domingo, 24 de fevereiro de 2019

O COPO DA DESPEDIDA


Todo o dinheiro que alguma vez tive,
em boa companhia o desejei gastar;
e todo o mal que alguma vez eu fiz,
em verdade só a mim pôde afectar;
e tudo o que fiz buscando por sabedoria,
à lembrança agora não consigo trazer.
Por isso, encham-me o copo da despedida;
boas-noites, possa em vós a alegria permanecer.

Oh, todos os camaradas que eu já tive
lamentam que chegue a hora de partir,
e todas as enamoradas que já tive
queriam que não tivesse de me despedir.
Mas já que tal me reservou este fado,
levantar-me enquanto ficas sentado,
ergo-me tranquilo e digo em sereno dizer:
boas-noites, possa em vós a alegria permanecer.

Se para gastar tivesse eu muito dinheiro,
e tempo livre para ficar sem pressa sentado!
Há uma bonita rapariga nesta cidade
a quem pertence este coração enfeitiçado.
A suas faces rosadas, os seus rubros lábios!
Cativo sabe ela o meu coração ter.
Então, encham-me o copo da despedida;
boas-noites, possa em vós a alegria permanecer.





Tradicional (Séc. XVII) ¹








(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir da versão moderna no tema em inglês.)







(Sugerimos uma das primeiras e mais famosas versões do tema, na voz dos inconfundíveis Clancy Brothers: https://www.youtube.com/watch?v=4Np_Ud4KA08 )









(1) Deve-se desde já esclarecer que a data apresentada não é a data da criação exacta do tema escolhido para esta edição, mas doutro que lhe serviu de inspiração. Digamos que a versão apresentada - chamemos-lhe moderna - chega-nos como o resultado final de séculos de reinterpretações e, arriscamos, de apuramento textual.
É de facto no século XVII, algures entre 1620 e 1630, que se edita em antologia, e pela primeira vez, uma canção com o nome igual ao verso que finaliza cada oitava. Então, a única diferença estava na presença da palavra "Deus" ao invés de "alegria". Contudo, tratava-se apenas duma melodia, sem qualquer letra anexada, e até essa difere da melodia actual que faz o tema. Contudo, anos depois, uma nova versão é realizada onde, então sim, já se descortinam as primeiras semelhanças melódicas com a canção que hoje se conhece. Estávamos no ano de 1700 e a palavra "alegria" já tomava a sua parte no título da canção.
Falamos dos temas, mas até agora esquecemos a sua autoria. Na verdade, é totalmente desconhecida, apenas se sabe que a origem é escocesa - ela que hoje é um tema tão popular na Irlanda -, talvez uma melodia de berço rural, quem adivinhará? Na sua publicação não foi feita qualquer referência, pelo que é possível ter sido escutada dos lábios ou da flauta dum qualquer camponês das terras altas. 
Na entrada do século XVIII, e contando a melodia praticamente cem anos, o tema torna-se incrivelmente popular. É então neste período por tradição usado como canção de despedida no fim de grandes reuniões; inclusive, nos bailes da época era a última música a ser tocada. Ora, isto diz-nos claramente que já então a música, somente instrumental, era vista como a ideal para situações do género, pelo que se compreende a inclinação que mais tarde a sua letra virá a ter. 
Sobre a mesma, diga-se que a primeira é editada em 1652 (há quem refira 1670), ou seja, pouco depois da melodia primeira que lhe daria ténue influência. De facto, este texto publica-se numa folha de pauta, algo muito comum então, com outra melodia por acompanhamento, mas algures no tempo, como veremos em breve, ambos se encontrarão. Ainda sobre o texto, é claro que esta primeira versão pouco tem em relação com o tema moderno, somente, de novo, o último verso de cada oitava (também nisto se iguala), mas ainda sem a palavra "alegria" (é "Deus" que a subsistiu, como na versão instrumental antes referida). O tema dava pelo nome de Neighbours Farewell to His Friends (A Despedida dos Vizinhos Aos Seus Amigos), um longo poema escrito em modo de diálogo. Mas note-se, de novo, como o carácter da partida também nesse texto se faz transparecer. 
Nas décadas seguintes novas versões foram publicadas, cada qual de acordo com o cunho do seu autor. Como já aqui referimos por diversas vezes, tal prática era comum no universo do folclore musical. Poetas como Robert Burns e Alex Boswell deram-lhe novos sentidos dentro do sentido original de despedida e celebração, o que só serve para confundir quem realmente deseja conhecer as verdadeiras origens da canção, uma vez que certos autores fornecem fontes diferentes e de parca validade. 
Somente no início do século XIX é que se imprime uma nova versão tendo por título o já referido último verso. Nunca anterior a 1815, o tema regista-se com fonte anónima, apenas uma referência a um certo poeta de rua, que utiliza já a expressão "copo da despedida". (Uma breve pausa para explicar o termo: era comum nas ilhas britânicas servir em tabernas ou albergues o chamado copo da despedida, uma última bebida antes da viagem acontecer, por modo a manter o conviva quente e feliz. Será talvez o costume que está na base da expressão portuguesa "mais um para o caminho".) Este texto, na verdade, é já muito idêntico ao que apresentamos em tradução, com expressões importadas da tal canção dos vizinhos e uma oitava a mais, algo que como se vê algures se perdeu. O texto escocês chega pouco depois a Inglaterra e em Liverpool é editado em 1824. Este passo é importante, uma vez que se presume ter sido graças a esta difusão que o tema chegará, por fim, à terra onde se imortalizaria de vez - a Irlanda.
De facto, algures por 1830, na cidade de Cork, é impresso um texto idêntico a esse, salvo certas liberdades que sofreu não se sabe por que mão - talvez de um certo Baird, o editor.  Uma vez mais, nenhuma referência à autoria original foi feita. Dez anos depois, nova impressão de nova autoria, desta vez aclamando a canção como nova (imagine-se!), num claro golpe comercial. Foi, assim, nos começos de 1840 que a canção ganhava os seus traços mais modernos, se bem que ainda continha uma oitava extra e um refrão que até aí nunca havia possuído. Mas em termos de título, é aqui que finalmente ostenta o actual The Parting Glass (O Copo da Despedida, conforme se traduziu). 
No entanto, entenda-se que a melodia associada ao tema não era ainda a que hoje se conhece. Essa, segundo alguns pesquisadores, nasce de um tema popular naquele período, o Sweet Cootehill Town (Doce Vila de Cootehill), uma canção sobre emigração com reminiscências numa outra mais antiga, talvez do século XVIII. Letra e música haviam finalmente contraído um feliz matrimónio. Mas o apuramento literário ainda não havia findado. É já no século XX, em 1939, que numa antologia de canções populares Colm O'Lochlainn a apresenta tal como hoje se conhece, fazendo referência ao facto de lhe ter sido transmitida pela sua mãe, que por sua vez a escutara de seu pai. Só então, e com a célebre apresentação do tema em 1959 pela famosa banda Clancy Brothers, é que a canção é tida como definitiva na sua forma (apesar destes terem invertido a ordem de duas oitavas).
O tema, entretanto, foi cantado e gravado por diversas bandas e intérpretes, sem que alguns se escusassem a adicionar o seu próprio perfume. Bob Dylan, por exemplo, inspirou-se nele para compor o seu Restless Farewell (1963), e até o actualmente célebre Ed Sheeran já a interpretou. Ainda hoje é vista como a canção ideal para encerrar um convívio ou outra qualquer feliz celebração, tal como na sua origem. O espectáculo de música e dança Irish Celtic, que muito recentemente passou por Portugal, encerra com uma belíssima interpretação sua acapella. 
É um tema escocês que a Irlanda reclama, mesmo que a história a contradiga. Na verdade, é hoje muito mais famosa aí do que no país de origem, onde conheceu o seu esplendor, de outra forma e modo de expressão, no século XIX. Hoje, curiosamente, tal versão é praticamente desconhecida, muito por "culpa" do famoso tema de Robert Burns, Auld Lang Syne, esse sim, mundialmente conhecido como canção de Natal ou de fim de ano, embora tenha sido composto no intuito de ser uma canção de despedida, tal como esta. Mesmo no que toca a ela, as suas antecessoras, tão célebres por trezentos anos, perderam para as versões dum poeta de rua e duma melodia irlandesa de origem desconhecida. Juntas, é certo, enchem em grande medida este maravilhoso copo de despedida - que obviamente se quer bem cheio. Saúde! 







(Hip, Hip, Hurra! Kunstnerfest pa Skagen,
de P. S. Kroyer (1851 - 1909)

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