sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

TU VENS, RAPARIGA?


Oh, enfim o verão está a chegar,
as árvores florescem docemente,
e o tomilho silvestre
à urze violeta cresce rente.
Tu vens, rapariga?

     Juntos iremos, nós todos,
     apanhar o tomilho silvestre,
     ao redor da urze violeta, nós todos.
     Tu vens, rapariga?

Para o amor meu uma torre farei,
junto duma fonte d'águas cristalinas,
e nela então irei pôr
da montanha as flores mais finas.
Tu vens, rapariga?

     E juntos iremos, nós todos,
     apanhar o tomilho silvestre,
     ao redor da urze violeta, nós todos.
     Tu vens, rapariga?

Se o meu vero amor não estiver cá,
um outro encontrarei, é certo,
para apanhar o tomilho silvestre,
que da urze violeta cresce perto.
Tu vens, rapariga?

     E juntos iremos, nós todos,
     apanhar o tomilho silvestre,
     ao redor da urze violeta, nós todos.
     Tu vens, rapariga?





Francis McPeake (1885 - 1971) ¹





(Versão adaptada de Pedro Belo Clara a partir do original em inglês.)










(Apesar de ter sofrido algumas alterações ao nível da letra e do arranjo crendo a canção escocesa e não irlandesa na sua origem, os The Chieftains ainda conseguem os louros por uma das mais bonitas versões que se fez sobre o tema. Aqui deixamos a sugestão: https://www.youtube.com/watch?v=DOiIVw0xRDk ). 











(1) Nasceu em Belfast, actual Irlanda do Norte, este popular músico e compositor. 
Desde cedo revelaria inclinação para o ofício, muito por causa dum feliz episódio ocorrido na sua infância: observou um tocador de gaita-de-foles em plena manifestação da sua arte, ficando logo arrebatado pela melodia produzida e pelo estranho instrumento em si. É importante esclarecer que o instrumento em causa era uma variação das famosas gaitas-de-foles escocesas, por isso chamada de gaita irlandesa ou, no original, gaita Uilleann, mais pequena, leve e dotada de um som menos agressivo que as primeiras.  
O impacto no jovem Francis foi forte. Determinado a saber mais sobre aquele "estranho e magnífico instrumento", empreende uma busca que levará um amigo próximo, anos depois, a lhe oferecer uma Uilleann e a garantir-lhe aulas por um conceituado músico, um tocador cego, como era tão comum na Irlanda, que dava pelo nome de John O'Reilly. Francis teria então pouco mais de dezoito anos. 
Os progressos foram sendo notáveis, até Francis, um dia, por mero acaso ou simplesmente respondendo a apelos mais profundos que ele próprio, no meio de uma canção que tocava ter começado, ao mesmo tempo, a cantar. Ora, consegue-se imaginar como poderá ser difícil tocar tal gaita sem perder o ritmo do fole e, ainda assim, ter fôlego e atenção para cantar. Sem o saber, Francis tentava algo que nunca ninguém havia feito. O cego O'Reilly decidiu logo aí que o seu jovem discípulo estava pronto.
Embora na sua juventude tenha participado em vários concursos regionais e ganho alguns, a sua carreira musical só recebeu um grande impulso a partir da década de cinquenta. Começando a tocar com o seu filho mais velho, também chamado Francis, em 1953 conseguem ambos esgotar o conceituadíssimo Royal Albert Hall. No ano seguinte, o duo torna-se um trio e, no fim da década, lançam finalmente o seu primeiro álbum, The McPeake Family of Belfast, que foi imediatamente reconhecido pela crítica competente. 
Em 1962 o trio recebe mais três membros da família e enceta uma tournée mundial, espalhando assim as suas belíssimas interpretações do folk tradicional irlandês um pouco por toda a parte. Nos Estados Unidos conhecerá uma das suas mais célebres passagens, causando um impacto positivo noutros músicos como o famoso Pete Seeger. Três anos depois a banda regressa e, entre vários espectáculos e concertos, inicia colaborações com os mais talentosos músicos então em voga, tais como Joan Baez, Bob Dylan, Julie Collins e, claro, Pete Seeger.
O sucesso não parava de aumentar. Em 1968 são convidados para tocar, como parte duma surpresa, para uma banda da dimensão dos... Beatles. No fim do concerto, John Lennon fica tão impressionado pela gaita irlandesa que pede a Francis lições, e a verdade é que as mesmas aconteceram. Porém, em 1971 o fundador da banda falece, o que levou o grupo a cancelar a tournée então agendada. Juntos, além de diversos concertos pelo mundo deixaram o legado de cinco álbuns em nome próprio. Seria também esse o ano em que se iniciariam novas agitações sociais na Irlanda do Norte, pelo que a banda decidiu suspender temporariamente as suas actividades. Mas o legado da família McPeake continuaria: em 1977 os seus dois filhos mais velhos fundam uma escola de música com o nome de Francis, que lamentavelmente fecharia em 2010. Actualmente, um dos netos leva a cargo um projecto musical de nome, claro está, McPeake, respeitando as heranças ancestrais e abrindo as portas a novas influências.

A canção que hoje propomos foi composta em 1948, tendo sido terminada apenas em 1950. Baseia-se com forte evidência num poema musicado do escocês Robert Tannahill (1774 - 1810), de seu nome The Braes of Balquhidder (As Colinas de Balquhidder), embora Francis tenha afirmado que a letra foi composta com base nas suas próprias experiências. Em todo o caso, existem semelhanças entre ambos os textos que farão alguns pensar que esta canção foi praticamente reescrita. Aliás, no universo folk vemos coisas tais com grande frequência. Bob Dylan, por exemplo, na década de sessenta tocou este tema e creditou-o como tradicional, enquanto Francis lutava por firmar-se como o seu autor. 
A versão ganharia ainda novos versos pela mão do filho, reforçando o intuito de que o pai Francis escrevera o tema para o dedicar à sua falecida esposa. E há razão nisso, pois Francis explicou as duas linhas mais controversas do poema-canção: «Se o meu vero amor não estiver cá, / um outro encontrarei, é certo». Compreende-se que numa primeira leitura se possa identificar uma certa libertinagem, uma sensação de amor falso, já que se troca de compromisso com grande facilidade. Mas não. Francis explicou que escreveu tais linhas a pensar na sua falecida esposa Mary, e como então julgava ele que não mais iria amar. Mas conhece Alice, a segunda esposa, e com o que escreveu tentou apenas frisar a grande maravilha da vida, tendo em conta o que lhe sucedeu sem que nunca o esperasse. 
Não obstante muitos pensarem tratar-se duma canção tradicional antiga, este Will Ye Go, Lassie, Go é sem qualquer dúvida um dos mais populares e famosos temas do grandioso universo folclórico irlandês. Várias vezes creditado como Purple Heather e mais comummente Wild Mountain Thyme, é uma canção simples que nos leva a um mundo camponês de serena alegria. Devemos esclarecer que nesta tradução adaptámos a canção, que se quer popular, ao estilo linguístico português que melhor sentimos ser conveniente. Desde logo, optámos por manter o título que o autor lhe deu, apesar de tantas e confusas mudanças que consoante o intérprete a canção tende a sofrer. Depois, nota-se no original um uso recorrente às expressões «wild mountain thyme» (tomilho selvagem da montanha), «purple heather» (urze violeta) e «will ye go, lassie, go», que não sendo o refrão funciona quase como um e dá à composição um estilo tradicional, onde tais repetições eram geralmente recorrentes. Ora, a sua tradução literal seria algo assim: «Virás tu, rapariga, virás?». Tal repetição pareceu-nos algo obsoleta em português, e talvez fastidiosa para o leitor, tendo que a ler tantas vezes. Daí a adaptação mais simples que se escolheu. Depois, no que toca ao tomilho, considerou-se de novo uma repetição desnecessária o traduzir literal dos versos onde ele surge, pois se o tomilho cresce na montanha é certo que será selvagem. Assim, considerámos que "tomilho silvestre" seria expressão capaz de albergar o essencial.
Apesar da simplicidade e clareza de processos de escrita, é um poema-canção que nos deixa com a imagem dos amantes, ou até de um pequeno grupo de camponeses a acompanhá-los, no início do verão a subir as encostas da montanha para, de cestas vazias, colher o aromático tomilho da montanha, um ritual tão antigo quanto belo, um sincero louvor ao tempo em que a vida de novo renasce.









(O tomilho silvestre, crescendo em torno da urze violeta.)


Sem comentários:

Enviar um comentário