sexta-feira, 28 de abril de 2017

MARY (PARTE III)


Acaso eu fosse pescador de peixes
e um salmão houvesse nas águas do lago,
de colo tão branco como a minha amada
e nome igual ao que meus lábios dizem,
a minha rede eu lançaria
decidido e feliz, alegre e sem receios.
E do fundo da água para mim viria
aquela que é o sol
de todas as mulheres
da Irlanda inteira.

Acaso eu fosse um ganso real
em liberdade voando,
com altas montanhas no horizonte
e por cima o Céu, morada das almas,
comigo a levaria por companheira.
No lar onde crescera e onde vivera
por breve momento faria pousada.
A seu pai e a sua mãe
ela daria a despedida.

Acaso eu fosse capitão da Guarda
da cidade de Londres
e a Guarda trocasse por veleiro de largada
e libras aos centos por dia no mar,
eu tudo esquecia e nada pedia.
Ela e só ela é a minha luz,
a minha vida e alegria.
Ela e só ela é a minha escolha,
aquela que tem Mary por nome.

Levanta-te amigo, aparelha a montada
e vai pelos caminhos perguntar por ela,
por vales e montes, aldeias e vilas.
Pergunta por ela, o amor dos meus olhos,
aquela que foi minha prometida
ainda criança.
Na lembrança eu guardo
o seu retrato doce e suave,
mais doce que a ave trinando no bosque,
mais suave que o órgão na igreja soando.




(Autor desconhecido)








(Tradução de José Domingos Morais in "O Imenso Adeus - Poemas Celtas do Amor", Assírio & Alvim, 2004)


















sexta-feira, 21 de abril de 2017

MARY (PARTE II)


Eu tenho um irmão que nada sabe
do meu tormento e meus queixumes.
Se houver alguém, talvez o Papa,
que queira dizer-lhe as minhas penas,
ele vai sofrer por eu sofrer,
ele vai sofrer por me saber
abandonado pelo meu amor,
por me saber sem dó trocado
no meu noivado.
Ele vai sofrer por ser ela o meu amor,
a mulher mais bela da Irlanda inteira,
minha rainha, minha senhora
a quem eu amo e ódio não tenho.

Bela menina dos meus encantos,
jóia das jóias de tesouro sem preço
e anéis doirados em cabelos longos,
tu és o sol das mulheres da Irlanda
e és o espinho do meu coração.
Tu és a chaga no meu peito,
a chaga ardente que não tem cura.
Diz-me o porquê, qual a razão
por que te persigo,
único amor na minha vida,
amor que foge e não alcanço.




(Autor desconhecido)






(Tradução de José Domingos Morais in "O Imenso Adeus - Poemas Celtas do Amor", Assírio & Alvim, 2004)






(The Kelpie - de Herbert James Draper)




quarta-feira, 12 de abril de 2017

MARY (PARTE I)


Mary, meu doce amor,
minha rainha de anéis no cabelo,
ainda te lembras dos nossos passeios
pisando o orvalho na erva do campo?
Oh bela flor de mais perfume que a macieira,
mais suave graça que a aveleira,
mais rubra cor que as bagas do bosque,
eu nunca esqueci o amor jurado
e agora imploro, triste de mim,
que olhes meus olhos.

Oh meu amor e meu segredo,
vem até mim pela noite escura
quando o mundo recolhido está.
Minhas mãos em tua cintura eu pousarei
e hás-de escutar meus secretos contos
que só a ti eu sei contar.
Foi o teu encanto, menina bela,
que apartou meus olhos
da contemplação 
do Céu Glorioso.



(Autor desconhecido) (*)




(Tradução de José Domingos Morais in "O Imenso Adeus - Poemas Celtas do Amor", Assírio & Alvim, 2004)





(*) Desconhece-se a autoria deste texto, bem como a data da sua produção, provavelmente devido ao facto de tratar-se de uma canção resgatada à rica tradição oral irlandesa. Tanto quanto se sabe, poderá contar com séculos de existência. Perdurou, portanto, graças ao modo de transmissão, reforçando o seu encanto próprio geração após geração, até que por fim alguém se decidiu a registá-lo. Quando isso aconteceu, já há muito se havia perdido o nome que o criara e o ano em que nascera. E quem, com a devida propriedade, poderá afirmar quantas estrofes lhe foram adicionadas entretanto? Destaca-se, porque oportunas, as palavras de Kenneth H. Jackson: «A literatura celta teve o seu início em tempos muito recuados e continuou na Idade Média como divertimento de um sistema social aristocrático, sendo produzida por uma classe profissional de literatos suportados pelos grandes senhores da aristocracia. Mais tarde, à medida que o sistema social se desagregava, foi aquela classe profissional progressivamente substituída por autores cada vez mais próximos das restantes classes, adquirindo a sua produção um cariz obviamente mais popular, (...) quase folclórico».
Tudo o que se sabe a respeito das possíveis origens deste texto é aquilo que em seus versos ainda perdura. Escrito provavelmente por mão masculina, trata-se de um louvor poético nascido de um desejo de busca, como mais tarde se compreenderá, estando dirigido à amada do seu autor, uma bela jovem irlandesa de nome Mary (Maria) - embora não sejam estas pressuposições seguramente exclusivas. O texto, algo longo, daí se ter optado por neste espaço dividi-lo em três publicações, versa em entrelinhas sobre as virtudes físicas e morais da jovem, deixando essencialmente transparecer o ardente desejo que o seu autor sente em reencontrá-la e a imensa inquietação que a distância lhe concede. 
Em qualquer circunstância, dir-se-á seguramente um digno representante de um dos pilares que constitui a orgulhosa tríade temática da poesia celta: Amor, Natureza e Religião.