segunda-feira, 11 de março de 2019

KILKELLY, IRLANDA (Primeira Parte)




Kilkelly¹, Irlanda, 1860.
John, filho querido e amado:
o teu bom amigo, o mestre-escola Pat McNamara²,
para escrever estas palavras está melhor capacitado.
Os teus irmãos partiram todos para Inglaterra
em busca de trabalho, a casa está tão triste e vazia.
A colheita das batatas ficou bastante afectada³,
estragou-se de um terço a metade - uma razia! 
E a tua irmã Bridget e o Patrick O'Donnell
têm para junho o seu casamento marcado.
A tua mãe diz: não trabalhes nos caminhos-de-ferro,
e vê se em breve voltas aonde és estimado.





Peter Jones. ⁴









(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês.)







(Para não estragar a surpresa que devemos a si, estimado leitor, somente no final desta série iremos sugerir, como habitualmente, a versão do tema que consideraremos mais pertinente, interessante ou bela.)










(1) Kilkelly é uma pequena vila do condado Mayo, na região noroeste da Irlanda, tornada célebre precisamente devido à fama desta canção. 
O seu nome deriva do gaélico Cill Cheallaigh, em que Cill significa "igreja" (pode ter ocorrido uma deturpação, de coill para cill, que será dizer de "bosque" para "igreja") e Cheallaigh surge como derivação, de acordo com os estudiosos, de Ceallach, que se poderá traduzir por "Celso", um nome próprio. Mas o caso é complexo, pois a tradução literal aponta para o sobrenome comum Kelly. 
Porém, existe uma lenda ligada ao local. Faz referência a um filho do rei de Connaught (um reino ocidental da Irlanda, da qual era parte o actual condado de Mayo), nascido no século VI da nossa era, que ostentava esse nome (Celso). Obteve educação e foi ordenado padre, chegando depois a Bispo. Contudo, após um período de conflitos internos, Celso tornou-se eremita numa pequena ilha da Irlanda. Acabaria, contudo, assassinado, e o seu irmão, já rei, recusou enterrá-lo nos lugares que lhe seriam destinados. As gentes campestres que habitavam os arredores da actual Kilkelly, aceitaram o corpo do eremita e aí foi ele humildemente enterrado. O nome da localidade presta-lha, assim, um póstumo louvor, pois não há túmulo que comprove a história.
Nos dias que correm, Kilkelly é um refúgio campestre para quem procura um pouco de paz ou simplesmente desfrutar duma existência tranquila, onde os piqueniques e a pesca em lagos são as actividades mais comuns. 



(2) Tal como o carácter da carta, embora sumariado e adaptado, o nome deste mestre-escola simpático e habilidoso na escrita é verdadeiro. 
Patrick McNamara nasceu em 1830 e foi por longos anos professor na escola de Tavrane, para a qual, todos os dias, caminhava umas boas milhas, estivesse chuva ou, mais raro, sol, cumprindo alegremente o seu dever. Pai de nove filhos, viu um que lhe seguiu os passos, também na mesma escola. Aliás, até à década de sessenta do século XX houve sempre um McNamara na escola de Tavrane, o que não deixa de ser espantoso.  
Por ser letrado, não se estranha a importância de tal figura na sociedade rural da Irlanda de então. No caso, além de ser amigo de John, o destinatário emigrado nos Estados Unidos, é Pat quem escreve em nome dos seus pais. Era comum, naquele tempo, padres e professores lerem as cartas recebidas pelos locais ou escreverem as que estes desejassem enviar. 
Sem o saber, uma canção enternecedora torná-lo-ia famoso. Faleceu em 1902, em Orlar, quase na mesma região onde vivera, e ainda hoje sobrevive o seu diário bem como um conjunto de diversas fotografias da época. 



(3) Este acontecimento foi o que precipitou a Grande Fome da Irlanda, que terá vitimado cerca de um milhão de pessoas. Das sobreviventes, quase outro milhão emigrou. A população irlandesa decresceu em 20% naqueles negros anos. As zonas sul e ocidental do território foram as mais afectadas numa província que os ingleses governavam com tremenda negligência. Dado que a batata era a principal fonte de subsistência dos camponeses, os sucessivos anos em que o míldio arrasou culturas (um pouco por toda a Europa também, diga-se) levaria ao inevitável desfecho. 



(4) Curiosamente, é norte-americano o autor desta canção. A ligação com a Irlanda descobre-se, contudo, muito facilmente, dado ser descendente de emigrantes desse país. E foi precisamente um resquício dessa ligação que originou a composição deste famoso tema, tão belo quanto melancólico.
Algures em finais da década de setenta, início da de oitenta, Peter Jones encontrou no sótão da casa dos seus pais em Bethesda, no estado de Maryland, uma caixa contendo um conjunto volumoso de cartas antigas. Rapidamente reparou que eram centenárias e tinham como destinatário o seu bisavó que ainda jovem e solteiro deixara a Irlanda rumo à América: John Hunt. 
Ora, este nome é desde já elucidativo. Trata-se, é claro, do John referido na letra da canção, embora esta se desenrole pela voz do seu pai que, sendo iletrado, pediu a um mestre-escola local, amigo do seu filho, o favor de escrever em seu nome. A letra somente apresenta a versão do pai, dado que Jones não teve acesso às cartas enviadas para a antiga casa. Em todo o caso, achando a descoberta maravilhosa, e tocado pela súbita oportunidade de se religar às suas origens, apressou-se a resumir todos os conteúdos e a escrever uma canção que, de certo modo, homenageasse a própria família. O título decorreu do facto de todas elas terem sido expedidas da pequena vila de Kilkelly. (Escusado será dizer que Peter Jones tornou-se numa pessoa extremamente querida dos locais.)
Na realidade, as cartas vão de 1858 a 1893; na canção apresentam-se por períodos de dez anos os acontecimentos entre 1860 e 1892. Como se compreende, o texto agora apresentado é apenas a primeira de cinco partes. Em cada parágrafo partilham-se notícias de nascimentos, mortes, casamentos e demais preocupações da vida rural de então - elementos que Jones considerou importantes de partilhar, dada a comovente beleza que neles encontrou. Pelo próprio, sobre o tema, ficam as seguintes palavras: «A pungente história de um pai que vê os seus filhos emigrarem do condado Mayo para a América (...). (...) as palavras de amizade que de modo tão amável enviava (...) transmitem tanta beleza e uma escondida dor de coração que se destacam dentre os mais clássicos moldes».
Esta composição, com um fundo tão real, permite um profundo mergulho no mais íntimo da alma humana. Pois aborda o flagelo da emigração forçada pela voz duma família igual a milhares que, por aqueles anos, não tiveram escolha senão a ruptura, tantas vezes completa e irreversível. Por ser um tema tão sensível aos irlandesas, num dos primeiros espectáculos ao vivo em que a canção foi apresentada com uma introdução histórica, no término da interpretação a banda em palco assistiu, comovida, ao imenso rio de lágrimas que irrompia da audiência. Um tema muito especial, bem se vê, daí a sua grande fama. 

Sobre a versão portuguesa, dizemos antes de mais que a canção foi composta em rima, com versos longos, no total de seis. Mantivemos nesta versão a rima, mas dado que a tradução, em regra, alongava ainda mais os já extensos versos originais, decidiu-se cortá-los em dois. Portanto, seis versos deram origem a doze, e uma rima emparelhada tornou-se cruzada. 
Esta é a primeira de cinco partes, como já se disse, ao longo das quais iremos assistir a um pouco de tudo do que é natural no decorrer duma vida. As próximas serão publicadas muito em breve, cada qual na sua vez - para que calmamente possamos desfrutar a saga duma família afastada pela necessidade da emigração em tempos de extrema pobreza e fome.

Quem desejar consultar uma ou mais das cartas originais, poderá fazê-lo aqui: 












(Uma perspectiva de Kilkelly e um dos seus lagos.)




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