, gente de bem, na quadra presente
Meditem com atenção, tenham em mente
O que pelo bom Deus se fez realizado:
O envio à terra de Seu filho bem-amado.
Seja com Santa Maria feita uma oração
A Deus, neste dia, com amor no coração.
Em Belém, ao raiar dum novo dia,
O nosso Messias abençoado nascia.

Na noite anterior ao feliz acontecimento,
A virgem e seu guia, em passo lento,
Por muito tempo não deixaram de procurar
Na vila um sítio onde pudessem pernoitar.
Vejam agora como tudo se sucedeu:
Toda a porta se fechou, para lamento seu;
Tal como fora predito, apenas sobrou
Um humilde estábulo, que se não recusou.

Perto de Belém pastores se encontravam,
Rebanhos de cordeiros e ovelhas vigiavam;
Os anjos do Senhor vieram em aparição,
E tal surpresa pô-los em tamanha agitação.
Aprontem-se, disseram os anjos do Senhor,
E partam para Belém, sem nenhum temor,
E aí encontrarão, nesta manhã feliz,
Acabado de nascer, Jesus, príncipe petiz.

De coração grato e no espírito a esperança,
Foram ao encontro da sagrada criança.
E assim, como pelos anjos fora profetizado,
O Salvador pelos pastores foi admirado.
Numa manjedoura deposto, dormitava;
A Santa Virgem a Seu lado estava,
Zelando para que nada o pudesse afligir,
Ele que nasceu para todo o conflito extinguir.

De longe vieram três Magos Reis, chegando
Pela graça duma grande estrela cintilando.
Por tanto tempo vaguearam sem parar,
Até o repouso de Jesus enfim encontrar.
E quando descobriram, passados dias,
O lugar onde descansava o Messias,
Humildemente a Seus pés se lançaram
E com o oiro e incenso o presentearam.





Tradicional (da Irlanda - prov. séc. XII) ¹







(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa do tema.)












(1) É certamente um dos temas natalícios mais famosos da Irlanda. A sua origem é medieval, e enquanto vários estudiosos afirmam que se deverá datá-lo como sendo pertença do século XII, outros afirmam que pelo estilo de composição, escrita e musical, é mais provável que tenha nascido nos séculos XV ou XVI. 
Pouco importa, na verdade. Até porque o cântico permaneceu por vários séculos quase na obscuridade. Ou seja, era algo conhecido localmente, mais um tema de autor incerto que era popularmente conotado com o Natal e passava, de boca em boca, ainda em gaélico, para as gerações seguintes. Mas graças ao trabalho de  William Grattan Flood (1859 - 1928) o tema ressurgiu após séculos de quase esquecimento e adquiriu uma notoriedade nunca antes alcançada.
Flood foi um destacado historiador, musicólogo, compositor e autor irlandês, e a dada altura registou este tema directamente da boca dum cantor local. Flood era também organista e o director musical da catedral de St. Aidan, em Enniscorthy, no condado de Wexford. Quando recolheu o tema, editou-o num livro que compilava outros cânticos natalícios - e assim se deu o primeiro passo para a difusão do cântico, até atingir a universalidade de que hoje desfruta. 
Por via do labor de Flood, o cântico deu notoriedade à cidade de Enniscorthy, tanto que concede a noção de aí ter sido composto. No entanto, é mais comum apresentar-se com o nome do condado, ou seja, Wexford, pelo que assim decidimos mantê-lo. (Também é possível encontrá-lo a usar o primeiro verso como título). 
Os mais interessados poderão escutar uma versão (de várias existentes) do tema, interpretado pelo famoso projecto Celtic Woman. Basta clicar na seguinte ligação: https://www.youtube.com/watch?v=jvi8DAGUu5I . Importa acrescentar que a versão que no vídeo é possível escutar não contempla o texto integral do cântico, confirme aqui se traduziu. 


A todos os nossos estimados amigos leitores, desejamos umas festas felizes. 










"The Christmas Tree",
de Albert C. Tayler
(1862–1925)


terça-feira, 23 de novembro de 2021

Três poemas de Amor (e seus derivantes, digamos assim) de W. B. Yeats


I. O PENOSO PARTO DA PAIXÃO



Quando a angelical, flamejante porta num clamor de alaúdes se escancara;
Quando uma paixão imortal respira em argila ao efémero fadada;
Nossos corações o flagelo suportam, a coroa de espinhos, a estrada
Povoada de amargos rostos, na palma e no flanco a escara,
A esponja pesada de vinagre, as flores dum ribeiro apaziguado;
Sobre ti debruçados, o cabelo deixaremos caído,
Para que um leve perfume se desprenda, de orvalho embebido,
Lírios de esperança em palidez mortal, rosas de sonho apaixonado.





II. O AMANTE FALA DA ROSA NO SEU CORAÇÃO



Todas as coisas incomuns e quebradas, todas as coisas gastas e ancestrais,
O choro duma criança na estrada, o ranger duma carroça em desconjunção,
Os pesados passos dum lavrador chapinhando os bolores invernais,
Mancham tua imagem que desponta uma rosa no fundo do coração.

O mal feito pelas coisas informes é maior do que se tem contado;
Anseio por recriá-las e sentar-me num verde monte em solidão,
Com a terra e o céu e a água refeitos, como um caixão doirado
Para meus sonhos de tua imagem que uma rosa abre no fundo do coração.





III. ELE OFERECE À SUA AMADA ALGUNS VERSOS



Prende o teu cabelo com um alfinete doirado,
Segura toda a madeixa vagabunda;
Ordenei que o coração compusesse estes versos banais:
Neles trabalhou todo o dia, dedicado,
Edificando uma triste graciosidade, profunda,
De batalhas de tempos ancestrais.

Basta ergueres tua mão de pálida pérola vestida,
Prender teu longo cabelo e suspirar;
E os corações de todos os homens ardem e se descompassam;
E a espuma como uma vela sobre a areia enegrecida,
E as estrelas subindo um céu d’orvalho a cintilar
Vivem somente para iluminar teus pés que passam.





William Butler Yeats (1865 - 1939)










(Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais publicados na obra The Wind Among The Reeds, primeiramente editada em 1899.)













(Retrato a carvão de Yeats por John S. Sargent - 1908)



domingo, 31 de outubro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 5

 

BRUXAS DISFARÇADAS DE LEBRES

 
 
 
      Um jovem rapaz, na ilha de Lismore¹, havia saído para caçar. Perto de Balnagown Loch², descobriu uma lebre e sem hesitar disparou sobre ela. O animal soltou um grito que não era deste mundo, e só então ao jovem ocorreu o facto de não existirem lebres em Lismore. Cheio de medo, largou a sua espingarda e desatou a correu em direcção a casa.
         No dia seguinte, regressou ao local para resgatar a arma e ouviu dizer que uma certa mulher, tida na vizinhança como bruxa, estava de cama com uma perna partida. Um tempo depois, essa mulher encontrou o rapaz e pregou-lhe uma valente sova. O episódio corroeu-o por dentro, e o rapaz nunca mais se endireitou. Ficava longos tempos a olhar o vazio, cismando. Tornou-se um ocioso, um inútil.
           
***
 
      Um Manxman³, que há alguns anos atrás estava em Tiree⁴, contou a seguinte história.
       Um grupo de homens estava à caça e não conseguia encontrar uma só lebre. Uma senhora idosa, sabendo disto, disse ao seu neto que fosse ao encontro dos senhores e que lhes indicasse o lugar onde poderiam encontrar lebres, pedindo por tal informação meia coroa.  
         O rapaz assim fez: encontrou os homens, recebeu o seu dinheiro e guiou-os ao local que a sua avó havia indicado. Quando encontraram uma lebre, o rapaz de súbito gritou: «Corre, Avó! Corre!». A lebre começou a correr na direcção da casa da velha senhora, mas os cães que caçadores traziam seguiram-na. Contudo, nas traseiras da dita casa perderam o rastro à lebre. A velha senhora foi encontrada lá dentro, tranquilamente sentada à sua lareira.
 
***
 
      Conta-se, em Wigtonshire⁵, que uma lebre foi vista a correr chaminé acima e que uma mulher, suspeita de bruxaria, apareceu com os pés queimados.
 
 
 
 
 

(Editado pela primeira vez por J. G. Campbell, in “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902.)
 
 
 
 
 
 



(Versão de Pedro Belo Clara a partir da edição de Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)












(1) Uma pequena ilha, de pouco mais de 2000 hectares, situada nas Hébridas Interiores, na Escócia. Actualmente alberga menos de 200 habitantes. 


(2) Um lago dessa ilha.


(3) Habitante da Ilha de Man, que se situa no mar da Irlanda, entre a Inglaterra e a Irlanda do Norte.


(4) A ilha mais ocidental das Hébridas Interiores. Nela habitam cerca de 650 pessoas.


(5) Um antigo condado escocês situado na região sudoeste do país. 













(autor desconhecido)


sábado, 16 de outubro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 4


Nas colinas de Ross-shire¹, um velho homem, que no seu tempo não fora propriamente gentil, falecera na casa do filho, uma cabana solitária, afastada das restantes casas.

O morto foi colocado numa mesa dum pequeno quarto, e o seu filho pastor, deixando mulher e filhos na cabana, partiu para o vale à procura de pessoas para assistir ao velório e depois ao funeral.

À meia-noite, uma das crianças, que ainda brincava pela casa, espreitou pela fechadura do quarto e gritou: “Mãe, mãe! O avô está a levantar-se!”.

A porta do quarto foi num ápice trancada, e o falecido, apercebendo-se que não a conseguia abrir, começou por arranhar e depois escavar a terra por debaixo da porta, tentando abrir uma passagem para a sua fuga.

As crianças correram para junto da mãe, e em terror escutavam aquele som sinistro. 

Por fim, a cabeça do morto apareceu por debaixo da porta. O cadáver redobrou, então, os seus esforços para escapar, aumentando assim, se possível fosse, o horror da pobre mãe e das suas crianças.

O corpo já havia saído pela metade quando o galo cantou. Subitamente, o morto perdeu as suas forças, caindo inerte na própria cova que abrira.

Desde esse dia nunca mais se conseguiu cobrir totalmente aquele buraco. O chão da casa tinha sempre um declive nesse preciso lugar.







(Narrador anónimo. Editado pela primeira vez por J. G. Campbell, in “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902.)









(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da versão editada por Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)










(1) Um antigo condado escocês, cuja capital era Dingwall, uma cidade que actualmente alberga pouco mais que cinco mil habitantes. Situado nas Terras Altas, foi anexado administrativamente às regiões circundantes em 1975, adoptando, como as demais, essa mesma designação.











(Autor desconhecido)


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 3

 

       Uma manhã, bem cedo, ia eu a caminho da casa de Allan MacDonald. Seguia o meu rumo e, a dada altura, caminhava junto a um monte de turfa, erguido como se uma parede fosse; do nada, caí ao chão. Não dei grande importância ao caso, mas uns meros segundos depois o mesmo aconteceu. Culpei-me pela falta de atenção nos meus próprios passos; levantei-me e segui caminho – mas logo depois voltei a cair. Olhei em volta e julguei ver a sombra duma mulher ao meu lado. Quando me ergui e voltei a caminhar, senti, ou assim me pareceu, que algo me tocava no ombro, e então caí outra vez. Após o sucedido, decidi que não voltaria a levantar-me; assim, fui de joelhos até à casa onde me dirigia – e a sombra foi no meu encalço, mas não voltou a tocar-me.

      Na noite seguinte, fui ao velório duma velha senhora que havia falecido numa quinta. Perguntaram-me se poderia voltar no dia seguinte e trazer cordas para levar o caixão à terra; e eu fui, levando as cordas no bolso que estava do lado donde insistentemente me empurravam para o chão, naquele estranho dia.

Não possuo outra explicação para este fenómeno se não a seguinte: foi a velha senhora que então falecera que caminhou ao meu lado e tantas vezes, sem explicação aparente, me fez cair.

 


- Alexander Brown, Balefuil. 

(Relato colectado pela primeira vez na obra "Records of Argyll: Legends, Traditions and Recollections of Argyllshire Highlanders", de Archibald Campbell, 1885.)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir do compilado na obra de Neil Philip: "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)















(Autoria: Steve Outram)


sábado, 4 de setembro de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 2


A PATA CINZENTA


 

(É esta, muito provavelmente, a mais conhecida e popular história nas Terras Altas. Raro é aí haver uma velha igreja que não seja apontada como o lugar onde o seguinte caso se deu.)

 

 

      Na grande igreja de Beauly¹ ocorriam de noite avistamentos estranhos e escutavam-se sons misteriosos, coisas não deste mundo, e ninguém que tivesse visitado o pátio da igreja ou o cemitério adjacente a horas tais regressou para contar a história.

      Um alfaiate destemido propôs-se a resolver o caso, apostando que numa qualquer noite iria até à igreja assombrada e aí permaneceria durante o tempo que demorasse a costurar um par de calças.  

Não tardou a lançar-se ao caminho e assim a iniciar a tarefa a que se propôs.  

        A luz da lua cheia trespassava os vitrais da igreja, e num primeiro momento tudo estava silencioso. Contudo, à meia-noite, hora morta, uma grande e medonha cabeça emergiu duma tumba, dizendo:

 Observa a velha vaca cinzenta que não tem o que comer, alfaiate.

Este respondeu:

 Vejo o que dizes e costuro estas calças.

Logo notou que, enquanto ele falava, o fantasma permanecia quieto, mas quando retomava o seu fôlego este parecia aumentar de tamanho.

     Já era agora visível o pescoço, suportando a cabeça medonha. Então, o fantasma disse:

 Observa a comprida doninha grisalha que está sem alimento, alfaiate.

O pobre homem continuava o seu trabalho temerosamente, mas ainda assim respondeu-lhe:

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças. – disse, arrastando cada palavra o mais que conseguiu. Por fim, a voz falhou-lhe e não teve alternativa se não inspirar profundamente.

            A aparição cresceu ainda mais e disse:

 Um comprido braço cinzento que está sem carne ou alimento, alfaiate.

O alfaiate, que já tremia, não abandonou o seu trabalho enquanto respondia:

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças.

     Com um novo fôlego, a coxa da aparição tornou-se visível e, medonha, continuou:

 Uma comprida e torna perna, alfaiate, que carne não tem.

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças.

Um longo e descarnado braço esticava-se já na direcção do alfaiate:

 Uma comprida pata cinzenta sem sangue ou carne, alfaiate. – dissera a aparição.

Quase a terminar o seu trabalho, o alfaiate respondeu de novo:

 Eu vejo, meu filho, eu vejo; vejo o que dizes e costuro agora mesmo estas calças.

Continuava o seu labor com um coração cada vez mais fraco, o alfaiate. Por fim, teve de respirar novamente, e o fantasma, esticando os seus dedos esguios e ossudos, começando a tactear o ar diante do pobre homem, disse:

 Uma grande garra cinzenta que está sem carne para se suster, alfaiate.

Nesse mesmo momento, o corajoso homem deu o último ponto nas suas calças e, sem hesitar, alimentado pelo pânico, desatou a correr em direcção da porta. A garra, porém, alcançou-o, e num movimento os dedos ossudos, empurrando o alfaiate contra o batente da porta, agarraram apenas a peça que este havia costurado.

O alfaiate estremecera de cima a baixo, tomado pelo terror, e de tal modo correu a caminho de casa que até poderia cortar as ervas do caminho com a velocidade do seu passo… 

Ainda hoje se diz ser possível observar a marca da mão fantasmagórica na porta da malfadada igreja.

 

 

 

 

(Narrador anónimo. Editado pela primeira vez por J. G. Campbell em “Witchtcraft and Second Sight in the Highlands and Islands of Scotland”, 1902. )





(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da versão editada por Neil Philip em "Scottish Folktales", Peguin Books,  1995.)







(1) Vila do condado de Inverness, nas Terras Altas escocesas, perto do rio com o mesmo nome.










"A Haunted Church",
de John Patience.

domingo, 22 de agosto de 2021

ESCÓCIA SOBRENATURAL – Episódio 1



Estava uma noite em certa casa, em Balefuil¹, na companhia de vários rapazes. Quando estávamos todos sentados a conversar, vi a aparição duma mulher morta, envolta na sua mortalha, a dirigir-se para a casa. Dei uns passos atrás para a deixar passar. Ela continuou na direcção de Hugh Brown, de Manal¹, e foi como se o trespassasse. Imediatamente ele ficou pálido e indisposto, ergueu-se e saiu para o exterior. Sabendo o que se poderia passar com ele, segui-o. Lá fora começou a vomitar, e pouco depois começou a tomar os ares de quem vai desfalecer. Quando se recompôs, perguntaram o que lhe tinha acontecido. Ele disse que não sabia, mas que sentira um grande peso cair sobre si repentinamente, e então viu-se fatigado e doente, e prestes a desmaiar, e então pensou que se saísse dali e fosse apanhar ar fresco se sentiria melhor. Algum tempo depois, contei-lhe tudo o que tinha visto antes do caso se dar. 





- John MacDonald, de Balefuil.
(Relato colectado pela primeira vez na obra "Records of Argyll: Legends, Traditions and Recollections of Argyllshire Highlanders", de Archibald Campbell, 1885.)











(1) Localidades do condado de Argyll, situado na região ocidental da Escócia. 














(Tradução de Pedro Belo Clara a partir da obra de Neil Philip: "Scottish Folktales", Peguin Books, 1995.)











The Moon Over The Lake,
John Piper
(1903 - 1992)